Saturday, December 05, 2020

Caricaturas Crónicas - «Christiano Cruz: o mito na caricatura» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 2/2/1986)

A certidão de óbito dirá que morreu em 1951 na cidade angolana de silva Porto, esquecendo-se, porém, de dizer, quem a passou, que morreu para as artes em 1920.

«Nenhum desenhador me revelou ainda a beleza das coisas portuguesas e aqueles que o têm tentado, fazem-no com um critério tão mesquinho que a sua obra melhor caberia nos Arquivos da Torre do Tombo do que nas exposições de arte pura.

/…/ Eu sei bem que o público não sente a necessidade da arte, da mesma maneira que não sente a necessidade de lavar os pés. Mas as necessidades criam-se, e essa tarefa só nos pode caber a nós, dada a impossibilidade de mandar o meio, a Paris, educar a vista.

Façamos arte onde os nossos predecessores só têm feito arqueologia. Tratemos com largueza os gestos largos do cidadão Acácio, a vida do povo e o burguesismo.

Não façamos crítica, façamos arte! (in «República» de 22/5/1914).

Manifesto de um artista crítico e inspirado que exorta a arte como expressão estética de um sentir nacional, em concepções «modernistas» que são internacionais. Este é um manifesto de um mito que nasceu do nevoeiro, e nele desapareceu; um mito que aparece como um mestre, e assim desaparece. Falamos de um artista que ficou como a recordação de um nome: Christiano Cruz.

«Como notas biográficas, a mais interessante, a de maior relevo, é a minha certidão de baptismo; a outra, a segunda, pelo caminho que as coisas vão tomando, deverá ser a minha certidão de óbito. Assim, sempre te direi que nasci a 6 de Maio de 1892 na cidade de Leiria, tendo-me irrompido simultaneamente com o sarampo a neurastenia. Esse menino que tu advinhas linfático e triste, manifestou a sua vocação rabiscando na lousa extensos cortejos fúnebres de ultra-sintéticos personagens, marchando rígidos e aprumados como as figuras de um friso egípcio» (in catálogo da II Exposição dos Humoristas, 1913).

A certidão de óbito dirá que morreu em 1951 na cidade angolana de silva Porto, esquecendo-se, porém, de dizer, quem a passou, que morreu para as artes em 1920. Viveu 59 anos, dos quais apenas 11 seriam de expressão estética, de revolta contra uma arte e uma burguesia, contra um país velho e bolorento atulhado de botas-de-elástico.

Se esses academistas «dirigem» o País da capital, foi em Coimbra e Porto, por via das revistas »Gorro», «Farça» e «Águia», que Christiano aparece do nada, clamando por uma nova arte, e impondo-se como mestre.

Na verdade, não vinha do nada, mas como encarnação Hermínia (do Celso), A sua campanha ér, não só, contra o naturalismo em naftalina, mas também contra a mediocridade: «Não deixemos estiolar as nossas faculdades, ajudando a viver jornais pulhas, onde eu já vejo o prognóstico assustador de impotência criadora» (in «República» 22/5/1914).

Começando seus estudos em Leiria, cursa o liceu em Coimbra e aí reúne à sua volta, um núcleo de intelectuais-artistas, no intuito de fazer arte como expressão do seu tempo, arte como perspectiva do futuro, e não prisão do passado. Deste grupo destaca-se, para além dele, um excelente desenhador e caricaturista, de nome Fernando Correia Dias, o qual em breve partiria para as terras do Brasil, impondo aí esta visão sintética da arte.

Nesta fase, em que ambos seguem o mesmo percurso, a linha é o comentário da aparência, é o humor pela análise sintética do mundo, a estilização como representação caligráfica das estruturas humanas e sociais. Eles foram a nova expressão do modernismo, via caricatura, a irreverencia, via humorismo.

«Tem um parentesco esquisito este grande artista que, por haver a mais do que os outros um apurado instinto observando, parece distinguir-se como um sombrio e é no fim de contas o mais lúcido e sóbrio comentador da vida que aí anda. /…/ Só a vida o tenta, mas a vida no seu fundo grotesco e doloroso. /…/ Christiano encontra sempre almas a desvendar na sua crueza, sem rebuço. O mistério estende para ele as suas mãos sortílegas e assim, ao debruçar-se sobre a vida, alguma coisa que a maioria não descobre o deve atrair, pois quando se ergue, sempre em seus olhos radia um fogo de supervidência dominante, que é depois mas suas páginas a sedução perene dos que sentem» (Nuno Simões in «Gente Risonha» 1915).

Partindo da linha como estilização, passando pelo expressionismo, colaborando nas revistas e exposições de irreverencia humorística, manteve contudo um distanciamento vivencial que o marcava como espírito atormentado. Nunca deixando de estudar a animalidade, ele fez o diagnóstico às nossas artes, deixou a sua receita e desapareceu nas brumas de África.

Filho de uma década em mito, irmão no tempo e no desaparecimento do «maluquinho de Manhufe» falecido no início de uma arte; do irreverente que fez da vida a sua tela; contemporâneo do «Orpheu» e do futurismo, ele é também um mito dessa década. A sustentar esse mito, algumas obras de mestre e uma grande saudade e admiração dos seus companheiros.


Caricaturas Crónicas - »O PORTUGAL CARICATURAL» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 8/12/1985)

«- Teve uma syncope! »

«- Já o despimos, até lhe ti­rámos a camisa, para facilitar a circulação ... e não recupera os sentidos. É capaz de nos ficar nas mãos!»

«- Entretanto vamos todos endireitá-lo, que está muito torto.»

«- Não puxem da direita!»

«- É da esquerda que empurram ....»

«- Afrouxem lá de cima!»

«- Aguentem de baixo ...»

«- Não tem senão ossos e está todo desengonçado. O melhor é esfolá-lo e encher de palha a pele. Bem empalhado, se lhe dará vida nova.» (M. Pinto, in "Charivari» a 25/4/1891).

Qual espantalho o têm transformado os nossos governos e seus desgovernos, as suas alianças e desalianças, os empréstimos de penhora... e assim aos olhos do caricaturista, Portugal apresenta-se em sincope crónica.

Em 1847, Cecília no Supl. do "Patriota" (27/9) dá-nos uma das primeiras interpretações caricaturais do nosso país - descreve-o como um esqueleto despojado de vestes e carnes, pelos agiotas. Na altura ainda não havia o FMI, mas em todos os tempos e locais existem entidades caritativas para o desenvolvimento dos países. Contudo, nos contratos dos empréstimos nunca fica definido onde se provoca o desenvolvimento, se no campo económi­co, se na dívida.

Em 1848 o mesmo Cecília (in «Patriota» 17/9) já nos apresenta Portugal tal como um burro carregado de albardas. Claro está que tudo isto é uma simbologia cadastral, numa localização zoológica, ou seja, como identificação do nosso país como uma das raras reservas especializadas naquele espécime animal. Porém, algumas pessoas mal intencionadas interpretam o burro como o português pronto a obedecer a qualquer almocreve nacional ou estrangeiro, mas sempre teimoso em não tomar o caminho do progresso.

A albarda, nesse desenho, é o símbolo da nossa riqueza, e nossa força. Riqueza pela abundância de albardas (já que não temos outra coisa); força porque mesmo com oitocentos anos aguenta às costas tanta simbologia de trabalho, e sempre pronto a aguentar muito mais. Mais tarde, as más-línguas dirão que o burro é o povinho, e que as albardas são os impostos, juros e décimas que lhe lançam no costado.

De qualquer modo, é preciso esclarecer que, se por vezes o caricaturista transforma a imagem do Zé num burro, é como gesto humanitário e pudico. O Governo, por necessidade patriótica, penhora-lhe muitas vezes a camisa e a pele. Ora, entre mostrar um Zé em pêlo, ou um burro, é preferível o último, não se vão ofender virtuosos olhos.

Nesse mesmo ano de 1848 um anónimo desconhecido (já que Cecília era um anónimo conhecido, apesar deste desconhecidos ser provavelmente o mesmo desconhecido Cecília - in «Patriota» 22/10) cria uma pequena alegoria com a tourada, mostrando o nobre Portugal a ser toureado, a ser farpeado por políticos nacionais e estrangeiros (que isto de hospitalidade vem de longe). O povo entretanto observa deliciado a perícia dos cavaleiros. Uma das razões por que ainda hoje não se mata touro na arena, provém do mau exemplo para possíveis simbologias, provém do perigo que seria o caricaturista simbolizar a morte do País. Farpeado, pegado, domado ainda vá lá, porque isso já está na nossa massa do sangue, mas morto não.

Em 1849, outro Anónimo («Patriota» 2/1) apresenta Portugal como uma nau à deriva em plena tempestade. Uma imagem bonita deste povo de marinheiros sem frota pesqueira, deste país que vive na água que os políticos metem. Na verdade somos marinheiros por essa mesma razão, para não nos afogarmos na nossa política intestinal.

Depois de 50, os anónimos cansados de tanto clamar no deserto deram lugar aos assinantes, já que a lista classificada é meio caminho andado. Mas estes poucos trouxeram de novo o mais importante símbolo nascido dos assinantes, apareceu em 1875, e baptizado com o nome pomposo de Zé-Povinho.

