Saturday, November 28, 2020

Caricaturas Crónicas - «Jorge Barradas, o humor elegante» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 7/7/1985)

A Europa tentava renascer em Portugal através do humorismo, como se fosse irónico querer levar este país a integrar-se na Europa. E o humorismo ria então dos bota-de-elástico paralisados no oitocentismo. Foi quando Jorge Barradas irrompeu nas artes.

«Antes do mais devi dizer-lhe que sou um estilista, um apaixonado da forma e da cor, e que, por isso, o que mais me impressiona na natureza não é a sua força geradora oculta, mas aquilo que ela realiza em aspectos exteriores. Quer dizer: da árvore eu não vejo a raiz, que é a alma, mas o tronco e a folhagem que são o corpo. Posto isto, dir-lhe-ei que o meu assunto predilecto é a mulher. /…/ Eu não sou um combatente, e me não sirvo da caricatura como arma, antes a emprego como fonte criadora da beleza» (Jorge Barradas in «República» de 26/5/1914).

Chamava-se Jorge Nicholson Moore Barradas (1894-1971), mas nas artes ficaria conhecido como Jorge Barradas, um artista que recordando essencialmente como ceramista, pintor, ilustrador ou decorador, foi um «modernista» da primeira geração e como tal, também humorista.

Nasceu em Lisboa a 16 de Julho de 1894, quis ir para as artes, e por isso matricularam-no na Escola de Belas Artes, mas «fui mau aluno. Creio que muito contribuiu para tanto o conventual e lúgrebe casarão, onde o ensino andava a par com o frio, que gelava as mãos, entorpecia os pés e esfriava até ao desespero o corpo e a alma /…/. A escola onde me formei foi outra e é grande, direi mesmo é majestosa. São vastos e longos os seus corredores, e chamam-se ruas, por elas corri feliz e livre, sem algemas nos pulsos, nem grilhetas nos pés a limitar os meus passos». (in «Isto começou em 1912», conferência no SNBA 29/11/1963).

Jorge Barradas irrompeu nas artes nos inícios da república, e como seus companheiros, apesar de ter frequentado a escola de artes, fez a sua verdadeira aprendizagem com a vida, fê-la à mesa dos jornais onde a mão forçada pela periodicidade quotidiana, um dia a dia na obrigatoriedade da graça, criou um estilo, um traço original, irrompendo por novos caminhos.

«Não há dúvida de que somos os representantes da geração que implantou em Portugal a arte contemporânea» (in Diário de Notícias de 7/11/1963). «Não havia entre nós o espírito de grupo. Cada um tinha o seu próprio caminho. Naturalmente discutíamos, trocávamos impressões, criticávamos os trabalhos uns dos outros. Mas não pretendíamos fazer escola. Se, alguma coisa tínhamos em comum, era a ambição enunciada por Almada Negreiros: querer fazer de Portugal a Europa» (in «Século Ilustrado» 26/12/1970).

A Europa tentava renascerem Portugal através do humorismo, como se fosse irónico querer levar este país a integrar-se na Europa. O humorismo ria então dos bota-de-elástico, paralisados no oitocentismo e, coma sua irreverencia procurava despertar o provincianismo desta sociedade. Se uns o faziam acirradamente pela via política, outros o faziam pela elegância. Barradas era um destes últimos, e em 1912 a crítica já o via como «um futuro artista de elegâncias, sabendo colearuma mulger, tocá-la de graça e donaire» (Veiga Simões in «A Águia» 1912).

«Nasciam então inventadas pela minha graça, sempre inclinada para as sorridentes formas que eram ilustrações de comentários nunca amargos, notas à margem sempre da dor.

/…/ Não consentia a minha consciência tirar proveito da dor alheia, nem tão-pouco, como alguns, explorar o filão fácil, oferecido de mãos abertas e sem encargos. O sofrimento dos outros, dos infelizes, era demasiado respeitável para fazer dele meu guindaste. Receava, também, o seu contagio, pois bem perto vivi do seu centro e, talvez por receio ou defesa, preferi ser antes um lagarto feliz, esparramado ao sol glorioso da alegria!» (in «Pessoas e episódios do meu tempo».

«Esquecia-me de dizer-lhe, que a República me é indiferente, como indiferente me foi a Monarquia. Não me interessam senão muito superficialmente as revoluções políticas ou sociais» (in «República 26/5/1914). Por opção ideológica a ilustração, humorística ou não, seguia um estilo espirituoso, por vezes, mesmo irónico, mas fundamentalmente elegante. Retratando o mundo pitoresco, passando pela vida nocturna e seus tipos, viveria o mundano numa linha sugerida, onde o traço simples não procura a rigidez angulosa, nem o contorno decorativo, mas os efeitos, a expressão, a beleza.

Trabalharia em vários periódicos («Diário de Notícias», «A Capital», «Ilustração Portuguesa», «ABC», «ABD a Rir»…), mas como todos os artistas gráficos, desejava criar um jornal seu onde fosse mestre e senhor das suas opiniões, e teve-o, chamou-se «O Riso da Vitória» (1919), um dos breves  marcos do modernismo.

A ilustração dominou-o durante mais de uma década de humor e retratos de mulher; depois, a decoração, o cartaz, a cenografia, a pintura foram-se interpondo nesta carreira, que se manteria dispersa até aos anos 50, quando uma nova paixão o dominaria – a cerâmica. Também aqui a elegância foi uma das suas principais preocupações estéticas.


Caricaturas Crónicas - UM VOTO POR CARNEIRO COM BATATAS por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 15/9/1985


«- Isto não são lá eleições nem meias eleições!»

«- Diz V. Ex.ª muito bem! A urna já não dá nada! Nem um reles carneiro com batatas!»

(Joaquim Costa, in Alfacinha, a 31/10/1882).

 

O acto eleitoral como almoço da carneirada, como campanha política, como caça ao voto, como corrida ao Poder, sempre foi um assunto favorito para o caricaturista ou humorista. Tal atracção deve-se à riqueza de motivações e situações passíveis de serem satirizadas ou ironizadas, deve-se ao flagrante antagonismo entre a palavra política e a realidade no dia-a-dia do Zé Povinho.

Se hoje o caricaturista tem ainda muito com que se «inspirar», no século XIX havia um mundo especial, onde a carneirada era conquistada pelo “carneiro com batatas” e onde as situações eram diferentes. Este pitéu foi durante anos um dos artifícios de arregimentar votos, oferecendo de comer no dia da votação a quem lhes desse o voto. Os partidos poderiam ser diferentes o manjar era o mesmo.

Vejamos pois como a caricatura do século passado via o acto eleitoral. O primeiro e mais importante elemento de base, neste jogo é o político, o futuro deputado que procura um lugar sentado à sombra do S. Bento, que ainda não sabe se tem porta aberta ou fechada para ele. O político não é um qualquer, é um «talento perspicaz, saber profundo, dai-lhe dinheiro, dar-vos-á o mundo» (Maria, in O Patriota a 6/9/1847); É uma individualidade influente, é um comprador de sonhos e projectos («votai em mim, eleitores, que sou um homem de brio, pelos votos dou dinheiro, e quem dá é sempre tio» - Anónimo, in Demócrito a 9/7/1865). É a retórica das promessas, é o compromisso da realização de mundos e fundos, mas que quando está no Poder esquece os mundos e fica com os fundos: «No dia dos votos Zé Povinho tem tudo o que lhe apetece - em expectativa: tem estrada para a sua aldeia, um novo sino para o seu campanário, tem vinte mil réis de feijão a mais para o rancho do seu regimento, tem três mil e quinhentos pelo voto.» «O outro dia - no outro dia Zé Povinho tem tudo aquilo o que não quer: tem um novo imposto, tem um deputado novo, e para substituir o pão sem peso, tem pau sem conta e sem medida.» (R.B.P" in António Maria"a 18/8/1881).

