Saturday, March 01, 2008

O Modernismo, A Caricatura, O Grupo de Coimbra

Por: Osvaldo Macedo de Sousa
(in Diário de Notícias de 10/7/1988)

Por vezes um momento é mais importante que uma vida, assim como o soldado pode ser mais relevante que um general, um amanuense mais vital que um ministro, alguns desenhos mais importantes que uma longa carreira artística. É o caso da intervenção do Grupo de Coimbra, três breves aparições que modificaram o rumo da arte em Portugal.
Vigorava então o naturalismo, estilo academizado que perduraria longas décadas, nas artes pictóricas, que na caricatura tinha a designação de raphaelismo . Na viragem do século, Leal da Câmara e, principalmente, Celso Hermínio esboçaram a primeira revolta contra o academismo pelas suas intervenções satíricas e estéticas. Porém, a verdadeira ruptura só se daria, sub-repticiamente em 1909/10, pela obra impressa de Correia Dias, Luiz Philipe e Christiano Cruz.
«Não parece exagero dizer que, na década que abrangeu os 1ms da monarquia e os começos da República, Coimbra deu ao País um verdadeiro escol. /…/ Curiosidades intelectuais, inquietação moral e social e ânsia de cultura para a busca de soluções aos problemas nacionais foram as características dessa geração que deixo, na actividade literária e artística do País, mostras iniludíveis de méritos, ainda não esquecidos nem apagados.». São palavras de Nuno Simões, companheiro desse grupo de artistas em Coimbra, no elogio fúnebre a Christiano Cruz, em 1951, recordando desta forma essa geração, esses tempos.
A curiosidade, inquietação e irreverência são características da juventude, dos estudantes, e foi precisamente nesse meio que o Grupo de Coimbrase formou, e desenvolveu a nova linha estética, que viria a dar no modernismo. As influências e linhas mestras do novo pensamento estético provieram do estrangeiro, através das publicações que cá chegavam, provieram de uma necessidade interior de síntese, de forma.
A síntese, perante o barroquismo raphaelista, foi o elemento revolucionário que se impôs no desenho, raiando por vezes a abstracção, a qual deu à pintura o tom cézaniano que dominaria o modernismo. O curioso é que estes artistas encerrados em Coimbra compreenderam melhor o que se estava a passar no mundo europeu das artes do que aqueles portugueses que viviam por Paris no contacto directo, mas ao qual passaram de lado ou muito superficialmente.
O grupo começou a organizar-se à volta de um jornal de Liceu, O GORRO, e desenvolveu-se na tertúlia e na elaboração de outras revistas, como a Águia, a Sátira e a Rajada. As figuras importantes deste movimento foram:
- Cristiano Cruz, sobre quem já escrevi neste jornal, e que, para além da força sintética e expressionista do traço caricatural, se tem descoberto ultimamente uma pintura plena de força fauvista, cézariana e por vezes até raiando a abstracção. Ao mudar-se para Lisboa, em 1910, veio influenciar pessoalmente uma geração de artistas, como Stuart, Almada, Soares ... que continuariam as experiências do modernismo. Christiano abandonou a arte em 1921, «exilando-se» em Moçambique;
- Luiz Philipe, um criador que não sobreviveu muito tempo nas artes e que desapareceu no anonimato do quotidiano. Sobre ele escreveu Nuno Simões. Era «o mais velho da corja dos trocistas. (. .. ) Apreende a sua garra implacável as figuras e as almas, amolga-as, deprime-as, para fazer resultar o juízo final em que a alma e corpo se procuram, um como que toque de trombeta de apuro de contas, e conclusão de quem a vida espionasse, só pelo prazer de ver-lhe, em cada onda, toda a babugem de grande mar revolto.» Os seus trabalhos apareceram em O Gorro, Ilustração Portuguesa, A Águia, A Sátira, e ao apresentar-se no Porto, em 1916, no II Salão dos Modernistas, despedia-se da Arte;
- Outro grande artista deste grupo foi Fernando Correia Dias, um mestre da caricatura-síntese que também abandonaria a arte portuguesa, ao emigrar para o Brasil, em 1915, e onde morreu. Sobre este artista falaremos na próxima crónica.

