Friday, November 24, 2006

Caricaturas Crónicas 21

O FUNCIONÁRIO
Por. Osvaldo Macedo de Sousa

Anúncio: «Nas repartições mais bem pagas do Estado precisa-se de
empregados que queiram passar algumas horas d'aborrecimento
em serviço da Nação. Fornece-se-lhes papel e tinta: contínuo às ordens;
lume para aquecer os pés no Inverno e relógio adiantado.
Férias para todo o mês de Setembro de cada ano, nos dias de gala e santificados.
Entrada das 10 às 3 da tarde (podendo fechar a gaveta às duas).
Os pretendentes apresentarão até uma arroba de cartas de empenho,
e não precisa saber escrever. Pede-se que haja a maior
concorrência a estes lugares, para bem da Nação»
(Sebastião Sanhudo, in O Sorvete, 25/9/1881).

O funcionário, nomeadamente o público, porque o privado tem a sua privacidade mais em guarda, nunca foi bem encarado por aqueles que têm que suportar as bichas, que são cada vez mais; que têm que sofrer o reumatismo burocrático, sem remédio. O funcionário, por essas mesmas razões, não é apenas um trabalhador, mas um remédio, um supositório (de informações), um bode (sem sentido pejorativo) expiatório da raiva ao poder burocrático, seja do simpatizante ou opositor governamental.
O funcionário foi, ou é, uma criação laboral para diminuir os desafortunados, desprovidos de herança, de costas ao alto, o símbolo de um trabalho invejado por aqueles que o relógio de ponto é o nascer e pôr do Sol, daqueles que nasceram poetas das visões tangentes, solares.
Em Portugal, como na Europa, as profissões eram normalmente hereditárias, ou congénitas como doenças, e só com a dita revolução tecnológica/científica do século passado se conseguiu alterar essa sequência natural do saber, para se perder na vacina escolar.
Nesses tempos «nascia-se amanuense, governador civil, par do reino, deputado, ou director-geral, como se do ventre materno se trouxesse já, por uma fatalidade orgânica, o estigma desse destino funcional, semelhantemente ao que acontece com tantos e variados tipos anómalos que surgem à luz da existência na deformada série que vai do lábio leporino ao pé boto. Ser empregado público, não ir à repartição era o ideal de todo o portuguesinho valente, que sabia, pela influência dos seus progenitores cadastrados na regulamentada rotação da política dinástica, ter direito ao usufruto». (Cristiano de Carvalho, in Revelações, Lis boa, 1932.)
Hoje, a hereditariedade dinástica foi abolida, como se uma revolução pudesse alterar as conquistas, em sorna, de vários séculos, em portuguesismo. Entretanto, as profissões perderam grandemente a tradição familiar, conservando-se, contudo, a tradição dos melhores postos laborais para os familiares, ou amigos mais próximos.
A competência, num país de lebres e furões, não é relevante, porque, como garante o Respeitável Conselheiro (bem sentado sem fazer nada; enquanto os decretos, portarias, ofícios, reformas… esperam amontoados): - Isto de heróis: só por antiguidade» (Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, in António Maria, 16/12/1897.)
Antiga é a passividade portuguesa, que em linguística se diz burocracia, como se burros fôssemos todos nós, e os crácios fossem imperadores, como o funcionário Pancrácio.
Fazer funcionar, em competência e rapidez, seria o trabalho missionário do funcionário, quando ele está vocacionado, em alturas que as vocações faltam, a não funcionar, na medida em que o não funcionário também não funciona, mas reclama. O funcionário é a burrocracia na luta heróica contra a estatística do desemprego, é o Estado «d’aborrecimento em serviço da Nação».