O político é um indivíduo arregimentado a um partido, o qual poderá ou não ser o Poder. Ora, como o Poder é o objectivo principal a atingir para este, facilmente se pode compreender uma certa mobilidade, com tendência para se apoiar no que está na mó de cima: «Coisas do mundo! Estas almas do Progresso (partido Progressista) tão devotas, alcançaram nobres palmas, tornando-se engraxa botas! // Qual camaleão ser vário, mudar como o catavento, é quanto hoje é necessário, para entrar no Parlamento.» (Anónimo, in Demócrito a 25/6/ /1865).

O político é um vendedor de promessas, é um comprador de votos, o que significa que o eleitor está disponível a vender-se. Eis como se fabrica um eleitor: «Os cinco sentidos eleitorais: primeiro vê-se uma cara vela de doze (dinheiro); depois ouve-se uma promessa tentadora...; mais tarde cheira-se o carneiro com batatas; em seguida gosta-se do torreano ( vinho) de 80 réis o litro, e por fim apalpa-se o chão com as costelas. E aqui está como se vota.» (R.B.P., in António Maria a 1/11/1883.)

O eleitor vende-se, é enganado, «apalpa o chão com as costelas» e volta a vender-se. Porquê? É que «o eleitor é como os carneiros de Panurge: atira-se para a urna inconsciente, indo atrás do choro d'um emprego ou de uma promessa. (...) Quando os ventos mudarem e os donos d'agora queiram segurar os últimos carneiros suceder-lhes-há fatalmente marcharem com eles para o abysmo...» (R.B.P., in «Pontos nos ii» a 18/11/1886.)

O eleitor é como um rato que apesar de conhecer a armadilha, cai sempre na «ratoeira eleitoral» (Sebastião Sanhudo, in «Sorvete», a 28/9/1879), tendo como engodo o «carneiro com batatas» e o bom vinho, que o nosso povo se quer alegre. O acta eleitoral é como uma feira (R.B.P.. in António Maria, a 19/10/1879) onde cada partido monta a sua tenda (porque a barraca monta-a quando governar), chamando os eleitores pelo cheiro ou orientando-os como um bando de perus: «Para a ninhada regeneradora (partido oponente aos progressistas) ser grande, o galo do partido não tem mais remédio senão arrastar a asa às galinhas que põem ovos de ouro /…/ Ainda há circuitos em que os eleitores 'independentes' se levam à urna como um bando de perus.» (R.B.P. in António Maria a 16/10/1879.)

Se as tendas com carneiro com batatas são a atracção, o momento fundamental é a partida para o Poder. A feira envolve assim o Hipódromo onde cada partido aposta no seu Jokey, mas, seja quem ganhe, o político fica sempre de pé, e o Zé... Já dizia Raphael que a política era uma senda escabrosa por onde passam os políticos interrogando-se: «Ora porque será que ele cai (o Zé) e nós ficamos sempre em pé:» (António Maria a 23/10/1879.). Mistérios do mundo eleitoral ainda por resolver.

Entretanto perdeu-se a moda de voto por carneiro com batatas: «Então, vizinha, que há de novo? - Tudo de mal a peior! O meu António até está arriscado… a ir votar de graça! Uma coisa assim!» (J. Costa in Alfacinha a 3l/10/1882).

 


Friday, November 27, 2020

International Cartoon Festival, Czech Republic 2021


RULES

Compulsory Subject: History

1- We accept cartoons only on the topic you entered

2- Total number of cartoons per author: 3 pieces

3- A cartoon must not have won an appraisal at previous competitions

4- Cartoons without words are not a requirement, but they have an advantage

5- Cartoons should only be sent electronically to: mfkh@email.cz

6- Deadline April 30th, 2021

7- The technical parameters should be as follows: at least 300 DPI; JPG-, PNG-or PDF-format

8- By sending their cartoons, the author agrees with the following:
a) The organizer can use the cartoons for the promotional purposes of this International Festival of Cartoons
b) The cartoons will be used in Tapír, magazine of humor and satire

Award Winning Works:
1st Prize 15.000 CZK
2nd Prize 10.000 CZK
3rd Prize 5.000 CZK

Optional topic

Our festival aims to help the children with oncological disease by the drawing.
Drawings themselves won’t be a subject of competition.
In the period from 13 to 19 September 2021, the drawings will be exhibited and auctioned. Proceeds from the auction will be used for oncological care activities in hospitals.

Topic:

Free
Festival is open for all professional and amateur creators, no age restriction is applied.

Rules:

1) Print a „The Keyhole“ Here it is: „The Keyhole“
2) Draw your picture in it on the topic „What I would like to see through a keyhole“ Your drawing can take any form, which means humorous, or serious one. Feel free to express yourself.
3) Write your name, age, occupation, city where you live on the picture.
4) Send the picture to the following address:
Community Center Chebsko z.s.,
Náměstí Krále Jiřího z Poděbrad 507/6,
350 02 Cheb, Czech Republic or mail:
mfkh@email.cz


Caricaturas Crónicas - «A política a banhos» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 4/8/1985)

    Após um inverno prolongado, inicia-se um Verão quente. Uma atmosfera carregada que leva o político, a política a banhos, nesta ocidental praia lusitana. Para uns, foi um banho de água fria a queda da coligação governamental; para muitos foi uma barrela à muito esperada; enquanto que para outros é o início dos «banhos finlandeses».

Tudo se preparava para um verão ameno, antes das eleições presidenciais, mas estas tiveram de ficar em banho-maria, perante o aumento da temperatura, perante a antecipação das eleições parlamentares.

A tradição de verões quentes, em Portugal, tem vindo a alicerçar-se, de há uns anos para cá, e tudo começou por uma necessidade turística e higiénica. Neste período de calor e banhos, o político aproveita as facilidades da época para lavar a roupa do vizinho, enquanto aquele se estende ao comprido, a tomar banhos de sol. É um período higiénico e salutar de descontração e dilatação dos corpos (partidários) em campanhas turísticas.

Preocupado com a falta de animação cultural, nas zonas de veraneio, o político encarrega-se de animar as noites quentes, dando banho ao poder. Uma forma gratuita de também ele, se banhar no mar do nosso descontentamento. O turismo é assim, animado como espectáculo e como artifícios de encher alguns hotéis em dificuldades económicas, por meterem água por todo o lado.

Os verões quentes fazem soar o político, e o Zé Povinho, de casa às costas, tenta encontrar um pouco de repouso e entretenimento. Repouso, tem pouco, pois perde-se nas bichas dos autocarros, na procura de produtos alimentares… não consegue a tranquilidade, perante tanta beleza natural no nosso país. No seio desnudo da praia, ele perde-se, desorienta-se no deleite de uma cinematografia que não entra no seu orçamento. Ele não vai ao cinema nem ao teatro e, muito menos, lê um livro, mas para quê, se ele com um dia na praia aprende tudo?

Aprende a falar os mais diversos idiomas, a apreciar os mais variados estilos artísticos, a praticar os mais diversos desportos. Contudo, ainda não lhe é permitido fazer nudismo (apesar de naturalmente andar de tanga), já que o político tem medo que tanta a política como a justiça tomassem o gosto pelo naturismo e se despissem perante o povo, caindo «o manto diáfano da fantasia» expondo «a nudez forte da verdade».

Se os banhos de mar e sol são o grande atractivo do nosso verão, temos também em cartaz político os banhos medicinais. Perante a necessidade de se dinamizar a medicina portuguesa, conseguiu-se transformar os nossos banhos numa terapêutica de se aguentar mais tempo o Zé, com baixa da Caixa de Previdência. As águas inquinadas, poluídas, são medicinais porque, depois de se tomar banhop nas nossa praias e rios, de se beber essa água, tem de ir-se ao médico.

Neste verão quente de 85, a política, mesmo no banho, não consegue despir-se das fantasias dialécticas, da retórica, obrigando a a soar as estopinhas. Uma sauna que não emagrece esta senhora gorda –a Política – a qual, muita das vezes é identificada, pelo caricaturista, como uma grande porca onde muitos vão chafurdar, mamar e engordar.