Portugal manter-se-á sempre como um velho esquálido, mas perante tal imagem degradante, o caricaturista envergonhado apresenta um jovem Zé, mesmo em pêlo ou esfolado como o povo português, como o País em si. Simbiose compreensível, já que ambos sofrem na mesma medida com as actividades dos nossos políticos, e com a amizade dos nossos aliados.

Essa amizade fez com que certos povos (ou investidores) afirmassem que o «Zé-Prometeu» (R.B.P., in «António Maria», 24/3/1881) certos favores nas colónias (industriais e comerciais), na isenção de impostos, em conclusão, facilidades. Mas, mesmo jurando que não prometeu nada, continuam a devorar-lhe o fígado.

Esfolado e empalhado; albardado; quase afogado; debicado... tudo isso pode ser, mas que se lembre o diabo de tentar matá-lo, porque então coiceia, investe de cornos no ar, e manda uns tantos Miguel de Vasconcelos pela janela fora. No caso dos vivos adormecerem. Stuart gritará de novo: «Mortos de pé, que os vivos estão de cócoras!»


Friday, December 04, 2020

The First Indonesia Cartoon Festival 2020 - Theme: Anti Hoax! Deadline 6 December


 


Caricaturas Crónicas - «Celso Herminio – um caricaturista cheio de sonhos» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 23/2/1986)

«E uma alma viril nas delicadas feições de um adolescente. Os olhos são vivos, grandes e francos; a cabeça é sugestiva; sem as exagerações decorativas dos falsos artistas, natural de gestos, sóbrio de ademanes, à parte o constante sorriso irónico que lhe brinca nos lábios finos e descorados» (Alberto Meira, in «Apontamentos para o Perfil do Artista»)

Um sorriso irónico que brilhou como um «cometa» no nosso firmamento caricatura, numa expressão que quase ofuscou o sol rafaelista, não tivesse o seu futuro sido tão curto. Falamos de Celso Hermínio, o eterno adolescente que do sonho dez sátira mordaz, que fez graça e crítica na sociedade.

Celso Hermínio de Freitas Carneiro, filho do escritor e dramaturgo General Gaudêncio Eduardo Carneiro, herdaria de seu pai a sensibilidade artística e o espírito guerreiro. Nascido em Lisboa, em 1870, encontramos os seus primeiros esbocetos caricaturais em S. Miguel, Açores, onde acompanhava seu pai, manifestação já de um espírito em irreverencia, num mundo de ordem e disciplina.

Como «bom filho», seguiu as pegadas de seu pai, ingressando na carreira militar, às ordens de el-rei. Só que nem el-rei, nem a disciplina eram das suas simpatias e, perante o fracasso da revolução republicana de 1891, Celso foi obrigado a procurar nova carreira. As facilidades de expressão estética das suas mãos, conjugadas com o espírito guerreiro do soldado, indicaram-lhe o caminho do futuro – a caricatura.

«Celso Hermínio, quasi uma creança ainda, mercê d’um talento grande, desequilibrado, crivado de geniais lampejos, e de somnolencias estranhas, tem-se em poucos anos elevado bem acima do nível em que se rastejam os banaes e os nulos.

/…/ Onde começou essa carreira que parece conduzi-lo a um brilhante futuro? Pela bohemia artística, nas mezas dos cafés, pelas redacções dos jornais, onde começou a dar sahida aos borbotões de ideias que lhe irrompiam da imaginação vivaz por meio da penna, antes de encontrar a vazante mais adequada às suas faculdades – o lápis» (Ribeiro Arthur, in «Artistas Contemporâneos).

Foi pois na boémia artística que Celso se encontrou, foi na camaradagem com Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro, com os «Nefelibatos», com os «Novos» que despontou a sua veia artística.

Fervendo de revolucionarismo, o seu trabalho aparece como campanha panfletária de humorismo cáustico, numa intervenção directa contra o regime e contra as individualidades políticas.

Quebrando com a tradição bordalliana da ironia constiticionalizada, Celso inicia uma carreira conturbada como director artístico de um periódico que não conseguiria publicar mais do que três números, o «Universal – Supl. Humorístico» (1892). Em 1894, colabora com os Bordallos no «António Maria», mas a sua agressividade de traço e satírica chocava com as directrizes do jornal. Entretanto funda «O Micróbio», seguindo-se «O Berro», jornais de vida curta, mas influente. Vida de luta e perseguições, luta pelo ideal republicano, e perseguição monárquica. Neste confronto, Celso Hermínio e Leal da Câmara (entretanto cúmplice de traço e amizade) encabeçaram o espírito revolucionário-satírico, enquanto o juiz Veiga se impunha como o contrapoder, simbolizando a repressão, a «rolha» da liberdade de Imprensa.

A sobrevivência monetária e política era-lhe difícil, neste país onde a censura apertava cada vez mais o cerco. Por essa razão, aceitará um convite do Brasil, e para aí partiria em 1897, encerrando-se desta forma o primeiro ciclo da sua obra. Neste período de ânimos revolucionários e causticidade satírica, «o seu lápis contundia as carnes da vítima alvejada. Não era um lápis: era uma moca» (Alberto Meira). Partindo da linha romântico-barroca, própria da escola rafaelista, o seu traço evolucionou para linhas sintéticas, mas marcantes, nervosas, mas firmes, numa interpretação «impressionista» da vida

No Brasil manter-se-ia apenas 14 meses, porque apesar das condições económicas serem excelentes, nem o ambiente social, nem o clima lhe eram favoráveis. Regressou desiludido e doente.

De novo em Portugal, funda em 1899 «A Carantonha», um jornal efémero, e trabaçha como colaborador em vários jornais lisboetas, ou ilustrador de livros.

Nesta segunda fase, a agressividade do combatente amaina, não por desistência na luta, mas por mudança de estratégia. A obra do guerreiro dava lugar à obra do crítico, mantendo contudo os mesmos ideais.

Deste período, destacam-se as suas páginas de segunda-feira no «Diário de Notícias», crónicas de costumes e da vida, retalhos sem desdém, sem agressividade, antes pelo contrário, com graça e ironia: «Uma das feições da sua caricatura - escreve «O Dia», no elogio fúnebre – é não beliscar ninguém. Os seus traços são cheios de ternura e de bondade. Desenha os costumes do meio em que vive, apanha-os em flagrante, sem uma aspereza que moleste, sem esquinas e sem arestas».

«Um caricaturista cheio de sonho», como o definiu Guerra Junqueiro, porque como sonho ficou a sua obra possível, sonho porque foi a expressão de um ideal que nunca o abandonou.

Porém, Celso Hermínio só pode ser uma breve expressão de uma sátira possível, de uma estética possível, foi o anúncio de um modernismo expressionista que só triunfaria uma década após a sua morte. Foi um precursor que não teve mais tempo do que indicar um caminho, morrendo em 1904 com 33 anos. Da sua obra, ainda hoje resta desconhecida a sua faceta de pintor, que existiu na intimidade de um curto círculo de amigos e família.


«Revista de Livros – “Álbum de Caras” de António, Lisboa / 1985, Edições Jornal Expresso» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 29/12/1985)

«Que vê caras, não vê corações», diz o povo e tem razão. Também o caricaturista não vê corações, nem é cardiologista, mas vê caras e outras coisas. Vê com mais perspicácia que os outros, vê o mundo e os Homens com maior profundidade, vê através de um filtro, não de raio X, nem «raios te parta», mas de objectividade. A caricatura, apesar de ser uma obra com duas assinaturas, a do autor como estilo, e a do caricaturado como identificação, é também a visão subjectiva (humanizada ou satirizada) de toda uma sociedade, e como tal objectiva, dentro de uma visão-verdade, instigada pelos acontecimentos e vida que rodeiam o ser visado.

O livro, de que falamos, chama-se «Álbum de Caras», e está na cara que é um álbum de retratos caricaturais. Dentro da linha de uma tradição, poderia ter-se chamado álbum de Glórias porque, não só é uma glória entrar na lista dos caricaturáveis por António, como é a recompilação das caras que mais se têm distinguido, tanto no campo nacional como internacional, nos meios colunáveis da política.

António Antunes é o autor, o mesmo que nos deu uns «Suspensórios» para proteger a nacionalidade, o mesmo que deu «cartas políticas» antes das eleições, sabendo de antemão que o «joker» lhe iria estragar o baralho com um quinte naipe, e que agora nos apresenta um álbum de espelhos com o reflexo satírico da sua pena, reflexos de caras deformadas, dizem uns, verídicas dizem outros, já que nunca se sabe de que lado do espelho é que está a deformação.

Nascido no fulgor da democracia, António impôs-se no mundo do cartoonismo e da caricatura com o seu traço de miniaturista, conjugando o barroquismo com a expressão sintética, impôs-se numa arte nem sempre reconhecida pelos pensadores da subjectividade das formas, cores e infra-estruturas, mas reconhecido pelo grande público, como arte de comunicação.

Um álbum de caras para se possuir.


Caricaturas Crónicas - «MAG(R)OS REIS EM FESTAS DE INICIO DE ANO» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 29/12/1985

«É um mistério que chega e um desengano que se retira. O velho parte pobre e enfermo, arruinado e gasto. A sua bagagem consta unicamente, de papéis: lembranças de coisas que lhe esqueceram, notas de promessas que não cumpriu, projectos de obras que não fez, borrões de leis que não passou a limpo, planos de reformas com que não reformou coisa nenhuma, um relatório, muitas contas e um mandado de penhora.»