Fernando Correia Dias, a síntese Caricatural

Por. Osvaldo Macedo de Sousa
(In Diário de Notícias de 17/7/1988)

«Correia Dias, o mais fino, equilibrado e inteligente artistas» (palavras de Virgílio Correia). foi um caso de breye e fulgurante passagem pelo humorismo português. Pertencente ao Grupo de Coimbra foi, com Christiano Cruz e Luis Philipe, um dos introdutores de uma nova visão estética, que viria a desenvolver-se em modernismo.
Natural de Penajoia, onde nasceu em 1892, fez estudos em Coimbra, e por aí ficou numa carreira de artista e dinamizador satírico. Em 1909 funda o jornal O Gorro, um jornal dos alunos do Liceu de Coimbra, o qual reúne os jovens que designei por Grupo de Coimbra. É por essa altura que se desenvolve a linha-síntese, uma exploração estética das formas que os lança na vanguarda da arte nacional, que os coloca a par do que. se realiza na Europa. As caricaturas-síntese de Correia Dias são breves traços caligráficos, que desnudam a estrutura das formas ao ser mais simples, que raia a abstratização dos elementos representados.
Virgílio Correia diz, em 1914, que ele «imprimiu nas suas obras um cunho de delicadeza que o leva para bem longe da caricatura indígena em que Bordalo e Celso floresceram». Não é só no traço que há uma ruptura, pois continuadores do traço de Celso, na linha-síntese, o Grupo de Coimbra procura desprender-se da anterior visão satírica, panfletária, e por vezes cruel, para uma nova visão irónica, numa opção de crítica social. Quase se poderia dizer que eles defendem que é na alteração das condições sociais que pode haver alteração política, e não pela alteração política que se cria as condições sociais. A história deu-lhes razão.
Sem deixarem de ser críticos, na mordacidade da ironia, eles opõem-se à sátira directa, à identificação dos culpados, já que são muitos mais do que aqueles que parecem ser. Esta viragem no humor, segundo Virgílio Correia, é uma característica de Coimbra (?), que «não gerou senão artistas equilibrados e sãos. (…) Correia Dias segue a regra geral. Tudo na sua arte é ligeiro, transparente. Até quando magoa o faz com elegância, com linha, sem descompor as figuras em contorcionamentos borrachos de indivíduos alçados sobre botas de palmilhas bocejantes».

Veiga Simões acrescenta: "Afóra o Stúdio e os magazines extrangeiros que muita vez o surprehendi a folhear, creio que toda a sua arte resultou do seu temperamento bondoso e sensual como as pérolas saem do coração das ostras ou das penhas emana o crystal da água viva. A graça e a malícia são peculiares na sua obra em que o exagero consegue ter um sentido piedoso. E é por isso que ao mesmo tempo se amam os seus bibelots, em que a ternura tem sorrisos formosos e as caricaturas pessoaes, em que o artista prefere a cobrir de pacaro os modelos, dar ao lapis um ar de conselheiro moral, diríeis, um lápis comovido que sublinha somente para ver se corrige o que é aleijado.»
Infelizmente não é conhecida a sua obra, que se dispersa por vários géneros criativos, como se pode comprovar pelo anuncio publicado em A Rajada "Caricaturas e Desenhos Cartazes; Vitraes; Capas de Livros; Pastas; Ex-Librisj Piro-Grravuras; Móveisj etc. Coimbra - L. da Feira, 16.» A luta pela sobrevivência fazia-o caricaturista, publicista, cartazista, ilustrador, ceramista, vitralista, designer de móveis, de tapetes, de encadernações, e até de monumentos funerários e de jardins. Toda uma obra por descobrir e catalogar a que eu conheço são as obras publicadas no Gorro, na Rajada (de que foi Director Artístico / Coimbra-1912), Século, Ilustração Portuguesa, Aguia.
Apesar de ter sido um dos introdutores do modernismo, via caricatura, em Portugal, não apareceu em qualquer dos Salões de Humoristas e Modernistas realizados na segunda década deste século em Lisboa e Porto, não acompanhando dessa forma a evolução estética nas suas manifestações públicas. Apenas teve um gesto pessoal, em 1914, ao expor os seus trabalhos nas salas da Ilustração Portuguesa, onde foi elogiada a «obra diáfana de um decorador consumado.» Além da síntese, ele desenvolve também um decorativismo que reinará em Portugal nos anos 20/ /30.
Entretanto, em 1915, «Correia Dias vai para o Brasil expôr os seus trabalhos, tentar aplicar as suas aptidões de artista decorador». Partiu e lá ficou a conhecer o êxito que cá não tinha. Casou-se com a poetisa Cecília Meireles, para a qual fez ilustrações dos livros, trabalhou em jornais, fez ex-líbris ... No campo decorativo desenvolveu uma série de motivos de cerâmica marajoara (dos Índios da ilha de Maràjó), criando um estilo de raízes brasileiras, que explorou na cerâmica e na tapeçaria.
Em 1934 visita Portugal com a sua mulher, e a 19 de Novembro de 1935 suicida-se no Rio de Janeiro.


