Tuesday, January 01, 2013
Feliz 2013 a todos os amigos. Não se esqueçam que agora o blog da humorgrafe chama-se humorgrafenews
Aguarela portuguesa com brinquedo verde - Rosário Breve por Daniel Abrunheiro
O
vento faz-se sentir, altera (redispõe) a paleta dos elementos mundiais, entre
os quais ele mesmo.
Uma
senhora com duas crianças, uma já andarilha e falante (Mariana), outra que é Eduardo
e que de carrinho-rodas é trazido e levado. O Eduardo só crocita, por enquanto.
Passa-se isto numa praça a que a manhã estendeu a todo o diâmetro o linho do
sol. O Eduardo atira fora um pato de plástico verde. Sente-se manietado, quer
livrar-se da tira de lona que lhe cinge diagonal o peito brevíssimo. A Mariana
lambe em delícia o creme de um pastel maciço que o açúcar polvilha de átomos de
luz branca – como acontece ao firmamento nocturno cada Verão, quando a suprema
tela, isenta de nuvens, logra acesso óptico à poalha diamantina em miríade
esterlina. Em poucas manhãs, será Ano Novo. A mãe não é já criança, não todavia
velha já. É uma Isabel como tantas isabéis de por aí: um vaso de que brotam
flores pueris.
Em
o entretanto de tudo isto, o vento vai mudando as cores à aguarela: encrespa-se
de castanho o verde rio, azulam-se as árvores de sentinela ao céu agora âmbar,
trotam, muito gendarmes, os cachorros vadios ora tocados a cor-de-rosa e a
amarelo-torrado. Quase álgido, o ar movediço torna a respiração um maquinismo
benigno. Não é difícil nem precário entrever as longínquas praias desertas:
estendais de ouro comum ao giz volante das aves marinhas, às eróticas dunas
configuradoras de ancas feminis, e às crespas fragas paredando o que é terra em
desfeita de mar.
Mais
perto do lápis, Isabel, Mariana e Eduardo terminam sem estrépito a vinda à
pastelaria. Saem os três da presente dramaturgia. É quase meio-dia.
A
uma mesa de tampo azul-ferrete, um rapaz de quase cinquenta anos urde sonetos
difíceis e ilegíveis. Tem no bornal publicações amarelecidas de outros sonetos
de outros rapazes a outros ferretes azulíneos postos. Este não comeu bolo. O pastel
que lambe – é o da Língua Portuguesa, essa viva confeitaria de tantos açúcares.
Ao primeiro dos dois tercetos (onde se começa dando o litote poente da
composição quatordécima, como é sabido), distrai-o a volumetria lípida de uma
matrona brasileira que faz do próprio telemóvel um altifalante em tejadilho de
carrinha de circo. Adiposa como uma bochecha esmurrada, não parece sentir o
envolvente-vento-que-vem-vindo nem pertencer ao mesmo mundo circunspecto do
Eduardo, cuja ex-mesa aliás ocupa. Atabafou-se a tropical willendorf de
flanelas moles como véus de lamas sobrepostas. É de olhos bonitos e boca feia,
orbes mamários de trémula gelatina em bandeja de contralto-castafiore, mãos
aduncas de quem sofre não o pão mas o ganhá-lo.
Dez
minutos mal contados pós-meio-dia, ergue-se o sonetista. Lesto como se não
suporia, acocora-se à base do pilar da galeria. Cata do chão certo pato verde
que dele foi há meio século quase, quando a Isabel dele era viva e as
pastelarias eram mais raras, mas nem por isso menos as aguarelas que o muito
crocitar entretanto lhe/vos veio (a)ventar.