«O novo tem o aspecto romanesco e aventureiro. É este o que vem entrar na liça e combater pelo outro que sai da arena trôpego. e imbecil.» (R.B.P. in António Maria; 5/1/1882).

Todos os anos, perante a «morte» da natureza, perante a frialdade do mundo, o homem sonha, cria esperanças no renascimento de um menino-Deus, na vinda de um D. Sebastião, ou num ano NOVO.

Durante cerca de uma semana, ou seja, do nascimento de uma esperança divina ao nascimento de uma cronologia temporal, a humanidade sonha refazer a vida, o mundo, aparecer de uma noite para a outra, o que ela recusou durante o ano. Doze badaladas de esperanças, que no final não passam de doze frustrações não concretizadas no passado.

Todo este sonho começa na simbologia dum pinheiro enriquecido com falsos esplendores, na montagem de um presépio onde o menino-esperança fica rodeado pela família, pelo burro e a vaca, pelos pastores… Para os caricaturistas esse presépio é o retrato dos políticos na contemplação do menino-povo, o menino-voto. Na realidade, hoje e sempre, o presépio da vida é o burro e toda a animalidade na adoração do menino-político.

Protegido pela sua aura de «salvador» (nacional), o menino-político faz as suas birras, berra quando não lhe dão de mamar e borra-se para o mundo. Hipnotizado, o Zé abana as orelhas, e teimosamente mantém-se em adoração perante tal presépio.

Cada novo político, ou governo, é como cada novo ano, a partida de um velho, gasto em promessas não realizadas, e a chegada de uma esperança. É a promessa de «palha nova», promessas que não vão ser cumpridas, projectos que não serão concretizados, reformas que não reformarão nada, e no final haverá provavelmente novo mandado de penhora, uma nova albarda-imposto para o Zé-Povo carregar.

Para terminar o ciclo das festas, na abertura de um novo ano, vêm os Reis Magos, que de magia nada têm, para além de um magro bolo comido em memória do Ouro que Mirra no tesouro público.

Na caricatura estes falsos reis, magros, são os políticos esfomeados na adoração ao Tesouro Público, ao voto-povo, a uma pasta no Governo... Os Reis Magos (gordos) podem ser também a imagem dos investidores, que pensam ter a riqueza que resolve os problemas do País, são os detentores das riquezas «emprestadas» ao menino-Portugal, se este se «portar bem». Com Raphael Bordallo Pinheiro os Magos apareceram em forma do banqueiro Burnay, hoje é o FMI, ou outras entidades similares que possuem o ouro, o incenso e a mirra desejados pelos Governos. Qual o destino destes «presentes» é também um mistério, como o é na história bíblica,

Este é o período de festas, de esperança, de humanização momentânea do pensamento, e, por isso mesmo, nem sempre o cartoonista é festivo neste período de muita hipocrisia. Aproveita, pois, a alegria e esperanças de uns, para expor o mundo aos olhos da verdade, expor a tristeza dos outros, a desilusão, a revolta contra a falsidade, a miséria, contra os políticos e Governos.

Neste ano nasce de novo no presépio um mesmo, menino-Deus, nasce um novo ano, nascerá algo mais? «E após tão agudos transes, Carlotinha, sempre virgem, mesmo depois de mãe, dará ao mundo o fructo dos seus amores com Fervilha. O nascimento do Menino-Rei-Absoluto dentro do presépio... Belém, será então festejado, sem discrepância. Os próprios Reis Magos da coligação acabarão por abandonar a sua Estrela-Fonal e, curvando-se à evidência do milagre, virão cumprimentar pressurosos o recém-nascido. Tudo será alegria e fausto de que o Zé-boi partilhará, não dando sequer porque, afinal de contas, cada vez lhe vão pondo... a manjedoura mais alta, e um protesto apenas se erguendo: o do burro que, logicamente recordará, em seraphicos zurros, que burro por burro lá estava ele... que era mais velho!» (Celso Hermínio, in O Micróbio, 23/12/1894).


Thursday, December 03, 2020

Caricaturas Crónicas - «Sebastião Sanhudo: o contraponto bordaliano» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 5/1/1986)

Quando um sol brilha, todas as outras estrelas esmorecem. Quando uma cidade cresce como centro de um país, as outras transformam-se em maternidades de imigrantes. A imagem da caricatura do século XIX é esta mesma: o sol Bordalo Pinheiro governava o mundo do riso, enquanto a cidade de Lisboa, como centro governativo, económico e cultural, dominava o país. Para ela se dirigiam os artistas, em busca de trabalho ou de bolsas de estudo para o estrangeiro: os jornais aqui cresciam e devam um lugar de destaque aos periódicos de caricatura e humor.

O sol, na pena crítica de Raphael Bordallo Pinheiro, tinha reformulado a nossa caricatura, tinha estruturado a sua concepção e o seu génio crítico fazia a história política e cultural do nosso país. Mas, mesmo quando há um sol, as estrelas não deixam de existir e, naturalmente ele teve de deixar cintilar uma ou outra estrela, como M. Pinto, Almeida e Silva, Julião Machado…. Naturalmente, foi obrigado a dar espaço a artistas brilhantes como Celso Hermínio, Leal da Câmara…

Raphael e o rafaelismo dominaram, assim como Lisboa, mas apesar do lisboeta dizer como anedota que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem, na maior parte das vezes os grandes de Lisboa são imigrantes provenientes da paisagem e, é nesta que se resolvem muitos dos conflitos nacionais.

O homem de quem vamos falar não é de Lisboa, nem nunca para cá emigrou. Não é um sol, mas não deixou de brilhar. Não é um artista genial, mas um humorista que sempre soube onde estava o seu público e quais os seus limites artísticos. Vamos falar de Sebastião Sanhudo.

Natural de Ponte de Lima, onde nasceu a 20/2/1851, dirigiu-se para o Porto em busca de trabalho para as suas mãos, que desde muito cedo demonstravam gosto e aptidões para as artes gráficas.

O Porto, que sempre foi a segunda cidade deste país, era como que uma aldeia nortenha acoplada a uma cidade-feitoria dos comerciantes nórdicos. Nesta simbiose, vivia num provincianismo com gostos e interesses estéticos independentes de Lisboa.

Sanhudo tinha vindo para o Porto como litógrafo, uma nova técnica de ilustração e impressão, que ele dominava com mestria. A par deste domínio técnico, ele desejava uma base estética, já que até esse momento nunca tinha tido mestres, nem orientadores, na sua livre expressão de traços. Por essa razão, procuraria a Academia Portuense de Bela-artes, onde permaneceria três anos. Como sempre acontece, verificou que a escola nada lhe trazia, sendo mais importante a prática e a sua observação.

A prática fê-lo passar à pedra, com total mestria, obras para impressão, fê-lo criar com o seu estilete magníficos retratos, que ainda hoje estão perdidos em sótãos de casas particulares.

O «PAE PAULINO» E «O SORVETE»

A oficina de litografia criou nome rapidamente, assim como a qualidade dos seus retratos. Desta forma tinha totalmente assegurada a sua estabilidade econômica e artística. Mas, algo lhe faltava – a exteriorização do seu humor. Tinha dinheiro, tinha oficinas próprias, tinha assuntos preparados nas suas tertúlias, só lhe faltava conjugar tudo na edição de um periódico.

Em 1877, aparecia no Porto o semanário de caricaturas «Pae Paulino», que mais não foi do que um primeiro ensaio para o jornal humorístico de maior longevidade no século XIX, e o segundo em toda a nossa história - «O Sorvete». Este jornal manter-se-ia nas bancas quase até à morte do seu criador, ou seja, durante vinte anos e, desapareceria simplesmente por velhice e cansaço do artista.

Em 1877 nascia pois o «Pae Paulino», o qual em 1878 mudaria de nome para «O Sorvete». A vida do primeiro jornal correspondia è média de longevidade dos jornais humorísticos que, fora de Lisboa, tentavam a sua sorte. A falta de qualidade ou a falta de compradores regionalistas lavava naturalmente à falência destes jornais, sendo preferidos os que vinham da capital. Sebastião Sanhudo, sabendo isso e, aproveitando o «Pae Paulino» como sondagem, estudo de gostos, soube encontrar a fórmula que o público portuense desejava, ou queria, nas suas leituras.

Abandonando a sátira mordaz e a crítica directa, Sanhudo conseguiu, sem intuitos estéticos superiores, comentar com graça e ironia a vida da sua cidade. O seu jornal, é uma crónica alegre, pitoresca do dia a dia de homens de negócios e da política, escrita pelo traço leve e hábil de um humorista simples e, porque não, provinciano, como significante de um olhar ingénuo, mas salutar.

Não foi um Bordallo na criação estética, já que o seu traço não era mais que uma caligrafia tradutora do seu comentário crítico. Não foi um Bordallo no comentário político—nacional, por opção do comentário fundamentalmente regional.

Contemporâneo de Raphael, Sanhudo soube fugir à sombra do mestre, apresentando-se como contraponto. Ele é a voz da cidade não lisboeta, ele é acrítica da sociedade não politiqueira. Contemporâneos de edição durante vinte anos, sempre se respeitaram e admiraram, como duas expressões possíveis do nosso humorismo, como um contraponto entre a capital e a paisagem.