Thursday, November 23, 2006

Caricaturas Crónicas 20

BANHADAS
Por: Osvaldo Macedo de Sousa

Narra a lenda que quando o rei fazia anos, o reino metia água, ou seja, era a altura do banho anual do súbdito. Hoje, com a implantação republicana, as lendas e narrativas são outras, assim como as banhadas.
Já não há reis, mas presidentes, só que estes proliferam nos clubes, administrações, mesas, assembleias, freguesias... o que provocou um natural aumento, inflacionário, de dias de banho.
Tomava-se banho como penalização real, toma-se banho por satisfação termal, já que, entretanto, após as glaciações invernais, foi aquecendo o tempo, político-climatológico, provocando os «verões quentes», e quentes verões. Se, nos primeiros, as banhadas são impostas, nos segundos, surgiu o banho como descoberta da nobreza ociosa, da gente de sociedade, que das redes de peixe fizeram rendas de bilros. Foi a descoberta da areia; do sol, da água como recreio, a moda do despir, das temporadas de praia.
As temporadas são períodos de tempo, o qual é soalheiro ou invernoso, como se os extremos fossem unos em lazer. As temporadas da neve, e as do mar polarizam assim os gostos, que as meias-tintas são a monotonia do burguês em pantufas.
Num país de praias e descobridores, a capital descobriu a moda das estâncias balneares em Pedrouços, depois AIgés... Caxias... Carcavelos... Parede... Estoril... o «Tejo de Christal», um prazer que se foi afastando, até o cristal passar a garrafão, e finalmente em plásticos e esgotos.
Se foi difícil a implantação do gosto pelo banho, hoje os preparativos para o banho em certas zonas coincidem ainda com os trâmites de outros tempos: «Tendo esperado confiadamente que passem os caniculares e que o tempo assente, resolve-se tomar uma deliberação. - Não se me irá transtornar a natureza?.. - Em todo o caso sempre me purgo... - Venha lá uma gotinha d'água pela cabeça... (de regador)» (Raphael Bordalo Pinheiro, in «Antonio Maria», de 16/9/1880).
Instituindo-se algumas dessas praias, como medicinais, mantêm hoje os mesmos trâmites, só que inversos. Antes ia-se primeiro ao médico, agora vai-se depois.
Os banhos de água doce toleravam-se por imposição, enquanto que os de mar eram reservados como terapia contra as mordeduras de cães raivosos, por exemplo. E se ontem se curava a raiva, hoje ficamos raivosos com as longas bichas, com as multidões, com os garrafões e rádios aos gritos, com os preços balneários. Expandiu-se o hábito de tomar banho provocando graves problemas à vida social, já que proliferou como virose de férias, e como emigração populacional para a grande banheira, que é o mar. Um problema social, por ter sido o desgaste de regalias da sociedade ociosa, e uma alteração civilizacional, por vir a ser a transformação das zonas ribeirinhas, em antros comerciais.
Para a beira-mar se deslocam, em excursões, na procura do sol, que quando nasce é para todos, e das banhadas, como se as que os políticos proporcionam, constantemente, não fossem suficientes. Chamem-lhes «pacotes», ou «ondas», e a nossa vida anda como as marés, com a Lua; e aos altos e baixos.
Mas quais as razoes porque tomamos banho nas praias? «Por ordem do médico (contra a dita raiva, que hoje chamam de «stress») / Por limpeza e ingenuidade (pois crêem ficar mais limpos, depois da imersão em tais águas) / Por namoro (que aí não se podem esconder as misérias, sobressaem as virtudes)/ Por modo de vida (de Tarzans e afins) / Porque ele é belo e quer mostrar o busto - Mas a verdade é porque andam muitos pés sujos por aí.» (Raphael Bordalo Pinheiro, in «António Maria», 16/9/1880.)