Resumidamente, após este ou qualquer verão quente, após este período de banhos, mergulhos , saltos e piruetas malabarísticas, tudo permanece na mesma, apenas um pouco mais bronzeados. Por isso, como dizia Raphael (em Agosto de1885): «Olho com eles».


Thursday, November 26, 2020

«Christiano Cruz, mestre de Almada Negreiros» por Osvaldo Macedo de Sousa (in revista «História» nº75 de Janeiro 1985)

Falar de Almada Negreiros tornou-se já numa rotina e poder-se-á dizer que foi o acontecimento mais importante de 1984 em Portugal. Um Mestre que, 15 anos após a sua morte, é relembrado em todos os campos da sua criatividade e das mais variadas formas sem, em qualquer delas se mencionar a lembrança de seus mestres. Um mestre também teve mestres, e neste caso, queria falar de Christiano Shepard Cruz, o primeiro mestre de Almada Negreiros e um dos mais enigmáticos artistas portugueses.

CHRISTIANO MESTRE DE ALMADA

Com que direito posso dizer que Christiano Cruz foi o primeiro mestre de Almada? Na verdade não sou eu que o digo, mas o próprio Almada, quando falava nas suas origens – a caricatura.

A caricatura foi, ou é, uma das principais artes da Idade Contemporânea, não só porque o grafismo é uma das experiencias estéticas mais interessantes e renovadoras, mas também porque a comunicação e a intervenção na vida da sociedade, são uma das fundamentais necessidades do artista de hoje. A caricatura, pela sua estrutura sintética e satírica, possui essas duas características.

Em Portugal, a caricatura apesar de ter, nas suas origens, uma relação muito directa com a política, soube depois libertar-se dessa submissão e dialogar com o humorismo e a estética. Houve mesmo períodos em que, apesar de haver um substrato político, o fundamental era a utilização da sua irreverencia numa intenção demarcadamente estética. Isso aconteceu nos anos dez do nosso século.

«A caricatura ia na vanguarda», dirá mais tarde Leal da Câmara. As artes plásticas, desde que receberam a lição de Barbizon, tinham estagnado, e a caricatura fora dominada pelo raphaelismo bordalianno (pelo estilo de Raphael Bordallo Pinheiro) desde os anos setenta do século passado, com as naturais excepções de mestres acima de qualquer influência como Celso Hermínio e Leal da Câmara.

Assim, quando se inicia o nosso século, e quando a monarquia é abatida, o academismo domina todos os campos, sejam políticos como artísticos. Os tempos passam, as pessoas envelhecem, assim como as instituições, que, apesar de escutarem o ruido das revoluções, se mantém inalteráveis. Mas, a juventude, essa anda sempre irrequieta e, por vezes, leva a irreverência à vanguarda, neste caso, ao anti academismo.

UMA SAIDA DE SOBREVIVENCIA

As artes, para viverem, necessitam que o artista sobreviva. Para que isto aconteça é necessário que, ou ele seja rico e não necessita de outro apoio monetário, ou então necessita de vender a sua obra. Ora, num país aonde a sociedade ainda não se integrou na nova relação social, imposta pela revolução industrial; onde o gosto estético se radica no simples gosto visual, ou seja, na mimese do belo da natureza; onde os intelectuais estrangeirados não são compreendidos e, nem compreendem a sociedade onde vivem, é difícil sobreviver monetariamente como artista.

A decoração, a ilustração ou a caricatura foram desde sempre uma saída de sobrevivência, já que são artes «por encomenda» de uma certa camada social aberta e com outra perspectiva estética. A caricatura, em especial, é a saída mais interessante para quem deseja utilizar a linha no comentário político, na critica social, quem deseje ser irreverente para despertar uma sociedade da letargia. Essa a intenção de Almada Negreiros, esse foi o desejo de Christiano Cruz.

Christiano Shepard Cruz nasceu em Leiria em 1892 e, já em 1909 (com dezassete anos) aparecem obras suas nas revistas nas revistas «O Gorro», seguindo-se em «A Farça» de Coimbra, em «A Águia» do Porto e depois com o passar dos anos na «Rajada», «Sátira», «Novidades», «Garra», «Lucta», «Revista Portuguesa»… por onde continuou na sua actividade satírica.

DUAS FASES

Apesar de podermos dividir a obra de Christiano em dois períodos, ou duas fases – na verdade foi ele próprio que a dividiu em fase de estilização e fase de expressionismo – a sua obra apareceu desde o seu primeiro desenho como que de um «artista já feito». Curiosamente, é difícil destrinçar a sua obra de «debutante» da de Mestre. Em relação às tais fases, estas verificam-se, não por uma simples questão de evolução técnica, mas por uma evolução interior, por uma pesquisa do autor, ou mesmo por um desespero que acompanhou toda a sua obra, como pronúncio de uma insatisfação que o afastará das artes.

Na primeira fase, a caricatura ou o desenho humorístico de cunho ácido predominam através do seu traço sintético, traço que despe as nossas artes do barroquismo rafaelista, que esquematiza o mundo do nosso naturalismo. Na segunda fase, vai-se dedicar a um universo dominado pelo desespero, onde a sociedade e a cidade nos aparecem levados por uma imaginação sombria, sem nunca deixar de sintetizar o mundo no seu traço fino. Como factor comum destas duas fases encontramos o tratamento da linha – a síntese, a liberdade em relação à mimese. A linha, tornou-se independente da imagem, para criar ela uma nova imagem, seja procurando a forma absoluta, abstrata das coisas, seja como grafismo tradutor das sensações.

Christiano Cruz apareceu como que vindo do nada, para abrir novos caminhos às nossas artes, como quea sua missão fosse indicar o princípio, indicar as possíveis novas vias e desaparecer depois. Possuidor de grande cultura (e certamente conhecedor do que acontecia no mundo artístico francês) e uma maturidade artística, impôs-se de imediato entre seus pares, influenciando toda uma nova geração, entre os quais estava o jovem Almada. Se este, desde muito cedo conseguiu, pela sua força criativa, impor a sua personalidade no seu estilo, podem-se encontrar desenhos da sua primeira fase onde é nítida a influência directa de Christiano Cruz. Depois, cada um seguiu seu caminho: Almada Negreiros na irreverência apontada pelo Mestre e fomentada por outros mestres, e Christiano Cruz para a sua mitificação – mas a lição sobre a linha, origem de todas as coisas, estava semeada.

AS EXPOSIÇÕES DOS MODERNISTAS

Christiano não só induziu uma nova forma de «ver» a linha, de estruturar o mundo, como foi um dos principais dinamizadores das chamadas Exposições dos Humoristas.

Como todos sabem, estas exposições foram o embrião de uma corrente estética que ficaria conhecida por Modernismo. O modernismo-humorismo foi uma sequencia de experiencias gráficas que, para além de Christiano Cruz e de almada Negreiros, tiveram nomes importantes como Emmérico Nunes, Stuart Carvalhais, Jorge Barradas, Correia Dias… experiências que se limitaram a um vanguardismo moderado (dentro do âmbito internacional), evolucionando depois para um decorativismo mundano nos anos vinte.

Nesses mesmos anos dez do nosso século, haverá outras tentativas de de irreverencia vanguardista, seja ligada ao «Orpheu» ou ao Futurismo, com nomes como Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor, Amadeo de souza-Cardoso, mas Christiano Cruz já não estava nesta s linhas de vanguarda, antes perdido na sua própria pesquisa.

Christiano colaborou nas mais variadas revistas de arte e polémica, humorísticas ou de informação, espalhando por todas elas a sua arte, sem nunca se entregar totalmente a esta. De carácter reservado, manteve-se quase sempre afastado dos seus companheiros, lutando pelo modernismo unicamente através da sua obra, contributo que desapareceu no início de década dos vinte. Um artista que nasceu do nada e que no nada desapareceu.