 

 


Caricatura Crónica - «UMA NOVA SESSÃO PRA-LAMENTAR?» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 5/11/1985)

 Um novo Parlamento se constitui, e S. Bento, «...depois de ter o cortiço bem limpo do enxame passado, acaba de chamar o enxame novo, que há-de fabricar o mel das contribuições, com que se dá, não diremos pelos beiços, mas pela bolsa de Zé-Povinho.»

«Como estas abelhas parlamentares gostam muito de faltar ao cortiço preferindo-lhe a Avenida, muito desejaremos que antes façam cera fazendo a Avenida, de que façam mel fazendo-nos de fel e vinagre.» (Raphael Bordallo Pinheiro in «Pontos no ii», a 7/4/1887).

Vem de longe a tradição e fama da doçaria dos conventos, mas no de S. Bento existe uma constante incógnita sobre os seus produtos. Talvez que, com entrada na CEE, e a vigência da nova regra, se consiga a garantia de uma certa qualidade de fabrico.

Ora, se para o caricaturista se mantém a dúvida sobre esse trabalho, não a tem sobre o político que aí professa. Este, igual em toda a parte, não usa hábito, mas tem barriga. Na verdade (caricatural) o político é uma barriga ambulante que monta feira em São Bento: «Os deputados pimpões estão já no Parlamento; animam-se as transacções no mercado de S. Bento; e a venda das convicções vai cada vez em aumento, até que lhes vá aos fungões o Zé-Povinho jumento.» (Nogueira, in «Pontos e Vírgulas» a 20/10/1894). O perigo do jumento Zé-povinho coicear não é muito, já que o iludem com passes de mágica e encantamento. A realidade é que São Bento é feira, mas também circo, onde trabalham magos, malabaristas, trapezistas e palhaços de grandes artes encantatórias.

Nos anos quarenta do século passado, quando os nossos caricaturistas começaram a caricaturar a política, uma das primeiras imagens que nos deram foi a de um parlamento em funcionamento, ou seja, a dormir a santa sesta. Quando não dorme, vai tratar dos seus negócios ou da sua imagem resplandecente.

O político também pode ser um «ratão» na expectativa do seu quinhão de queijo, encobrindo-se nas suas penas de «pavão». Um «pavão» que quando fala se transforma em «fogo-de-artifício», porque após um pelo jogo de palavras, nada resta de concreto: «contra a saraivada grossa da oposição, abre-se o guarda-chuva da resistência, fazem-se ouvidos de marcador, deixam-se correr os marfins... e fica-se!» (Almeida e Silva, in Charivari, a 3/3/ /1888).

«No fim de contas, enquanto eles lá dentro grazinam, insultam e esbofeteiam, cá fora o pobre Zé burro geme esquecido debaixo da pesada carga, e morto de fome. Ele bem presta a atenção a ver se distingue entre a grande vozearia dos amos as palavras palha, erva, milho ou fava... mas qual quê?!... Já ninguém se lembra do pobre burro!» (Almeida e Silva, in Charivari a 12/1887).

O Zé ficava esquecido na cozinha da política, mas de si os políticos nunca se esquecem, mantendo a boa imagem do cozinheiro na trilogia figural da política: «Bonita, feia e de barriga. Três figuras distintas e só uma verdadeira... a de barriga.» (Sebastião Sanhudo, in Sorvete a 30/9/1883).

Ora, quando um duende previne que «no ministério entram magros, começam a engordar; d'aqueles que entram gordos, há pouco que recear» (anónimo, in Duende 1865); é porque existe uma razão concreta. A política é um mundo de barrigas que o Zé sustenta, mas que não compreende muito bem. Para ele chega um naco de pão e toucinho com um bom copo, enquanto o político é insaciável, numa mesa a que o Zé não tem direito.

«A política é uma coisa que cheira bem a uns e cheira mal a outros - A política está na barriga e é pela barriga que se conhecem os grandes políticos - D'antes chamava-se político a qualquer sujeito que cumprimentava sempre a todos com muita amabilidade...- Hoje chama-se político àquele que só cumprimenta em vésperas de eleições. - Chama-se «Grande Político»: a todo o indivíduo (ainda que seja da marca de Judas) que se sabe abotoar - Politiqueiro: aqueles que fazem política... para levar a vida... – Politicões: aqueles que já têm o rabo pelado com a política Políticos honrados: aos que viram a casaca muitas vezes segundo lhes sopra o vento... - Político independente, noticioso, literário e comercial, a todo e qualquer jornal que recebe subsídio - Eis aqui um dos muitos que arrotam postas de pescada a favor do povo esmagado com décimas... para subirem ao poleiro e, depois de se lá pilharem... - Porque tal, porque o povo pode e deve pagar mais! - É a política de todos!» (Sebastião Sanhudo, in Sorvete a 23/3/1884).

Esperemos pois que as novas fornadas conventuais retomem a tradição da boa doçaria e que não nos saiba a amargo de boca.


Wednesday, December 02, 2020

Caricaturas Crónicas - «Bernardo Marques e o expressionismo português» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 17/11/1985)

Com traço corrosivo, desvendou uma sociedade decadente e hipócrita, uma sociedade provinciana que se julgava europeizada pela fachada mundanista. Quando tratava o povo, era romântico e nostálgico, traduzindo-o numa delicada caligrafia algo impressionista.

Entre a cidade e o campo há uma barreira de ingenuidade; entre a provincia e a capital, uma diferença de hipocrisia. Muito se tem humorizado com o «saloio» que vem á cidade e aí, fascinado pela «civilização», perde não só a dua ingenuidade, como a simplicidade.

 Algumas vezes se tem satirizado o «civilismo» citadino que numa fachada cosmopolita tenta disfarçar o seu provincianismo. Grande satírico da cidade foi Bernardo Marques.

Bernardo Marques era um algarvio de sines, nascido em 1899 que, após os estudos liceais na sua terra natal, veio para a capital estudar na universidade.

Quando aqui chegou, a irreverência futurista já se tinha diluído em mundanismo. Já tinha morriso Amadeu de Souza-Cardoso e Santa Rita Pintor. Christiano Cruz, um dos principais obreiros do modernismo via humorismo, partia em breve para as áfricas tratar da saúde à bicharada, que a de cá já não tinha salvação. Para os modernistas da primeira geração só havia como saída a imigração, ou a moderação irreverente, acomodando-se a uma sociedade que requeria mundanismo e decorativismo.

Foi neste mundo de pseudo-europeização que Bernardo aterrou. Vindo para cursara universidade, conheceu as tertúlias modernistas, cujo convívio o iniciou nas artes, bebendo as suas primeiras influências do traço de Christiano Cruz e seu expressionismo.

Chega a Lisboa em 1918 e expõe, pela primeira vez, em 1920 na terceira e última Exposição dos Humoristas, em Lisboa. A partir de 1921, começa a trabalhar em periódicos, primeiro como humorista, depois conciliando com a ilustração, acrescentando mais tarde a tarefa de director gráfico.

Partindo da influência expressionista, tempera-se como uma profunda ironia romântica. Com alma de «provinciano», observa esta sociedade com um distanciamento e uma veracidade que a desnuda pela sátira, sem contudo a deixar de observar com um quê, de romantismo e ironia. Conjugaria o mundanismo satírico com o populismo pitoresco.

Quando trata o povo, os bairros mais antigos povoados por uma casta orgulhosa e pitoresca, um povo provinciano que se orgulha da sua horta ou das suas raízes, ele é romântico, nostálgico num lirismo trágico, traduzido numa delicada caligrafia algo impressionista.

Quando trata a burguesia, esse povo provinciano com ares de cosmopolita, é satírico, irónico, com a agressividade humorística a manifestar-se em arabescos rápidos e expressionistas. Com traço corrosivo, desventra uma sociedade decadente e hipócrita, uma sociedade provinciana que se quer europeizada pela fachada mundanista.

Entretanto, como todos os artistas exilados nesta margem da Europa, quis conhecer o que se passava nos centros das artes, e partiu primeiro para Paris, e depois para a Alemanha. Neste último país, contactará com maior profundidade o expressionismo alemão, sendo especialmente atraído pela obra de George Grosz. Como fruto destes contactos, o seu traço ganhou agressividade, principalmente nos temas da burguesia, do novo-riquismo e uma certa aparência de alegoria no seu humor, talvez por influência de Chagal. Poder-se-ia dizer que esta viagem marca a sua maturidade como artista.

De regresso a Portugal, ingressará na equipa que António Ferro organizava, na sua campanha de «Política de Espírito». Nessa equipa, trabalhará como decorador nos pavilhões de Portugal das Feiras Internacionais; como decorador de montras na «política de bom gosto»; como director artístico e gráfico, numa visão modernista «de bom gosto» no «Panorama» (1941-1950), «Litoral» (1944 – 1945) e «Colóquio» (1959 – 1962); como cenógrafo, fundamentalmente do grupo de bailado «Verde Gaio»; e fará múltiplas ilustrações de livros.

Os anos passaram nesta diversidade de trabalho e o amadurecimento transformou-se em envelhecimento, não como decadência, mas como amortecimento satírico.

