Friday, December 04, 2020

Caricaturas Crónicas - «Celso Herminio – um caricaturista cheio de sonhos» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 23/2/1986)

«E uma alma viril nas delicadas feições de um adolescente. Os olhos são vivos, grandes e francos; a cabeça é sugestiva; sem as exagerações decorativas dos falsos artistas, natural de gestos, sóbrio de ademanes, à parte o constante sorriso irónico que lhe brinca nos lábios finos e descorados» (Alberto Meira, in «Apontamentos para o Perfil do Artista»)

Um sorriso irónico que brilhou como um «cometa» no nosso firmamento caricatura, numa expressão que quase ofuscou o sol rafaelista, não tivesse o seu futuro sido tão curto. Falamos de Celso Hermínio, o eterno adolescente que do sonho dez sátira mordaz, que fez graça e crítica na sociedade.

Celso Hermínio de Freitas Carneiro, filho do escritor e dramaturgo General Gaudêncio Eduardo Carneiro, herdaria de seu pai a sensibilidade artística e o espírito guerreiro. Nascido em Lisboa, em 1870, encontramos os seus primeiros esbocetos caricaturais em S. Miguel, Açores, onde acompanhava seu pai, manifestação já de um espírito em irreverencia, num mundo de ordem e disciplina.

Como «bom filho», seguiu as pegadas de seu pai, ingressando na carreira militar, às ordens de el-rei. Só que nem el-rei, nem a disciplina eram das suas simpatias e, perante o fracasso da revolução republicana de 1891, Celso foi obrigado a procurar nova carreira. As facilidades de expressão estética das suas mãos, conjugadas com o espírito guerreiro do soldado, indicaram-lhe o caminho do futuro – a caricatura.

«Celso Hermínio, quasi uma creança ainda, mercê d’um talento grande, desequilibrado, crivado de geniais lampejos, e de somnolencias estranhas, tem-se em poucos anos elevado bem acima do nível em que se rastejam os banaes e os nulos.

/…/ Onde começou essa carreira que parece conduzi-lo a um brilhante futuro? Pela bohemia artística, nas mezas dos cafés, pelas redacções dos jornais, onde começou a dar sahida aos borbotões de ideias que lhe irrompiam da imaginação vivaz por meio da penna, antes de encontrar a vazante mais adequada às suas faculdades – o lápis» (Ribeiro Arthur, in «Artistas Contemporâneos).

Foi pois na boémia artística que Celso se encontrou, foi na camaradagem com Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro, com os «Nefelibatos», com os «Novos» que despontou a sua veia artística.

Fervendo de revolucionarismo, o seu trabalho aparece como campanha panfletária de humorismo cáustico, numa intervenção directa contra o regime e contra as individualidades políticas.

Quebrando com a tradição bordalliana da ironia constiticionalizada, Celso inicia uma carreira conturbada como director artístico de um periódico que não conseguiria publicar mais do que três números, o «Universal – Supl. Humorístico» (1892). Em 1894, colabora com os Bordallos no «António Maria», mas a sua agressividade de traço e satírica chocava com as directrizes do jornal. Entretanto funda «O Micróbio», seguindo-se «O Berro», jornais de vida curta, mas influente. Vida de luta e perseguições, luta pelo ideal republicano, e perseguição monárquica. Neste confronto, Celso Hermínio e Leal da Câmara (entretanto cúmplice de traço e amizade) encabeçaram o espírito revolucionário-satírico, enquanto o juiz Veiga se impunha como o contrapoder, simbolizando a repressão, a «rolha» da liberdade de Imprensa.

A sobrevivência monetária e política era-lhe difícil, neste país onde a censura apertava cada vez mais o cerco. Por essa razão, aceitará um convite do Brasil, e para aí partiria em 1897, encerrando-se desta forma o primeiro ciclo da sua obra. Neste período de ânimos revolucionários e causticidade satírica, «o seu lápis contundia as carnes da vítima alvejada. Não era um lápis: era uma moca» (Alberto Meira). Partindo da linha romântico-barroca, própria da escola rafaelista, o seu traço evolucionou para linhas sintéticas, mas marcantes, nervosas, mas firmes, numa interpretação «impressionista» da vida

No Brasil manter-se-ia apenas 14 meses, porque apesar das condições económicas serem excelentes, nem o ambiente social, nem o clima lhe eram favoráveis. Regressou desiludido e doente.

De novo em Portugal, funda em 1899 «A Carantonha», um jornal efémero, e trabaçha como colaborador em vários jornais lisboetas, ou ilustrador de livros.

Nesta segunda fase, a agressividade do combatente amaina, não por desistência na luta, mas por mudança de estratégia. A obra do guerreiro dava lugar à obra do crítico, mantendo contudo os mesmos ideais.

Deste período, destacam-se as suas páginas de segunda-feira no «Diário de Notícias», crónicas de costumes e da vida, retalhos sem desdém, sem agressividade, antes pelo contrário, com graça e ironia: «Uma das feições da sua caricatura - escreve «O Dia», no elogio fúnebre – é não beliscar ninguém. Os seus traços são cheios de ternura e de bondade. Desenha os costumes do meio em que vive, apanha-os em flagrante, sem uma aspereza que moleste, sem esquinas e sem arestas».

«Um caricaturista cheio de sonho», como o definiu Guerra Junqueiro, porque como sonho ficou a sua obra possível, sonho porque foi a expressão de um ideal que nunca o abandonou.

Porém, Celso Hermínio só pode ser uma breve expressão de uma sátira possível, de uma estética possível, foi o anúncio de um modernismo expressionista que só triunfaria uma década após a sua morte. Foi um precursor que não teve mais tempo do que indicar um caminho, morrendo em 1904 com 33 anos. Da sua obra, ainda hoje resta desconhecida a sua faceta de pintor, que existiu na intimidade de um curto círculo de amigos e família.


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