Monday, February 25, 2008

HISTÓRIA DA CARICATURA EM PORTUGAL (parte 19)

Raphael Bordallo Pinheiro 4
Por: Osvaldo Macedo de Sousa

1873

Em 1873 não será diferente o panorama jornalístico, apesar do reaparecimento de meia dúzia de gravuras em "O Cabrion", e terem surgido "As Farsas" e "O Rabecão", jornais satíricos, mas só de texto.
O traço de Raphael vai-se esmerando, evoluindo, o seu estilo não escapa aos olhos de além fronteiras, e nesse ano verifica-se a primeira e importante internacionalização da sua obra. O "The Illustrated London News" necessita de um repórter gráfico de guerra que se deslocasse a Espanha para cobrir a guerra entre Carlistas e Liberais.
Dizem que por sugestão do Mestre Anunciação, este jornal convidou Raphael, e lá vemos o desenhador por terras andaluzas a partir de 25 de Março a registar no papel o que vê. O sucesso foi grande, e o jornal convida Raphael para este se instalar em Londres, onde asseguram que o nosso artista conheceria fama e glória. Entretanto também os jornais espanhóis procuram a sua colaboração, e trabalhos seus vão sair no "EI Mundo Cómico", "Illustracion Espafíola y Americana", "Ilustracion de Madrid", "EI Bazar", e no francês "L'Univers Illustré". Só que quem consegue afastar o português da sua terra?
Raphael Bordallo continua à procura do seu caminho, editando uma série de litografias de actores e actrizes, como Theodorico, Delfina, João Anastácio Rosa, António Pedro... assim como um folheto denominado "MJ- A História tétrica d' uma empreza Lírica" uma sátira aos problemas do Teatro de São Carlos. Ilustrará os Almanachs de Caricaturas de 1873 e 74... Fazia caricatura, ilustração, gravura, pintura, mas o que é que ele era profissionalmente? Para as Finanças não havia dúvidas, porque se ele retratava pessoas, mesmo em exagero, era um industrial do retrato.
Quem nos narra esta história é Manuel Sousa Pinto no seu livro "Bordalo e a Caricatura": «É que, muito antes da invenção dos Kodaks, Raphael Bordallo dispunha de uma retina que, no tocante a fidelidade e rapidez, nada tinha que invejar às mais aperfeiçoadas e instantâneas objectivas photográphicas, como, alias, de um modo inaudito e oneroso o reconheceu a Fazenda pública. Com efeito, tratando-se de apanhar Bordallo na rede da contribuição industrial, tributaram-no como "retratista". E o caso foi que, não se dando o novo contribuinte por achado, veio a ter de pagar ao Estado, bastantes anos depois, uma respeitável soma, engrossada ainda por cima com todas as alcavalas e juros de relaxe».

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