Wednesday, November 22, 2006

Caricaturas Crónicas 19

FERNANDO PESSOA CARICATURAL
Por: Osvaldo Macedo de Sousa

Há fisionomias mais caricaturáveis do que outras, seja por integrarem elementos anatómicos preponderantes ou ausentes, seja por se rodearem de uma iconografia tipificada, mesmo que vulgarizada em outros indivíduos. Este é o caso de Fernando Pessoa, um poeta ilustre, mas vulgar de feições.
Porém, se as suas obras literárias ficaram para a eternidade, o mesmo aconteceu a uma imagem sua, que em caricatura síntese se reduz a um triângulo capilar facial, igual a muitos outros bigodes; uns óculos que muita gente usa, principalmente os que vêem mal; um chapéu preto que se encontra em qualquer chapelaria, para protecção contra o Sol e outras intempéries. Dos olhos, boca, nariz, cabelo... nada reza a história. Talvez o queixo ainda se salve.
É na base dessa iconografia que se têm realizado múltiplos retratos, caricaturais ou não, que agora proliferam na busca do poeta perdido.
No caso de Fernando Pessoa, artista, a questão caricatural agudiza-se, porque ele é muitos e um só Pessoa. É na multiplicidade de seres que ele é, dividindo-se por Caeiro, Reis, Campos, Soares... criadores que existiam dentro dele; mas dos quais não há retratos, para além de uma descrição literária feita pelo Campos. Após a morte e desaparecimento daqueles, e na base desse texto, Almada Negreiros deixaria a sua interpretação plástica dos três primeiros.
Portanto, foi só o Pessoa que se manteve como fonte fisionómica para a criatividade caricatural, que durante a sua vida não foi muita. Dos caricaturistas que o conheceram, apenas quatro o transpuseram para o papel. Foram o Stuart Carvalhais, Bernardo Marques, Almada Negreiros e Teixeira Cabral. Stuart num breve retrato/ilustração para um artigo literário; Bernardo Marques em dois desenhos alegórico/satíricos; Almada em múltiplos desenhos e telas; Teixeira Cabral numa genial caricatura síntese.
Pela sua importância no meio artístico, pode-se considerar que ele não teve a repercussão caricatural que merecia. Só que este elemento não é de estranhar, quando se sabe que só muito recentemente se tem vindo a descobrir a verdadeira dimensão da obra e a sua importância. Essa descoberta tem sido tão intensa que, por vezes, lhe é prejudicial na popularidade.
Por outro lado, e apesar dele ter sido amigo e companheiro de tertúlia de muitos dos caricaturistas que dominavam os periódicos desses tempos, que impuseram o modernismo em Portugal, ele não era um amante da caricatura. Pessoa, por questão estética, ou política, não soube reconhecer a importância do humor no âmbito da irreverência que os do Orpheu reivindicavam no âmbito estético; não soube reconhecer a importância estética e sociológica na difusão de conceitos e ideias modernistas. Ele defendia a concepção filosófica de Baudelaire, em que o humor provém do lado diabólico do homem, que é o triunfo da futilidade. Esquece-se que por vezes a futilidade é mais incómoda que a monotonia, a passividade quotidiana.
Posteriormente, seria o mestre João Abel Manta a fazer uma caricatura de interpretação filosófica. Vasco (de Castro), no princípio desta década (de 80), viveria um período dominado pelo Pessoa, organizando diversas exposições com caricaturas, desenhos, pinturas suas, assim como a publicação de serigrafia e livro biográfico. Nesses anos foi o artista que melhor difundiu a personagem de Pessoa, o que não impede de ser ignorado pelas instituições do Poder, quando expõem os artistas que pintaram Pessoa.
Agora, com a aproximação do centenário (que entretanto já passou), com a transformação do artista em noticiário, em actualidade de eventos, poucos são os artistas que ainda não foram obrigados a retratá-lo/caricaturá-lo. Assim se poderão encontrar obras de António, Maia, Pedro Palma, Relvas, Zíngaro, Cid, Rui, Artur...
Os centenários, na actualidade, são uma moda, um retrato caricatural de como o povo português vive a cultura, ou seja, celebra a morte, quando os artistas já não podem ser incómodos para o poder.