Dez anos de carreira, dez anos de desespero em busca de uma satisfação estética, dez anos com uma obra importante e influente, abandonada de repente, trocada pelas selvas de África – Moçambique primeiro e depois no final da vida Angola, onde morreria em 1951 (Silva Porto). Contam os seus amigos que nunca mais voltou a pegas num lápis e numa folha de papel (o que não é totalmente verdade) para expressar seu mundo interior, trabalhando unicamente na sua profissão de médico-veterinário.

Tal como um cometa, envolto numa névoa mítica, deixou a sua obra a influenciar as gerações posteriores, à qual pertence esse Msetre chamado Almada, e que em 1984 teve honras de recordação.


Caricaturas Crónicas - CAMÕES NA CARICATURIZAÇÃO DE UM MITO por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 9/6/1985)

"O Zé-povinho chega quase a convencer-se de que Os Lusíadas deve ser uma coisa talvez um pouco superior à Carta Constitucional» (Raphael Bordallo Pinheiro, in António Maria de 10/6/1880)

Quando as forças se diluem, quando a criatividade é substituída pelos sonhos, os mitos têm de ser inventados, fomentados. Um mito não é um herói, pois esse ainda está vivo e pode despertar da passividade as populações. O mito é algo morto que se tenta colar numa imagem, revivendo pela lenda, pela história, vendo através do nevoeiro o que não existe.

No século passado; uma das tentativas de despertar o orgulho nacional onde este não existia mitificou-se como Camões. A «feliz» coincidência da celebração do tricentenário do poeta com a pseudo derrocada do «império» foi o despoletar desse mecanismo substitutivo.

Antes do mais, era necessário enterrar condignamente o poeta da nossa epopeia, mas «São Pedro convence-se de que descobrir o verdadeiro crânio de Camões», diz-nos J, M. Navarro na caricatura “No Juízo Final”, «é mais difícil do que encontrar agulha em palheiro.».

O António Maria pela pena de Raphael Bordallo Pinheiro, conta-nos a «História dos Ossos: No templo da Santa Maria de Belém (Jerónimos) sente-se agora, altas horas, um ruído estranho, tendo, como é público e notório, sido transferido para aquele templo os ossos de vários sapateiros, na suposição de que entre eles estivessem os de Camões, suspeita-se que são os esqueletos que se aproveitam das honras da imortalidade para bater sola. Vasco da Gama não pode dormir e já requereu ao sr. Pedra Franco que lhe transferisse as duas caveiras para lugar mais sossegado

Não havia um corpo concreto, mas havia uma obra a que se agarrar. O poeta épico, que cantou as glórias da pátria amada, é o símbolo de um período áureo, de um tempo que Portugal se escrevia com letra maiúscula, quando esta horta à beira-mar plantada levou caldo-verde ao Adamastor e espalhou o cavaquinho pelos novos continentes: Uma glória e um orgulho que as gentes da época, mergulhadas na labuta da comercialização, não tiveram tempo de saborear, mas que ficaram registadas em poesia. Depois, foi a decadência e a marginalização à Europa (a qual terminará finalmente com o regresso à CEE), com a própria independência em causa.

Uma das vezes que essa independência de império esteve em perigo, foi no final do século XIX, quando os nossos velhos aliados de sempre, os Ingleses, já confundiam a protecção com a colonização, ou seja, cobravam os recibos da protecção em forma de mapa cor-de-rosa, antecedido pelo pré-aviso de Ultimatum. O pouco orgulho de ser português foi então ferido, e a oposição procurou no túmulo o seu arauto épico.

«- V. Ex.ª atenda que - diz o Sr. Braamcamp a John Bull - dar à Inglaterra Lourenço Marques, segundo a opinião da maioria, é o mesmo que tirar-nos um olho»

«- É exactamente o que eu quero. - retorque John Bull - Fica uma nacionalidade à Camões» (in Raphael Bordallo Pinheiro in António Maria l0/6/1880).

Camões, como grito de indignação contra um Governo impotente, reviveu com o tricentenário comemorado em 1880. O principal dinamizador desta celebração foi o Partido Republicano, fomentando a identificação Camões/nacionalidade, Camões/Portugal de cabeça levantada. Camões/liberdade no intuito de derrubar um regime caduco e vendido pelos tratados e empréstimos (e na altura ainda não havia o FMI).

Dois anos depois, com as comemorações do centenário do Marquês de Pombal, verificar-se-á uma nova tentativa de mitificação da liberdade e nacionalidade. O Marquês simbolizava a força da reconstrução, a expulsão dos jesuítas/monárquicos, a iluminação das trevas da opressão.

Os centenários passaram, assim como os ânimos, mas a obra poética de Camões era bastante forte para que sempre que necessário, aparecesse como o facho da nacionalidade servindo monárquicos ou republicanos, ditaduras ou democracias. Camões é o mito do orgulho de um povo que vê melhor com um só olho do que com os dois. Uma solução que certamente os políticos ainda não ponderaram para nos governarem melhor.


Wednesday, November 25, 2020

The Caricature Exhibition for Egyptian Cartoonist Effat 2020», subordinada ao tema "In love of Effat"

Neste momento o Egipto homenageia um dos seus mestres do humor gráfico, Mohamed Effat Ismail com uma magna exposição internacional

https://caricatureforum.blogspot.com/2020/11/omar-perez-spain.html?spref=fb&fbclid=IwAR2-GWqIblwKSUEUA4glbSXUjrsTnuQQVOZPGXkdzIdCBRGu0T-5Hu755Pw

Antonio Santos

 Estas são algumas das caricaturas ai expostas, 


seguindo-se o texto «Effat uma caneta satírica no Egipto» por Osvaldo Macedo de Sousa (texto do catalogo da homenagem que lhe outorguei quando lhe atribui o Prémio AmadoraCartoon/11, integrado no 22º Festival Internacional BD da Amadora 2011, pela sua carreira) 

                Mohamed Effat Ismail é, nos dias de hoje, uma das vozes mais representativas do humor gráfico esgípcio. É homenageado este ano com o Prémio AmadoraCartoon 2011 pelo seu trabalho como humorista, mas também, pelo seu contributo na dinamização e divulgação do cartoonismo no Egipto.

                Natural do Cairo, estudou Belas Artes e, em 1985 iniciou a sua carreira como cartoonista ao integrar o «Akhbar El-Joum», prosseguindo no «Kitab El Joum», «Akhbar Newspaper»… Hoje trabalha como free-lancer.

                Não é fácil esta profissão, onde os fundamentalismos religiosos, económicos e políticos dominam a sociedade e, o Egipto, é um desses locais. Mas Efat é o símbolo da persistência: representante do Egipto no projecto mundial «Wittyworld» (anos 90), ; fundador e Presidente da associação FECO Egipto (desde os anos 90); criador de vários concursos e exposições de humor gráfico no Egipto; membro de júris em Festivais Internacionais um pouco por todo o mundo onde, por vezes, realiza também exposições temáticas; professor de work-shops de humor para crianças; membro do grupo fundador do «Fayoum Museum»; coordenador do «Pharaos Magazin of Cartoon».

                Publicando na imprensa egípcia, editando livros e postais ilustrados, correspondente de jornais de expressão árabe, ele e o humor egípcio estão activos porque, como diz Effat «agora os nossos problemas… são muitos!!!!... mas o egípcio tem muito humor dentro de si. Este poder de espírito que é fundamental na sobrevivência, foi-nos legado pelos antigos faraós… Por isso… o futuro do humor no Egipto, é a vida!!!».







Caricaturas Crónicas - A CARICATURA E A SEMANA SANTA por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 7/4/1985)

A comunicação, seja verbal, literária ou pictórica tem como raiz, ou substrato, a simbologia, estruturas gráficas ou sonoras que traduzimos automaticamente para compreensão imediata das «mensagens»; Na caricatura a simbologia é uma das principais armas de comunicação, já que, baseando-se na síntese, um pequeno desenho tem que dizer o máximo possível sem legenda, podendo contudo o texto ajudar a rapidez dessa leitura gráfica.