Diz-se que foi a partir da sua estadia em Nova Iorque (1939) que a agressividade abandonou o seu espírito e portanto o seu trabalho como humorista (em «O Século», «Diário de Notícias», «A Batalha», «Civilização», «Contemporânea», «Revista Portuguesa», «Kino»….). Isto aconteceu numa gradação que o levou, a partir dos anos 50, a pintar paisagens nostálgicas, onde as personagens perdem importância ou desaparecem. Predominando as paisagens campestres, o romântico modernista vencia com a idade, o expressionista humorístico. Nesta dezena de anos, transformar-se-ia num dos maiores paisagistas da sua geração.

Em 1962, morria um dos mais significativos expressionistas do humorismo e do modernismo português.


Caricaturas Crónicas - «Republicanismo, uma luta caricatural» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 13/10/1985)

A caricatura, em Portugal, nasceu com o liberalismo, mas cresceu pelo republicanismo. Talvez se pudesse mesmo dizer que o republicanismo desenvolveu-se pela caricatura.

A primeira caricatura política é naturalmente antimonárquica, e apareceu aquando da fuga do rei para o Brasil, deixando os seus súbditos ás mãos dos Franceses invasores. Uma caricatura anónima, traduzindo um sentimento anónimo de todo um povo. Esse sentimento espraiar-se-á na revolta liberal e, mais tarde, na república.

Em 1848, quando a caricatura ainda se defendia no anonimato, no suplemento de «O Patriota», aparece uma caricatura que defende: «A única resposta contra a monarquia é a liberdade» (a 30/5/1848).

A liberdade tem como símbolo, o chapéu frígio da Mariana, e como à liberdade se vai aliar o sonho republicano, será também esse o símbolo do movimento nascente, da revolta contra um regime decadente há vários séculos.

Nesta luta pela liberdade, ou pelo republicanismo, o século XIX foi a «água mole em pedra dura, tanto dá até que fura» (Sebastião Sanhudo in «Sorvete» a 25/5/1881); foi um trabalho de paciência, desmascarando a fraqueza do regime, a fraqueza dos partidos monárquicos que no seu rotativismo enganavam alternadamente o povo. Se o nome do partido mudava, o mesmo não acontecia com a filosofia política, as directrizes governamentais, e por vezes nem os políticos mudavam.

Perante esta inoperância governativa, esta não concretização do desenvolvimento que o liberalismo deveria conduzir, certos sectores monárquicos apelavam a um regresso ao passado, clamando pela ditadura do absolutismo. Mas, se esse regime não quis realizar, no seu tempo, o que agora se propõe, porque é que iam agora concretizar? Os políticos só se lembram do que deveriam ter feito, depois de saírem do Governo, quando estão na oposição.

Se o absolutismo tinha dado provas da sua inoperância, se o liberalismo não conseguia levar avante o deu ideal governativo, por defeito do sistema, a única solução à vista era a alteração radical do regime - «Se eu seguisse os conselhos do Zé (pensa Portugal, vestido com pesada armadura), escusava de chegar a esta miséria. Velho, sem forças, ultrajado e roubado… é de mais. Vou ver que tal me ficará o vestuário da última moda.

- Ó Zé, que tal me achas agora? (apresentando-se de casaca e chapéu frígio – à republicana).

- Ó sôr Portugal. Um raio me parta se vossemecê não está catita! Eu bem lhe dizia que era esse o traje que melhor lhe ficaria, e que vossemecê há muito o deveria ter usado.» (M. Pinto, in «Charivari» a 23/8/1890).

Esta mudança de vestuário poderia ser feita por revolução (que falhou), ou trabalho de sapa e, se o dia 5 de Outubro de 1910 é considerado como revolução, na verdade não passou de um pequeno empurrão ao trono, após um longo trabalho: «O estado das coisas actualmente é este: quando pensarem que (o palanque real) realmente está seguro – desabará. O bicho (republicano) rói-lhe o miolo, e as luminárias estão quase no fim. Os naturalistas chamam a este bicho a “phyloxera do Throno”, nós chamaremos ao trono a “phyloxera do povo”». (Sebastião Sanhudo, in «Sorvete» a 28/3/1880).

Esse trabalho, no qual a caricatura foi crucial, foi um trabalho de opinião: «O resultado das últimas eleições republicanas em Lisboa, estabelece a medida do movimento progressivo com que se vai apertando sobre os factos, a grande prensa chamada… a opinião» (Raphael Bordallo Pinheiro in «António Maria» a 10/11/1881).

A opinião é símbolo de liberdade de pensamento – é satirizar a política; é criticar a sociedade e o governo; é aquilo de que o governo não gosta, e por isso este trabalho contra a “Philoxera” do povo, nunca é pacífica. Contra estes desparasitadores, o governo tem à mão a polícia, a lei, a justiça e o juiz Veiga seria a mão ditatorial mais famosa contra o republicanismo.

«Enquanto a polícia se entretém a fechar as portas dos botequins republicanos, divertem-se os gatunos a abrir as portas aos cidadãos constituintes». (R.B.P. in «António Maria» a 25/5/1882). Um entretenimento que fechou vários periódicos, que impôs muitas multas, apreensões de edições, imigrações como fuga à prisão…

Não foi fácil esta luta, como não o é qualquer luta por um ideal e, se João Cabral se queixava da corda que prendia o «Balão Cativo» («O Zé é um balão aquecido pelo oxigénio republicano, mas a corda do governo monárquico é muito forte» - In «Binóculo, a 27/1/1884), com a forçada insuflação de muitos zés, a corda teve que ceder e quebrar.

O republicanismo venceu, mas também ele não conseguiu fazer triunfar os seus ideais ou projectos. Muitos continuam a olhar as névoas do passado, como se aí estivesse um D. Sebastião. Mas, o passado em Portugal foi sempre o desastre de um Alcácer qualquer, sendo por isso necessário um liberalismo, um republicanismo, uma democracia…. O presente está afinal no futuro, está na possível desparasitação da cabeça do Zé.


Tuesday, December 01, 2020

«Sem Máscara» um livro de Paula Oliveira Guimarães (com capa de Agim Sulaj) edição Gradiva

Sem Máscara um livro de Paula Oliveira Guimarães com capa de Agim Sulaj
um livro de contos de Paula Guimarães que nasceu de uma reflexão sobre as desigualdades aprofundadas pela pandemia

 

O livro de contos Sem Máscara nasceu de uma reflexão sobre as desigualdades aprofundadas pela pandemia. A autora Paula  Guimarães conversou com Catarina Furtado sobre a diversidade da sociedade portuguesa e o impacto que o COVID teve e tem nas nossas vidas.

Sem Máscara revela biografias imaginárias, mas inspiradas em pessoas reais que a autora conhece e que exemplificam as assimetrias sociais e a forma como as crises sublinham as desigualdades. Breves histórias de esperança e de infortúnio, narradas com espírito crítico e sentido de humor.


Assista à conversa em torno do livro de Paula Guimarães aqui.

Um livro já disponível aqui.



Caricaturas Crónicas - «Jorge Colaço: o humor antes do azulejo» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 20/10/1985)

Hoje, quando se passa pelas velhas estações do caminho-de-ferro. O azul de ferro, o azul e branco dos azulejos retratando recantos pitorescos da nossa paisagem, ilustrando episódios da nossa história, chamam-nos a atenção. São obras que fixaram uma certa forma de decoração nacional, obras que devem a sua redescoberta a um grande artista do humor, Jorge Colaço.

Claro que não foi por humorismo, que ele renovou o interesse pelo azulejo, mas fruto do trajecto de uma vida artística dedicada à observação do mundo português.

Os Colaço eram uma família portuguesa radicada em Marrocos há vários séculos e onde, várias gerações, mantiveram o Consulado Geral, ou seja, eram agentes diplomáticos de Portugal. Apesar destes cargos oficiais, o pai do nosso artista, o primeiro Barão de Colaço e Macnamara, era também um homem dedicado às artes da pintura e caricatura. Perante este interesse familiar pelas artes, é natural que existisse um incentivo para que Jorge Colaço se exercitasse nas artes, desde tenra idade.

Tendo nascido em Tanger, em 1868, veio para Lisboa fazer os seus estudos liceais. Terminados estes e, como as nossas Belas Artes não estavam tão belas como isso, partiu para Madrid, onde estudou com Laroche e Fontan. Também aqui, não ficariam satisfeitas as suas curiosidades artísticas.

Então, e graças ao apoio do conde Daupias, pôde ir maia mais longe na procura de um mestre. Em 1886 parte para Paris, procurando aprender os segredos do naturalismo, com o mestre espanhol Carmon. Em Paris, permanece sete anos, estudando e trabalhando. Como pintor, conseguiu expor uma tela no Salon de 1893, o que é um autêntico êxito. Colocar uma obra num salon era o sonho de todo o artista, já que significava ser aceite por um júri académico, era uma forma de consagração. Como “trabalhador”, conseguiu impor no prestigiado jornal «Figaro» as suas caricaturas.