Monday, November 20, 2006

Caricaturas Crónicas 18

AS MULHERES DE STUART Carvalhais
Por: Osvaldo Macedo de Sousa

Pertencendo a uma das duas metades da humanidade, a mulher nunca foi parte igual na sociedade que constitui com o homem, seja porque detém o poder matriarcal, seja porque é "sexo fraco". Fraca ou forte, "a mulher é uma equação que não sendo bem resolvida pode dar uma regra de três" (in “A Bomba”, 1946), donde resulta o macho sobreviver numa eterna obsessão.
Dos humoristas portugueses, quem melhor apreciou a mulher foi sem duvida o Stuart Carvalhais. Numa visão machista, como é a nossa sociedade, mas sempre com ternura, porque a olhou elegante e decorativa ao gosto do Barradas e do Soares, a retratou típica e popular como o Manuel Macedo, a desenhou pobre e miserável como grito da pobreza ou da sombra da noite, e a todas fez sensuais, esbeltas. Dizia um cronista que, desde que o Stuart morreu, as varinas perderam as suas pernas bonitas. Mas, "porque é que o Stuart desenha tão bem pernas? - Não vê a menina que eu vivi muito tempo... em Pernes?!" (Stuart Carvalhais, in “Sempre Fixe”, 20/4/1933).
Quem fala em mulheres fala também no amor, esse bater de corações que reduz o homem da sua posição de sexo forte, que o faz subjugar-se a elas, a rastejarem na sua trilha: "Estes rapazes de agora" "- Não tem mesmo habilidade nenhuma! Já me segue há duas horas, e ainda não me deu ocasião para chamar um polícia..." (Stuart, in “Sempre Fixe”, 30/3/1933).
Após a conquista seguia-se o namoro, que agora os costumes estão um tanto mudados - "A tua nova namorada é bonita? - Não sei... Pinta-se de tal maneira que ainda não lhe pude ver a cara." (Stuart, in “Sempre Fixe”, 7/4/1938).
Ditas sexo fraco, porque frágeis e sensíveis, de lágrima teatral fácil, são elas que orientam o jogo da conquista. Pela determinação do seu querer ou, pelo seu cuidado em evitar abrir as guardas da defesa, são elas que fingem deixar-se levar, só que nesse jogo nem sempre conseguem ter o adequado "timing" de resistência, ou ter sorte ao amor, e então suspiram - "Tantos malmequeres! Tantos hei-de procurar, que devo encontrar um que diga: Bem me quer!" (Stuart, in “Sempre Fixe”, 12/5/1932).
Após a conquista consumada e dados os louros ao macho triunfador, não é fácil à mulher conservar o seu homem, já que este é um animal pouco fiel, e ela de novo suspira (trejeito muito seu) - "Se ao menos ele enganasse as outras comigo!" (Stuart, in “S.F.”, 3/9/1930), ou "Pudesse eu também meter numa gaiola o meu amor..." (Stuart, in “S.F.”, 29/8/1929).
Chega-se então ao casamento: "Mamã! Por que motivo os noivos se dão as mãos quando se casam?" "- Pura cortesia! Também os jogadores de boxe apertam as mãos antes do combate!" (Stuart, in “S.F.”, 13/2/1930). Inicia-se desta forma a grande sequência de anedotas das sogras e demais guerras que não nos interessam para o caso. Apenas o ciúme, esse velho companheiro do amor que faz enfurecer o homem - "Não achas que as tuas saias estão muito curtas?" "- Não, filho, as saias estão bem, as pernas é que são muito compridas" (Stuart, in “Sempre Fixe”, 26/5/1927).
Os anos passam, e "os beijos aos 16 dão-se; aos 20 vendem-se, aos 40 compram-se" (Stuart, in “S.F.” 29/10/1930). A crueldade do tempo não perdoa - "porque é que é pecado perguntar a idade às senhoras?" "Porque as obriga a mentir." (Stuart, in “Sempre Fixe”, 12/11/1936). Só que as mulheres do Stuart são eternamente belas, mesmo as de vidas sofridas.
Também das mulheres da noite, ninguém até hoje soube dar um retrato com tanto carinho e amargura, porque as conhecia e amava, porque elas são a tábua perdida de homens que naufragam na solidão do macho, porque "chamam-nos perdidas, mas é connosco que se encontram."
A última das mulheres que o Stuart desenhou foi a 'Flausina' esse ser sintético, perdido entre o vazio mental dos homens e as formas sublimes da natureza, a falsidade da vida que acasalava magnificamente com o 'Baú-Bau' dandy.

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