As simbologias podem ser herméticas ou abertas, segundo se deseje relacionar com um núcleo, ou com a maioria. Então, para o segundo caso a simbologia deve estar mais próxima da vida do dia a dia, dos acontecimentos sociais, políticos ou religiosos. Desta forma, e quando a censura (política ou eclesiástica) o permitam, também vivência religiosa e bíblica é utilizada como simbologia de comunicação, como é o caso da Semana Santa.

A Semana Santa dá ao caricaturista uma quantidade enorme de simbologias para explorar, tanto no âmbito cenográfico, como de contexto, por :exemplo: o beijo da traição de Judas pode ser lido como a traição dos políticos que atraiçoam o povo eleitor, que lhes viram as costas por um bom posto governativo, por um suborno... (curiosamente nunca se utiliza a simbologia do suicídio de Judas ou seu arrependimento) A flagelação de Cristo, é a f1agelaçao do Zé Povo com os impostos, e cada imposto novo é mais um espinho na sua coroa. O transporte da cruz é o símbolo de que, apesar de flagelado pelos impostos, pela miséria, despido de tudo e quase sem direitos, tem que transportar o País para a frente, mesmo agora que já existem boas camionetas que poderiam levar a, cruz sem esforço. A crucificação do Cristo-Zé é o dia adia, é a vinda do primeiro-ministro à televisão pedir mais sacrifícios porque a crise está a acabar, mas mesmo assim necessita de mais um esforço final, um esforço pelo nacionalismo, pelo futuro, enquanto que o Governo «joga aos dados» a ultima túnica do Zé.

A Ressurreição? Sobre isso não se deve falar, não se deve fazer simbologias revolucionárias, porque é perigoso para o Governo e para a nação, já que a ressurreição do povo, a revolta são um grito das bocas esfomeadas que se devem manter caladas.

Um dos caricaturistas que mais utilizou esta simbologia da Semana Santa foi Raphael Bordallo Pinheiro, que nos deu de diferentes formas o seu testemunho dorido deste Calvário da vida, que se pode resumir nesta simples abordagem do «Calvário do Paiz» - Vendo-se Jesus-Povo crucificado entre os ladrões Ciência e Trabalho, tendo a seus pés chorosa a República e a Liberdade e legenda diz: «Ahi tendes, crucificado entre a Sciencia e o trabalho, o -infeliz martyr Zé Povinho. Aos seus pés chora uma lacrimosa mãe e uma desgraçada amante. Em baixo acham-se suas excelências os centuriões, assistindo à partida de dados em que se joga a camisa da vítima.» (in António Maria de 21/4/1881)

Muitos outros exemplo se poderiam descrever aqui, como a «Procissão dos Passos-Políticos», «Lava-pés Politico», «A Paixão Popular»… todos de Raphael assim como muitos outros de outros artistas que utilizam todos as mesmas simbologias para descrever a mesma revolta o mesmo Calvário.

Por vezes, em, vez da relação Jesus-Zé Povo, opta-se por Jesus-Portugal, esse velhinho de mais de 800 anos, escanzelado, com a camisa aos farrapos sempre a sofrer os maus tratos dos seus governantes e dos aliados dos governantes, que continuadamente flagelam o nosso país com juros, com desconsiderações, com ultimatuns... Difícil cruz esta do Zé e do velho Portugal.


Tuesday, November 24, 2020

Caricaturas Crónicas - «Raphael Bordallo Pinheiro: a ironia na caricatura» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 9/5/1985)

Raphael Bordallo Pinheiro é sem dúvida um dos mestres da caricatura portuguesa, não só por ter sido a voz mais importante do jornalismo gráfico do séc. XIX, como o mais influente artista da nossa história. O seu estilo criou escola, sob o nome de rafaelismo (ou bordalliano segundo outros historiadores), e ainda hoje subsiste como naturalismo caricatural.

O jornalismo gráfico, ou seja, a ilustração humorística como crítica político-social desenvolveu-se em Portugal com o liberalismo, primeiro sob a fórmula de sátira violenta, depois como crítica «costumbrista».

Quando Raphael nasceu (1846), ainda a sátira violenta (panfletária) dominava, mas já seu pai (o artista realista Manuel Maria Bordallo Pinheiro) com Nogueira da Silva e Manuel Macedo procurava, sob a influência da escola francesa, criar uma nova tendência na sátira portuguesa, instigando o «costumbrismo», dominado pela ironia. As primeiras obras do jovem Raphael pertencem a este movimento realista.

Trabalhando sob a influência de seu pai e de Manuel Macedo, em breve libertar-se-á destas influências, para criar não só um traço independente, como uma nova forma de jornalismo.

A sua estreia como caricaturista deu-se em Fevereiro de 1870 (apesar de no ano anterior já ter publicado um cabeçalho de um jornal), data em que publicou uma litografia comemorativa da primeira representação da comédia «O Dente da Baronesa» de António Augusto Teixeira de Vasconcelos (época em que o teatro ainda era encarada como uma possível carreira). Ainda em 1870 publica os seus primeiros jornais («A Berlinda» e o «Binóculo»), antecedidos pelo álbum «Calcanhar d’Aquiles». Em 1875 lanla «A Lanterna Mágica», onde nascerá a imortal figura do «Zé Povinho».

A vida dos caricaturistas em Portugal, mesmo daqueles que, abdicando da sátira violenta procuravam um caminho pela crónica irónica, era difícil, obrigando-os na maior parte serem proprietários dos jornais onde trabalhavam, como aconteceu co Raphael. Aborrecido com os problemas políticos e financeiros, Raphael aceitará um convite para ir trabalhar para o Brasil, onde permaneceu três anos (mesmo aqui, para melhor complementar a sua renda mensal, associou-se a um compatriota como importador de chouriços portugueses).

Se em Portugal tinha tido problemas políticos, no Brasil esses conflitos provocados pelas caricaturas (principalmente vindas de emigrante) chegaram a extremos que puseram em perigo a segurança, não só do artista como da família. Em 1878 regressa a Portugal.

Apesar de ter tido vários convites para trabalhar noutros países da Europa, Raphael nunca mais quis sair de Portugal, com a excepção de uma estadia na Andaluzia, onde fez a cobertura das lutas «carlistas» para o «Illustrated London News», tornando-se desta forma o primeiro correspondente de guerra português. Apesar dessa recusa, isso não impediu que obras suas fossem publicadas nos mais diversos periódicos da Europa, com: «Illustracion Española y Americana», «El Mundo Cómico», «The Illustrated London News», «L’Univers Illustre»….

De regresso a Portugal, ele nunca mais deixaria de comentar (ou perseguir) a política portuguesa, pois ele «…intenta ser a synthese do bom senso nacional (…) Fará todas as diligências para ter razão, empregando ao mesmo tempo esforços titânicos para, de quando em quando, ter graça».

«/…/ Claro está que (Raphael) António Maria não tem outro remédio, na maioria dos casos, senão ser  oposição declarada e franca aos governos, e oposição aberta e sistemática às “oposições”, o que não o impossibilita de ser amável uns dias por outros, e cheio de cortesia em todos os números». Neste editorial de “António Maria” (12/6/1879), Raphael sintetiza a sua filosofia de cronista político.

Durante trinta anos, ele desenharia vários milhares de páginas, comentando a política e a vida social do país. Dirá mais tarde um crítico, que um dia, quando for feita a história da caricatura em Portugal, em vez de Raphael, encontrar-se-á o Partido Progressista, o Fontes, o Zé Povinho. A forma do comentário de Raphael, como testemunho cheio de vida de uma época, confunde-se com os próprios acontecimentos e individualidades. Raphael foi o ilustrador, o comentador e caracterizador de uma sociedade através da ironia, foi «um jornalista sem reservas de paixões cegas», que nos deixou a história da segunda metade do século XIX enriquecida pelos seus comentários, cheio de graça. Como obra-prima, e companheiro da sua saga crítica, ele criou a síntese do povo português, o homem desconfiado, mas ingénuo, o revoltado mas indiferente, o alegre mas saudoso, o Zé Povinho.