Até então, não tínhamos tido notícias da sua arte de caricaturista mas, é natural que sob a orientação de seu pai, e como fruto do seu espírito satírico, sempre a tenha feito. Porém, só a partir do aparecimento dos seus trabalhos em Paris, se tem conhecimento da publicação delas. O «Figaro» era um jornal importante e para um português, nos anos 80 do século passado, entrar como seu colaborador, era um facto extraordinário. Além disso, se não me engano, Jorge Colaço foi o primeiro caricaturista português, como colaborador permanente, num jornal francês. Sete anos, permaneceu em Paris, teve êxito na pintura, teve trabalho na caricatura, mas… o espírito de Jorge Colaço ainda não tinha encontrado a sua tranquilidade, ou seja, a razão do seu futuro.

Em 1893, vemo-lo ingressar na carreira diplomática, como vice-consul de Portugal em Tanger. Mas, a  burocracia não é a melhor forma de disciplinar o espírito irrequieto e criativo de um artista e, naturalmente, em 1896 muda de novo de rumo, ou antes, regressa ao caminho anterior, regressa às artes.

Passando por Lisboa, é convidado a dirigir o Suplemento Humorístico do «Século», lugar que aceita. O cargo de director conjuga então a carreira de caricaturista de êxito. Um dos factores da apreciação do seu traço, é a sua filiação no movimento estético predominante na altura. Aqui está algo curioso: um artista que nasce em Tanger, que vive pouco tempo em Lisboa, que fez estudos artísticos no estrangeiro, seguia fielmente a escola rafaelista.

É certo que a escola donde partiu Raphael Bordallo Pinheiro foi o naturalismo, o mesmo estilo que ele procurou nos mestres estrangeiros, só que Raphael separou-se do naturalismo, acrescentando-lhe o barroquismo romântico irónico, criando uma escola diferente de olhar o mundo. Os Mestres, predominantes de Madrid e Paris, tinham traços diferenciados dos de Raphael, mas foi este último que exerceria maior influência sobre o Jorge Colaço humorista. É verdade que não se pode considerar um discípulo tão fiel, como Francisco Valença, já que no seu traço desaparece um pouco de barroquismo, em favor da simplicidade, mas continua a pertencer á escola rafaelista (Bordalliana).

Permaneceria dez anos como director do Suplemento de «O Século» (1897 – 1907), publicando posteriormente os seus trabalhos caricaturais em jornais como «O Dia», «Voz», «Fradique»… Em 1913 fundaria o seu próprio jornal, o «Thalassa» (pró-monárquico), o qual só sobreviveria dois anos.

Poucos têm sido os artistas que conseguem sobreviver apenas com os trabalhos para os jornais e, desta forma vemos Jorge Colaço a trabalhar em pintura de temática histórica, ou em azulejaria.

No princípio do século, a arte do azulejo estava moribunda em Portugal, mas o interesse de Colaço, o seu estudo de novos processos técnicos, a sua criatividade, fizeram o renascimento do azulejo. È certo que nem sempre os painéis criados no seu estúdio foram excelentes, mas a culpa não foi sua, mas de um gaiato que, por preguiça, em vez de seguir os «cartões», desenhava nuvens por onde vagueava o seu espírito. Esse jovem era o José Herculano Stuart Carvalhais, e foi neste estúdio, observando o mestre a fazer os «bonecos» para o «Século», que ele aprendeu as primeiras manhas do ofício, e que pela sua mão entrou no mundo dos jornais.

Entretanto, po caricaturista de graça espirituosa, mas caustica, foi desaparecendo  da imprensa, perante as encomendas de painéis e telas. Em ambas estas ultimas artes, as paisagens ou os temas históricos dominaram.

Viria a morrer com 74 anos, em 1942.


Caricaturas Crónicas - «Portugal: um país de andorinhas» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 8/9/1985)

Um povo conhecido pela sua intranquilidade, é o nosso. Nunca ficou satisfeito com o seu Estar e, por isso mesmo, foi à terra dos mouros, foi à procura de novos continentes e, ainda hoje, procura o quinto império, só que agora a nível psicológico, como compensação das frustrações materiais.

O português é um povo de migrantes, como as andorinhas: brancas na barriga, pois têm uma fome insaciável; negras nas costas, pelo pesado castigo de manterem uma tradição de saudade e amargura. Algumas dessas andorinhas conseguem-se adaptar ao Inverno do nosso descontentamento. Outras, procuram novas terras, em busca da eterna Primavera.

Se os seus conhecimentos zoológicos ainda estão actualizados, creio que as “andorinhas” migrantes se dividem em três espécies: as «obreiras», os «zangões» e a «rainha». As «obreiras» são aquelas que, deslocadas da sua sociedade por condicionalismos económicos ou sociais, são obrigadas a procurar outros territórios. São também aquelas que, pelo desequilíbrio ecológico da terra onde nasceram, têm que procurar campos mais férteis. Chamam-se obreiras, porque emigram quase com um compromisso de escravidão, onde o alimento custa as penas do bico.

Quanto aos «zangões», não me lembro se é esse o seu verdadeiro nome, ou se na realidade se devem denominar como mandões. São uma raça de cabeças grandes, enquanto a anterior se caracteriza pelas patas grossas e calejadas. Uma diferença morfológica que, na linguagem comum identifica a sua migração com a «fuga de cabeças».

Eles, na verdade, não são emigrantes, são aquisições para outros territórios. Saem da sua terra natal, não por desequilíbrio ecológico na alimentação, mas por atavismo dos seus governantes, por falta de equilíbrio ecológico-cultural. Naturalmente, a abundância nos outros territórios também está  nas razões da opção do trajecto migratório.

Para ambas as raças de andorinhas, existem duas vias de migração, ou seja: do campo para a cidade, onde os beirais parecem mais acolhedores, mais ricos; do país natal para o estrangeiro, onde o trabalho parece menos cansativo, e a recolha do alimento mais facilitada.

Finalmente é a «rainha», mas essa nunca migra. É uma «andorinha» que perdeu as asas da imaginação, e que nem sempre utiliza as patas do progresso. À rainha, também lhe chamam «Governo burocrático» que procura viver do trabalho das economias das outras andorinhas.

Após esta deambulação zoológica, veio-me o receio de esta análise cientifica não ser muito correcta. É que na verdade não sou especialista de andorinhas, nem de aves migratórias mas, toda esta conversa nasceu perante esta caricatura de Raphael Bordallo Pinheiro («As Andorinhas da arte» – cronicando a viagem do grupo de Teatro do D. Maria II – Paladini e Brazão – para o Brasil), o nosso primeiro grande caricaturista, e o primeiro emigrante da nossa caricatura.

A migração na caricatura começou muito cedo. Primeiro imigraram as gravuras humorísticas inglesas para Portugal. Depois, seriam os nossos desenhadores, a conquistar o mundo. O primeiro poiso migratório foi o Brasil, terra onde brilhava o ouro, e lá estiveram Raphael Bordallo Pinheiro, Julião Machado, Celso Hermínio, Correia Dias…. e muitos outros. Uns por lá ficaram uns anos, outros, toda uma vida. Não era fácil sobreviver naquele território ainda «selvagem», onde cada crítica satírica ou caricatura, poderia ter como resposta uma emboscada, ou um tiro pelas costas. Porém, a persistência de algumas aves migratórias criaram um novo território caricatural.

Outro pólo de atracção foi Paris. Aqui o que reluzia não era propriamente o ouro, mas a constante intranquilidade estética, e a fama na capital das artes. Viver em Paris, para o artista dos séculos XIX e XX, é uma etapa fundamental do seu percurso artístico.

O caricaturista, como qualquer outro artista plástico, tinha também esse sonho. Por lá passaram, por exemplo: Jorge Colaço, Leal da Câmara, Julião Machado, Emmérico Nunes, Stuart Carvalhais… e todas as gerações modernistas. Mas, o que é curioso é que alguns destes nomes que referi, não só lá estiveram a estudar as artes, a trabalhar para sobreviverem, como se impuseram, ganharam o respeito de seus companheiros, como atingiram alguma fama.

Entretanto, no século XX também a Alemanha, e a sua via expressionista, atraíram nomes como Emmérico Nunes, Bernardo marques…

País de andorinhas migratórias, Portugal é a terra do sonho e da saudade. É a terra de nascimento e morte, é o branco da esperança e o negro do luto, branco e negro com que se faz a caricatura e a sátira deste país nidificado à beira-mar.

 


Monday, November 30, 2020

STOP WAR, MAKE SMILE - International Cartoon Web Contest 2021, Azerbaijan


 COMPETITION RULES:

 1. open competition for cartoonists all over the world.

The participation is free of charge.

THEME: STOP WAR, MAKE SMILE

2. Will be submitted not more than 5 works

3. Deadline: January 15, 2021.

Works must be digitized in 300 DPI resolution, RGB color mode, in JPG format, with a maximum size of 2 MB.

4. Send your cartoons and your CV to the e-mail address:

stopwarcontest@gmail.com

5.The contest results will be announced on the 20 January 2021

6.The International Jury will award the following prizes for the best works

GOLD Medal, Special Honor Diploma

SILVER Medal, Special Honor Diploma

BRONZE Medal, Special Honor Diploma

5 Honorable Mention: Diploma

7. For further information, please e-mail us to: stopwarcontest@gmail.com 

GOOD LUCK!

Bahram Arif Bagirzade,

Actor, publisher, honored artist of Azerbaijan.

Seyran Caferli

Director International Cartoon News Center


Caricaturas Crónicas - «Carlos Botelho: o humorismo como “eco”» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 18/8/1985)

Todos o conhecem como o Pintor de Lisboa, conhecem as suas telas róseas, onde a cidade se transforma em cenografia. Mas poucos conhecem o traço fugidio que registava, com rara ironia, os «ecos» da sociedade alfacinha. Botelho viveu e retratou o invólucro e o interior desta cidade conhecida por Lisboa.

«Que me recebeu, foi o Pedro Bordalo, administrador, que era um homem muito atencioso. Eu levava uma folha com desenhos de crítica à vida de Lisboa. Ele viu, viu com atenção, e só me perguntou assim: você é capaz de fazer esta coisa todas as semanas? Respondi que sim. Fiquei vinte e dois anos no Fixe».

Assim nasceu um humorista. A sua arte de humor não era a mesma de seus companheiros, já que estes a procuravam fundamentalmente pelo traço caricatural, ou pelo lado da crítica política, enquanto ele a procura como grafismo como grafismo traductor de ambiências e de atmosferas sociais.

Claro está que estou a falar de Carlos Botelho, o lisboeta que nasceu em 1899 sob a direcção harmónica de seu pai, músico de profissão. Sob a tutela dele, crescerá aprendendo a conjugar as harmonias, as tonalidades mais adequadas para cada sentimento, os andamentos para cada tempo.

Começando por um vivace juvenil, passaria por um adágio da maturidade, terminando num harmonioso andante. O violino seria o seu companheiro nos momentos de lazer, e não os profissionais, já que estes foram dominados pelos pinceis e os lápis, os quais seriam os transcritores fundamentais das suas obras mestras.

Apesar das suas primeiras obras a serem expostas, serem a óleo, iniciaria a sua carreira artística pelo desenho, o qual estudou com o mestre Condeixa. Por essa razão, nos anos vinte, vemo-lo dedicado à ilustração infantil, à ilustração de revistas e livros, à cerâmica, às artes gráficas, ao cartaz e ao humorismo. Este último, a partir de 1928, quando disse «sim» a Pedro Bordalo. Um início de carreira através das artes gráficas, porque «começa-se sempre pelas artes gráficas por necessidade monetária e, além disso,elas abrem as portas da pintura».

A pintura só viria, como dominante, um pouco mais tarde, enquanto o humorismo era a sua ferramenta de descoberta: «A pessoa interessa-me no humorismo, no “portrait-sinthése”, porque aí eu sou livre. Pela caricatura nunca tive grande interesse. A caricatura é a anedota e não podemos passar o dia a contar anedotas. Com o humorismo é diferente: é a crítica a factos e situações. De resto, está perfeitamente integrado na minha maneira de ser, porque me interesso sobretudo pelos ambientes: na pintura procuro traduzir os ambientes das grandes cidades ou de populações; no humorismo é ainda o ambiente que me interessa: a crítica à sociedade.

A sua crítica social ficaria registada durante vinte e dois anos, numa página do «Sempre Fixe», com o título de «Ecos da Semana». Aí, «fazia um apanhado do que se passava no país, com especial interesse por Lisboa». Uma página onde o desenho não aparecia como interesse formal, mas suporte, como «armação linear», a ironia reinava como crítica a uma sociedade que desejava parecer mundana, quando era provinciana, que desejava ser aberta, quando a censura reprimia.

No seu trabalho semanal, Botelho foi tipificando esta sociedade alfacinha numa série de formas de estar. Assim, encontramos no seu desenho crítico o: «Parece-mal» - a crítica ao falso moralismo tipificado no indivíduo de fato e gravata, como fachada civilizadora e que vai caracterizar os subservientes do Estado Novo; o «Escarre-cospe» - a Lisboa porca onde a salubridade é posta em causa por actitudes grosseiras, numa sociedade dita civilizada; «D. Encrenca» - a senhora bojuda que só complica a vida, representando o espirito intriguista do nosso povo, em especial da mulher citadina; «Arrepanhadas» - «inspirado nos penteados das senhoras refugiadas (da II Guerra Mundial) que não tinham dinheiro para ir ao cabeleireiro e criaram uma moda de penteado: arrepanhado»; … mas de todos se destaca o «Piu», «o mocho que ocupava o espaço dos desenhos censurados». Desta forma, Botelho criava uma simbologia crítica à falta de liberdade de imprensa, um símbolo da inteligência que se opunha ao obscurantismo, que significava a castração das ideias.

Entretanto, após uma viagem a Paris, “descobre” a pintura e Lisboa (1930), uma cidade cenográfica onde as pessoas perdem o valor, sendo substituídas pelo seu espírito, pelas ambiências, pela ingenuidade - «…o mais importante é a atmosfera, a ambiência, a transparência, são os planos… As pessoas estão lá em espirito».

Outra característica da sua Lisboa é a cor rósea - «Lisboa, cuja situação geográfica, caracterizada pelas suas sete colinas caprichosas, em que as casas encostadas umas às outras se descobrem mutuamente, como cartas de jogar, em que os pregões das vendedeiras, integradas na sua paisagem, são alegres e ingénuas- não pode ser uma cidade de cor amuada». A cor de Lisboa, um cavalo de batalha de Botelho, que lutará pela alegria para a cidade.

Carlos Botelho, pelo desenho ou pintura, pela crítica à sociedade, ou cenografia da cidade, retratou Lisboa ao som do seu violino: «Todos os dias desenho ou pinto (é a minha razão de ser), isto entremeado com uns bocadinhos semanais que faço de música de câmara (como violinista), com o meu grupo de amigos, todos amadores como eu». Porém, o seu violino daria a sua última nota em 1982.

PS: Todas as citações de dizeres de Carlos Botelho foram recolhidas presencialmente pelo autor, em encontros com o artista no seu atelier.


Sunday, November 29, 2020

Caricaturas Crónicas - «Francisco Valença: um jornalista gráfico?» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 21/7/1985

Os seus primeiros desenhos, apesar de seguirem o traço de Raphael Bordallo Pinheiro, não o seguiam quanto ao espírito, já que estavam imbuídos de uma sátira agressiva, que o levou várias vezes ao Governo Civil.

 

«Eis o Espectro. Nesta hora tremenda, hora talvez fatal, há quem graceje como em pleno Carnaval» (F. Valença in «O Espectro» nº0 de 18/5/1925)

Gracejar com a vida no dia-a-dia, fazer crónica de humor gráfico com as aventuras e desaventuras da política, com as relações, os acontecimentos, a forma de estar na vida social, é a profissão de homens ligados aos jornais, mas que não são considerados como jornalistas. Jornalista é o indivíduo que trabalha as notícias das aventuras e desventuras da política; das relações e acontecimentos da sociedade para os jornais. Então, o que são estes cronistas gráficos? Nas artes, são conhecidos como caricaturistas, ilustradores de humor, cartoonistas, enquanto que… no sindicato dos jornalistas não são conhecidos.

«A caricatura, seja ela pessoal ou política, fantasista ou anedótica, constitui uma expressiva e eloquente manifestação artística. Com uma vantagem: todos a compreendem, desde que não sejam cegos». Isto , segundo Valença, é o desenho de jornal, uma forma de fazer jornalismo eloquente e expressivo. Isto foi a vida de um artista que dedicou toda a sua vida á imprensa.

Francisco Valença é o seu nome e nasceu em Lisboa a 2 de Dezembro de 1882, em pleno período áureo da caricatura rafaelista.

Como já referi numa crónica anterior, a presença de Raphael foi como que um sol que ofuscou toda a experiência estética da ilustração humorística, e poucos conseguiram fugir à escola bordalliana. Valença não foi a excepção, antes pelo contrário, uma das mais importantes vozes dessa escola, perdurando esse traço barroco-naturalista até meados do nosso século.

Os seus primeiros trabalhos saíram no «Chinelo», um jornal que ele próprio fundou e dirigiu em 1900, mas que só publicou 11 números. Nesta altura era facto corrente cada artista criar o seu jornal na tentativa de triunfar junto ao público, o que provocava um constante rodopio de falências e criação de novos títulos. Estes seus primeiros desenhos, apesar de seguirem o traço de Raphael, não o seguiam quanto ao espirito, já que estavam imbuídos de uma sátira agressiva, que o levou várias vezes ao Governo Civil.

Depois do «Chinelo», colaborou em jornais como a «Comédia Portuguesa», «Gafanhoto», «Supl. de O Século», «O Moscardo», «O Mundo», «A Capital», «Diário de Notícias», «Tiro e Sport», «Sátira», «Ilustração Portuguesa», «Espectro», «Arte Musical», «Alma Nacional»… mas de toda esta profusão de colaborações , três obras se destacam:

Em 1909 Valença inicia a publicação dos «Varões Assinalados», um álbum de glórias com caricaturas a cores publicado em forma de folhas soltas mensais. Uma edição de qualidade que durante três anos apresentou uma série de individualidades nacionais caricaturadas pela pena de Valença e escrita de insignes escritores.