Orientador de um novo estilo de sátira como opinião, foi também o criador de um estilo estético marcante. Partindo de um desenho naturalista, apresenta-nos uma abundância de traço de detalhe exagerado. Evoluindo na simplificação das superfícies envolventes, e síntese do traço, verifica-se uma demarcação de contornos que o mantêm ligado à origem do naturalismo. O «barroco» decorativista do traço é uma constante do seu estilo.

Outro elemento inovador de âmbito gráfico que Raphael trouxe para os jornais, está no tratamento da paginação. Trabalhando a página como um todo, ele dialoga as legendas, as letras com a ilustração, criando-a como uma obra única.

Raphael (que morreu em 1905) foi um novo estilo de humor, um novo estilo de traço, uma personalidade que se impôs, criando por isso uma plêiade de discípulos, que ao imitarem-no, criaram uma escola estilística que se mantém até aos nossos dias, como estilo académico. No fundo, os academismos do nosso século, estão dominados pela família Bordallo Pinheiro.


«A caricatura portuguesa em Museu Suíço - Sammlung Karikaturen & Cartoon Basel » por Osvaldo Macedo de Sousa (in JL – Jornal de Artes e Letras in 5/11/1991)

Para o comum dos mortais, Sammlung Karikaturen & Cartoon Basel não significa nada. Para os especialistas de arte, é o nome de uma das maiores colecções-museu de todo o mundo, no âmbito do século XX caricatural.

O Sammlung Kaarikaturen Cartoons é um marco cultural museológico, não só pelo imenso espólio reunido numa dezena de anos (2.200 originais, de cerca de 600 artistas de 35 países), mas essencialmente pela selecção de nomes representativos de cada um dos países dos cinco continentes,

Entre muitos, destacamos nomes como Addams, Arno, Bateman, All Capp, André François, Gulbransson, Heine, Hoffnung, Levine, Searle, Steadman, Steinberg, Ungerer, Grosz, McCay, Dubout…

A partir de agora, a esses nomes associam-se o António, Bandeira, Carlos «Z», Cid, Mais, Netello, Pedro Palma, Rui, Vasco, Vitor e Zé Manel, numa selecção realizada por uma delegação do museu (com minha orientação), que se deslocou este mês a Portugal.

Desconhecendo totalmente a arte portuguesa, foram alertados para o alto padrão de qualidade estética e humorística dos artistas portugueses pelos catálogos dos cinco Salões Nacionais de Caricatura já realizados, organismo que promove anualmente os artistas nacionais, enviando os catálogos das suas iniciativas aos maiores museus de humor do mundo. Esta visão foi enriquecida, ao visitarem em Janeiro a exposição Encontro Luso-Brasileiro de Humor no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, organizado pelo S.N.C. / Casa do Humor de Lisboa (OMS).

Depois de vários contactos do Museu comigo, concretizou-se agora o encontro físico, do qual resultou a aquisição de meia centena de obras. Ficou apenas uma mágoa, a de ainda não terem conseguido adquirir uma obra do mestre João Abel Manta, sem a qual a representação portuguesa nunca ficará completa. Ficou, porém, ainda a esperança de se conseguir colocar uma obra sua ao lado de Steinberg…

Para melhor conhecimento deste museu, entrevistamos o seu curador, Jürg Spärh.

OMS – Como se iniciou este projecto?

Jürg Spärh – Como um sonho de Dieter Burckhardt, que era um homem de negócios ligado ao campo da química. Quando se reformou, em 1976, começou a colecionar originais de caricatura. Como era apenas um amador, e não um verdadeiro especialista, um dia apresentou-me o seu projecto de colecção aberta ao grande público, convidando-me para conselheiro artístico.

Estávamos em 1978 e já tinha algumas obras, mas a partir de agora íamos fazer aquisições sistemáticas. Naturalmente, começamos pelos suíços. Desde aí, temos percorrido país por país (Portugal é o trigésimo quinto), a escolher trabalhos dos melhores artistas nacionais. Eu servia de conselheiro artístico e ele escolhia. Agora que o sr. Burckhardt faleceu (em Fevereiro último), faço as aquisições sozinho.

OMS – Creio que desde logo impuseram uma série de regras para a selecção das obras.

J.S – Desde logo queríamos trabalhos de profissionais, de nomes significativos da história do século XX de cada país. Outra regra era a opção pelo humor não político, universal e se possível sem palavras.

Ficamos apenas pelo século XX, porque não queríamos ter não originais, o que é difícil de encontrar entre os artistas importantes do século XIX. Não quisemos humor político, porque o homem esquece-se muito rapidamente das figuras, dos personagens, dos acontecimentos e o público futuro, sem longas explicações, deixa de compreender, de se divertir com a obra, perdendo o interesse comunicativo a até estético.

Claro que fazemos excepções com nomes fundamentais, dos quais encontramos apenas originais políticos. O mesmo acontece com a BD, a qual não nos interessa em si, mas sim alguns artistas.

OMS – Como selecciona?

J.S. – Preocupo-me primeiro com a qualidade gráfico-estética, depois com o humor e em terceiro com a universalidade da ideia. Por exemplo, se a qualidade for excepcional, e o tema muito nacional, porque não adquiri-lo? Mas, o charme da nossa colecção é o de o público de qualquer país compreender um desenho japonês, português, americano ou russo.

OMS – O público tem noção da excelência dos nomes?

J.S. – Claro que a nós interessam-nos os grandes nomes, e pela mesma razão outrasinstituições mundiais pedem-nos que façamos mostras com o nosso espólio, como já aconteceu em Nova Iorque e vai acontecer em Salzburgo e Hanôver… Porém, creio que a maior parte do público prefere a qualidade humorística, sem se aperceber por vezes das assinaturas. Outros, procuram a colecçãopara observar os mestres, a qualidade estética.

OMS – Todas as obras estão expostas?

J.S. – Não, porque temos um espaço pequeno, uma casa do séc. XVI, no centro histórico de Basileia. Fazemos exposições temáticas de oito em oito meses (já que o público, em média, não vai mais do que uma vez por ano ao museu), rodando as obras, e apresentando-as nas suas diferentes leituras: nacional, temática, estilos… Por exemplo, a 16 de Maio de 1992 inaugurará a exposição temática «Portugal, Brasil?, o que será uma revelação para muita gente, como já foi para nós.


Monday, November 23, 2020

Caricaturas Crónicas - «Stuart: um artista popular» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de21/4/1985

     Um artista pode ser popular em vida, sê-lo após a morte ou sê-lo em ambos os casos. Um artista poder ser reconhecido por uma elite e ser «consagrado», ou ser simplesmente admirado e amado pelas massas. Este ultimo, é o caso de Stuart Carvalhais, um artista (quase) ausente dos museus portugueses, mas presente em várias manifestações que o recordam como um artista do povo. A última homenagem é a re-inauguração de um café-concerto, onde vai funcionar, a partir de agora, uma galeria de arte (da qual fui o seu director) com o seu nome (Bar Stuart – Hotel Impala propriedade do cineasta Paulo Rocha), um espaço vocacionado para a caricatura e ilustração.

                Stuart Carvalhais (Vila Real 1887 – Lisboa 1961) é um vila-realense que viveu Lisboa através da sua arte e da sua vida. Artista boémio, a sua arte será o espelho da sua vida, da sua vivência com o mundo, seja ironizando-o, criticando-o ou ilustrando-o com amor.

                Tendo começado a sua actividade como aprendiz, no estúdio de azulejaria de Jorge Colaço, em breve se dedicou à caricatura e humorismo gráfico, manifestando de imediato uma independência e originalidade de traço, que ao ser envolvido pelo movimento modernista, o catapultou para os principais periódicos, como um dos artistas da «nova vaga».

                Este espírito «vanguardista» que se respirava entre uma certa juventude, levou-o a Paris, a cidade das artes, das novas experiências estéticas, e aí triunfou como caricaturista. Num ano, impôs-se nos principais jornais. Um ano que o marcaria para toda a vida.