«O riso como o bocejo… e a tinta de copiar são comunicativos. Rimo-nos nós, vós e eles. Foi tudo “raso” com “riso”. E foi assim que a nossa “graça” caiu nas “boas graças” de toda a gente. Até a sisuda e ilustre Sociedade Nacional de Belas Artes, influenciada pelo nosso bom humor, vae modificar e actualizar a sua legenda bíblica “No in solo pane vivit homo”. D’ora avente a Vénus de Milo será substituída, no papel timbrado, pelas três graças, levando em português esta legenda correcta e aumentada: “Nem só de pão… de milho vive o homem, mas das palavras… do Catálogo Cómico”». São palavras de Carlos Simões, o colaborador de outra das obras insignes de Valença: os Catálogos Cómicos das Exposições da Sociedade de Belas artes. Estes aparecem pela primeira vez em 1913 e prolongaram-se por mias de dez anos. Nestes catálogos os quadros expostos eram satirizados pelo desenho de Valença e palavra de Carlos Simões.

Por ultimo, em 1926 apareceu o «Sempre Fixe», o jornal de humorismo mais importante do nosso século, e Valença assumirá um lugar de destaque neste periódico. Se por vezes a sua obra passou despercebida em jornais anteriores, neste dominará as primeiras páginas, travando um certo modernismo dominante nos jovens desenhadores (que publicam no interior), investindo numa melhor qualidade gráfica do seu traço, ou numa maior concentração do comentário ao dia-a-dia, trabalho que realizou até à morte, em 1959.

Se no âmbito estético, a influencia de Raphael foi castrante, impondo-lhe o “gag” de natureza literária, com um estilo de traço fixado desde as suas primeiras obras, no humor após as primeiras experiências satíricas caminhará para uma ironia discreta (mais a gosto de Raphael) para a crónica humorística de um comentador do quotidiano. Um trabalho de tantos anos que lhe deu a técnica perfeita da notícia necessária.

Francisco Valença, como outros artistas seus companheiros que antes dele e depois dele dedicaram uma vida aos jornais: «Trabalho até quando os outros descansam aos domingos; pode tudo desertar, mas eu tenho de ficar debruçado sobre uma mesa para o “Sempre Fixe”». Será que poderão ser considerados como jornalistas?


«História da Arte da Caricatura de Imprensa em Portugal- 1933» Por Osvaldo Macedo de Sousa

A CARICATURA DURANTE O ESTADO NOVO

1933 

Esta data, no âmbito da história da caricatura não tem qualquer significado especial, como já referi no volume anterior. Esta escolha é imposta por via ditatorial, por vida política do país. Com a publicação da nova constituição nasce um novo regime, institui-se uma nova ordem social.

Essa nova ordem impõe uma monocromia, não só para as esquerdas, como para as próprias clivagens de direitas, sendo diversos dirigentes fascistas afastados da capital, em exílios temporários dentro do país, ou perseguições a órgãos de comunicação, como o jornal "Revolução" do Partido Nacional-Sindicalista de Rolão Preto. Este último, chefe da extrema-direita dos camisas azuis, será perseguido, e afastado da política. Para melhor harmonizar esta monocromia ideológica e cultural, é criada a 25 de setembro o Secretariado de Propaganda Nacional, que tem como responsável António Ferro.

Contudo a oposição mantem-se activa, apesar de constantemente fracassada, como é o golpe militar de Bragança a 27 de Outubro.

A caricatura se vivia por um lado, um período mau, tendo que se restringir na liberdade de expressão e irreverência, vivia por outro lado um bom momento estético e satírico.

Um bom momento satírico, porque apesar de estar já vigente a censura prévia, esta ainda tinha muitas frinchas por onde o humor, a ironia, mesmo a sátira se escapavam, e tornavam o humor mais agradável. Era um jogo entre a inteligência criativa e a estupidez política. Um jogo entre o léxico da língua e as limitações culturais dos censores. Este jogo irá endurecendo ao longo de toda esta década

Um bom momento estético, porque ainda vivia no limiar da decadência da primeira e segunda geração modernista, com obra de Almada, Barradas, Soares, Emmérico, Marques, Stuart, D. Fuas… Que tinha um novo balanço com a terceira geração, pela obra de Botelho, de Lemos, + Além, Tom, Teixeira Cabral… Não esquecendo académicos, como Francisco Valença, Alonso, Amarelhe… que prolongavam na imprensa nacional a sombra do raphaelismo, como fórmula de jornalismo satírico actuante, e irreverente bem ao gosto nacional.

O certo é que o humor gráfico ainda se mantêm na linha da frente da vanguarda nacional, ainda se mantêm em alta na irreverência e criatividade intelectual do país. Como curiosidade, encontrei uma notícia que durante este ano, se verificou em Vigo um Salão de Humoristas Portugueses e Espanhóis. Para além desta referência, não encontrei mais informações, por agora.

Em relação à imprensa, também não nos podemos queixar. É certo que continuamos a encontrar tentativas de sobrevivência falhadas de alguns jornais humorísticos, como é o caso deste ano de 33 com o "Maria Rita" ou o "Pirolito", curiosamente ambos do Porto, encontramos como contraponto "Os Ridículos" e o "Sempre Fixe" solidamente estabelecidos. No Funchal sobreviverá, durante alguns anos, o "Re-nhau-nhau", um trimensário humorístico dirigido por Gonsalves Preto, e onde trabalharão o artistas gráficos Malho (Manuel Rodrigues), Teixeira Cabral, Ivo… e onde iniciarão a sua carreira os jovens João Rosa e Paulo Sá Braz. Este jornal tinha a particularidade de ser quase artesanal, já que não havendo técnicos de gravura na Madeira, eram os próprios artistas que se encarregavam de desenhar, depois passar para a madeira ou linóleo, paginar, etc.

Por outro lado, toda a imprensa noticiosa já se convenceu da importância da existência de um espaço gráfico ligado ao humor nas suas páginas. Essa colaboração não terá um peso constante, verificando-se momentos de grande colaboração dispersa, como o desaparecimento de qualquer colaboração, ao mesmo tempo que vão tentando mudar a perspectiva de colaborações a avulso, para terem um colaborador mais permanente, um humoristi que se manterá como imagem gráfica dessa publicação.

O maior problema dos humoristas portugueses não será propriamente o espaço de publicação, mas espaço para as suas colaborações. É que a partir da década de vinte vamos encontrar um crescente de presenças de trabalhos de artistas estrangeiros. Primeiro foram os espanhóis, os franceses, para agora sermos invadidos pelos ingleses e americanos, através das Syndications que colocam os trabalhos dos seus associados por um bagatela, em jornais de todo o mundo. O preço a que os jornais compram esses trabalhos inviabiliza qualquer concorrência nacional. A salvação dos artistas portugueses é que esses artistas estrangeiros não faziam caricaturas dos portugueses, não comentavam o dia a dia típico do português, obrigando os nossos jornais a complementar essas importações de entretenimento, com ilustrações de âmbito mais nacional.

Mas como referi atrás, os jornais que dominam o mundo gráfico-humorístico destes anos, são "Os Ridículos", e o "Sempre Fixe". No primeiro, encontramos a presença dominante, quase ditatorial de Alonso. No segundo, quase todos os que a este campo se dedicam com qualidade, ali têm espaço. O "Sempre Fixe" será, inclusive o bastião do modernismo humorístico da terceira geração, com presenças marcantes como a de Carlos Botelho, de Almada, Stuart… contudo o académico Francisco Valença, por ter a quase exclusividade da capa, pelo seu peso satírico, impõe-se não só como imagem de marca daquele periódico, como destes anos de ditadura. É um reinado respeitado e homenageado por todos, como por exemplo pelo jornal "O Diabo” que a 31/3/1935 escreverá : Francisco Valença é um artista que põe sempre na sua arte uma intenção social. Poderão objectar-nos que toda a criação do espírito tem, ou pelo menos, deve ter significado social. Todavia, nem sempre esse intuito se verifica, mormente, numa modalidade artística em que o humour parece, para pessoas pouco perspicazes, constituir desprendida superficialidade.

Os desenhos de Valença, sem seus pormenores satíricos e factos e homens merecedores de correctivo, são admiráveis lições ministradas a pessoas sisudas.

Ao contrário do que muita gente pensa, a caricatura é uma arte séria. Dizemos isto sem ar pretensioso de paradoxo, ou de fútil intenção de facécia. É na deformação do traço que o verdadeiro caricaturista procura corrigir tanta coisa disforme que observa nas sociedades e nos indivíduos. É essa maneira de interpretar que torna a caricatura uma arte tão profunda que só ela consegue reunir esta dualidade humana: o riso e a tragédia. Nesta há sempre esgares de fossa, como naquele se pode pressentir a dor que lhe anda próxima.

Não será, pois, a caricatura uma enorme obra de crítica traçada em estilo descuidado ? Há tempos estivemos folheando uma edição da Bíblia em … caricatura. Os versículos desse livro eram comentados, interpretados e reproduzidos… em desenhos caricaturais. Temos lido várias críticas escritas, ao citado livro. temos meditado sobre o que filósofos a tal respeito, têm escrito. Pois, confessamos: nenhum dos muitos pensamentos provenientes da fria análise crítica de tantos contraditores provocou em nós tão esclarecida revelação comentadora como a do artista que escreveu a Bíblia… em caricatura.

Este facto é mais que suficiente para justificar a seriedade da caricatura.

Francisco Valença é dos artistas que constroem. Os seus desenhos obedecem à missão elevada que se propôs: ad nihil redigere.

Por isso eles ficarão como valiosos subsídios documentando uma época de ridículos e de injustiças.


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