Por razões pouco claras, em 1914 teve de regressar para este país onde reina a mediocridade, trazendo consigo a saudade, a frustração da oportunidade perdida em vir a ser «alguém».

                Em Portugal, o artista-boémio retomará o seu trabalho, dispersando-se seja pelos jornais políticos (republicanos, antirrepublicanos, monárquicos, sidonistas…), jornais infantis, de arte e decoração, ilustração, de caricaturas….

                Assim como é difícil definir as suas tendências polícias, também o é no campo estético. Stuart tanto foi um tradicionalista da escola rafaelista, como um modernista, um vanguardista… variando o seu traço consoante o gosto, ou simpatia, do destinatário da obra. Caricaturista, humorista, banda-desenhista, ilustrador de livros, de capas de música, cenógrafo, pintor… ele soube dar ao público o que este, em cada momento, desejava (talvez esta uma das razões para não ser um «consagrado»). Não se pode dizer que se vendia ou que se comercializava, num intuito fácil, simplesmente agradava, para poder sobreviver, para ter dinheiro para uma «bucha» e um «copo de três».

                «Ser artista é ter talento, possuir garra, ser condecorado /…/. Eu não, nunca pintei nada /…/, faço bonecos para distrair a fome. /…/ Artista são os outros». (do «República» de 13/12/1940).

                Ele nunca compreendeu o seu próprio valor (salvo quando esteve em Paris), por isso, sempre trabalhou como um simples operário da imprensa, para ganhar o dia-a-dia e, gastando-o no prazer do dia-a-dia. Ele era um simples, tal como o eram os modelos que ele mais gostava de retratar – os vagabundos, os bêbados (em que ele se refletia), os ardinas, os putos, as prostitutas e seus «cães vadios», as costureirinhas, as varinas, os gatos…. Pintados a óleo, aguarela ou a crayon. Ele transmitia carinho, amor por essa gente que vivia com ele a mesma cidade. Mesmo quando o humor e a sátira estão presentes, nunca é de forma a ofender o povo. Por isso, não só o seu traço era célebre entre os leitores de jornais, assim como a sua personagem o era entre o povo «castiço», ou entre as gentes da noite.

                Se o seu espírito brejeiro tornou célebre as pernas das varinas, a sensualidade do andar das costureirinhas, a cumplicidade das prostitutas, a irmandade dos pequenos ardinas, não menos célebres foram os seus personagens – Quim e Manecas, Zé Manel, Cocó, Reineta e Facada…. entre a camada mais jovem.

                As suas bandas desenhadas foram, não só, das mais interessantes realizadas entre nós na sua época, como pioneiras na utilização de módulos que já caracterizavam os comic americanos e que depois se universalizaria.

                Falava eu há pouco do óleo, aguarela, crayon? Termos «finos», para falar dos materiais que utilizava. É verdade que os encontramos em obras suas mas, na maioria das vezes, ou não havia dinheiro para os comprar, ou não os tinha presentes no momento de inspiração. Então, nesses casos tanto servia qualquer tinta, como borras de café, graxa, fósforo queimado, remédios… , se apesar da diversidade estilística, existe uma constante stuartiana, o efeito «pau de fósforo» é a assinatura mais marcante de Stuart. Com um canivete (ou com os dentes), Stuart fazia de um pau de fosforo um pequeno pincel e, como ele, traçava obras inconfundíveis da sua arte e mestria. Meia dúzia de traços mal definidos, eram o suficiente para retratar a dor, o amor, a miséria, a alegria, a vida de um povo conhecido como lisboeta.

                Stuart poderia ter sido um caricaturista internacional, poderia ter sido um mestre do modernismo português, poderia ter sido…. Mas foi simplesmente um artista boémio, talvez o último da velha guarda, que retratou a velha Lisboa, não a dos prédios novos, mas a do que restava do velho casticismo, da que restava do orgulho de ser «alfacinha». Stuart foi simplesmente, um artista popular.


Caricaturas Crónicas - A CARICATURA DOS DESGOVERNOS por Osvaldo Macedo de sousa (in Diário de Notícias de 23/6/1985)

A política governamental, desde as mais remotas épocas, tem sido apresentada como um circo onde todos tentam devorar-se uns aos outros no intuito de ficarem sozinhos no poder, mas quem acaba sempre por ser devorado é o Zé-Povinho. A permanência ou a queda, são um jogo circense.

Os Governos através da caricatura aparecem-nos como: uma pa1haçada; polichinelos manobrados por cordelinhos invisíveis; ilusionistas que através de truques enganam o Zé-Povinho; saltimbancos que saltam entre os arcos da «Rethorica Pitoresca» enquanto fazem «Cambalhotas Gramaticais»; trapezistas que se passeiam pelo ar, ou que andam no arame, arriscando-se que a corda fique bamba e caiam. Quando um caí, de imediato outro lhe toma o lugar.

O caricaturista como porta-voz do Zé, é oposição à oposição e ao Governo, porque segundo os adágios e provérbios do "Pontos nos ii" (RBP – 11/9/1880), «de Deus vem o bem, e do governo vem o mal»; «Quando o povo diz ai, o Governo diz, daí». São oposição porque os Governos «são como aqueles ferreiros de capelistas: quando o Governo X está no Poder, o povo é sempre um arruaceiro que precisa de guarda municipal como de pão para a boca, ao passo que o Governo Y lhe chama povo livre que pretende zelar os seus interesses. Desce o Governo X e sobe o Governo Y; ê logo este quem fornece guarda municipal aos arruaceiros e àqueles que aplaudem o procedimento do povo soberano. Por isso se vê que o Zé-Povinho tem nos governos /…/ duas parcialidades que o aplaudem e o zurzem - alternadamente,  para não cansar a braço. Em vendo alguém a dar-lhe palmas, já sabe que amanhã lhe dará pancada». (RBP, in "Pontos nos ii” 7/4/1885).

O político, na caricatura, não é de fiar, porque não passa de um bailarino que de pirueta em pirueta salta de trapézio em trapézio - «Homem, eu sou republicano é verdade e sirvo os progressistas, mas, parece-me, que os regeneradores ainda ficam… Estou capaz de me passar para eles…» (Sebastião Sanhudo. in “Sorvete" 29/9/1878).

Um baile com cada um à procura do seu par ideal do momento - «Demissões, nomeações, transferências, substituições, eis a cena em que perdem os nossos amigos de Ontem e ganham os nossos amigos de hoje.» (RBP. in «Pontas nos ii, 15/4/1886 ).

Destes bailados nascem os governos eleitos pelo povo, a troco de «carneiro com batatas». Em princípio, estes devem governar o melhor possível, seguindo de perto o programa apresentado ao eleitorado, mas, estando no Poder o fundamental para os governantes é aguentar o máximo de tempo, mesmo que seja necessário fazer ginástica - «Encontramos a verdadeira denominação para o actual Governo: - Um governo de cauchu. É muito maleável. Estende-se ou encolhe-se, conforme a situação. É um perfeito governo de cauchu, porque apertado, espremido, entalado e achatado até à última pela oposição, comprime-se, geme, chia, barafusta e encolhe-se até às menores dimensões. Largam-no convictos de que ficou amassado de vez, estende-se, grita (salta por cima de todas as considerações, ficando novamente aprumado.» (Almeida e Silva in «Charivari», 22/6/1889).

Os governos de cauchu são bonecos «sempre em pé», porque pirueta para um lado, pirueta para outro, mesmo desgovernando, conseguem manter como que por magia o equilibrismo.

Quando há governo há oposição, e toda e qualquer oposição tem como primeiro objectivo derrubar o governo na ideia de o substituir nos malabarismos e ilusionismos políticos. No fundo, é um jogo de forças no cai não cai. Pode cair através de eleições, a forma mais natural, mas também pode cair porque pressionado pela oposição ou pelo povo, uma força superior ao governo, alguém entalado entre os dois lados tem que tomar a decisão:

«Uns pedem-me que conserve o governo: devia empregar o vinagre para a conserva. Outros pedem-me que o faça cair, devia empregar o azeite para ele escorregar... Para satisfazer a ambos vai azeite e vai vinagre, e vai salsa, e vai cuentro, e assim arranjo uma salada para os assados em que me vejo.» (RBP. In “Pontos nos ii", 15/3/1888). .

Quem cai sempre é o Zé-Povinho, porque, hipnotizado volta sempre a colocar os mesmos polichinelos no governo, e a razão, segundo o caricaturista Sebastião Sanhudo é que o «povo português é exactamente da índole do boi. Uma criança qualquer o conduz aonde deseja sem que ele saia da sua mazorice habitual. Não é como o couraçado Pimpão: que se apertam muito com ele -  estoira. Nem como a nossa guarda municipal que esmaga tudo quanto encontra diante de si... em certas ocasiões. O povo português é como o boi de trabalho, tem força mas não sabe que a tem. É preciso picarem-no tanto para ele andar mais um pouco...» (in "Sorvete” 16/7/1882).


Sunday, November 22, 2020

«O Exílio político de Leal da Câmara – Exposição com um desconhecido chamado Picasso» por Osvaldo Macedo de Sousa (in revista «História» nº 71 de Setembro de 1984)

Certamente que o nome de Leal da Câmara não é estranho aos leitores desta revista, e todos, ou quase todos, sabem que foi um dos nossos grandes caricaturistas do passado. Nasceu em Nova Goa (Índias Portuguesas) a 30 de Novembro de 1876, filho de um oficial expedicionário, e de uma senhora pertencente a uma das famílias mais importantes da Índia Portuguesa.

Poucos anos permaneceu na colónia, e passou a sua vida de estudante em Lisboa, na companhia da mãe, então já viúva. A sua educação, no fundo, provém do meio tradicionalista da vida lisboeta, da sua família de burguesia acomodada e do espírito revolucionário que pairava no ar, levando o povo a reclamar as promessas do “Mindelo”, onde seu avô paterno tinha sido um herói.

Apesar destes antecedentes heroico-revolucionários e do ambiente fervilhante à sua volta, a família queria para Tomáz Júlio Leal da Câmara uma educação e uma carreira dentro da tradição da boa burguesia, levando-o a cursar Agronomia e Veterinária. Só que nem sempre os desígnios maternos podem ser cumpridos, e neste caso, o seu espírito boémio e «revolucionário» foram mais fortes, tendo-se mantido naqueles estudos apenas um ano, voltando-se para o desenho, uma das suas paixões de sempre, e para a sátira, fruto da sua adolescência irreverente.

Pelos anos 90 (de oitocentos) já D. Carlos era Rei e a política, quer a continental quer a colonial, continuava a ser contestada, tanto pelos grupos da oposição parlamentar, como pelos grupos socialistas, anarquistas ou republicanos e, Leal da Câmara integra-se nestes últimos, servindo-os com o seu lápis agudo e perspicaz.

A ESTREIA DE LEAL DA Câmara       

Em 1896 João Chagas começa a dirigir o jornal «A Marselheza» (que se deveria chmar «República» não fosse a proibição oficial)), ao qual, a partir de Novembro de 1897, se lhe agrega um «Suplemento de Caricaturas» ilustrado por Leal da Câmara. Sem este acontecimento, provavelmente nunca a «Marselheza» tivesse a fama com que ficou para a História, pois foi graças ao tal suplemento que este periódico ganhou a «glória» de ser «o jornal de maior circulação em todo o Governo Civil».

Leal da Câmara já era conhecido do público através das suas caricaturas nos «D. Quixote» e «Ridículos» (1896/7), mas será através da «Marselheza» (e depois do desaparecimento desta, da «Corja»), que o seu cunho satírico se encarniçaria contra o Rei e seus ministros, contra o Juiz Veiga (representante da opressão policial a jurídica do Governo Civil), contra o regime encarnado mais tarde por um chapéu à Mazzantini.

A caricatura existia em Portugal desde os anos 50 (a nível periódico), e tinha tido entretanto grandes mestres do humor e da sátira, como Cecília (Lopes Pinta-Monos), Raphael Bordallo Pinheiro, Sebastião Sanhudo, Celso Hermínio… e se estes sempre atacaram a política, os reis…., se Costa Cabral, Fontes Pereira de Melo…. Foram alvo de centenas de caricaturas, nunca um caricaturista em Portugal tinha atacado com tanta frontalidade e sátira os políticos e, essencialmente o Rei, como Leal da Câmara. Esta sua agudeza de crítica valeu-lhe, não só a fama entre um certo público, como no Governo Civil e, consequentemente uma constante perseguição policial aos seus trabalhos, multas, apreensões e finalmente a proibição de caricaturar o Rei.

Mas, esta proibição, para um bom caricaturista, não é um impedimento, antes pelo contrário e, como já tinha feito o francês Philipon há uns bons 50 anos antes, tal figura foi substituída por símbolos que não só o identificavam, como o transformavam em melhor alvo do riso.

As querelas iam aumentando, mudou o nome do jornal, continuaram as perseguições, e em Outubro de 1898, perante a preensão de mais um número de «A Corja», Leal da Câmara manda imprimir e distribuir gratuitamente uma folha onde um ardina, tentando vender «A Corja», fugia de um «fagulha» (polícia) com o seguinte texto como legenda: «À hora a que escrevemos este Suplemento a polícia está apreendendo o nº17 da Corja. A polícia mandada pelo agente Fagulha entra nas lojas e apreende todos os exemplares.

Os nossos vendedores são presos.

O público que faça o comentário a este facto, passado numa cidade onde se acaba de fazer um congresso a favor da liberdade de imprensa».

Esta atitude foi a gota de água que a polícia procurava e, perante esta facto manda proibir «A Corja» e lança um mandado de captura ao autor destes trabalhos agitadores e subversivos.

Leal da Câmara, ao ser prevenido a tempo dos preparativos da polícia e suas intenções, abandonou Lisboa e refugiou-se no Cartaxo, na casa do seu amigo dr. Marcelino Mesquita. Aí permaneceu uns dias, mas em vista das más notícias, vindas da capital, e dos conselhos dos amigos, viu-se na necessidade de partir para o exílio, sendo deste modo, o primeiro artista gráfico, o primeiro caricaturista, a exilar-se devido à sua obra artística.

EXÍLIO EM MADRID

Partiu para Madrid, na esperança de poder regressar em breve, mantendo por isso contactos directos com os amigos e durante um breve tempo com os seus leitores, através do jornal «O Diabo», periódico dirigido por Diamantino Leite (que também fazia caricaturas). Aí, durante os últimos meses de 1899, foram publicados alguns trabalhos de Leal da Câmara, que este enviava de Madrid (nos quais prosseguia o mesmo espírito e estilo agressivo, mas talvez um pouco mais matizados pela distância). Esta colaboração foi reduzida. Desde então, e até à queda da monarquia, só virá a publicar em Portugal alguns, poucos, trabalhos e já quando a morte desta estava diagnosticada.

Leal da Câmara partia para Madrid, com a simples intenção de aí esperar que os ânimos se acalmassem, e que o seu regresso (em segurança) se pudesse realizar de um momento para o outro, mas os meses foram passando, e em vez do perdão, as notícias que foram chegando diziam que tinha perdido todos os direitos cívicos e que se regressasse, podia ser deportado para Timor, sem a necessidade de qualquer outro tipo de processo.

Mas, enquanto o nosso artista esperava o seu regresso, qual foi a Espanha que ele encontrou? Uma Espanha em guerra contra os movimentos independentistas das suas colónias, ou contra o desejo imperialista de outras potências; uma Espanha destruída pelas guerras Carlistas que dividiram durante quase um século, os espanhóis numa mini guerra civil; uma Espanha feudal, governada por uma oligarquia e pelo caciquismo; uma Espanha pobre, material e espiritualmente, que no fundo não se diferenciava muito de Portugal.

A nível de caricatura, havia em Espanha uma maior preferência pelo humorismo de cunho pitoresco e costumbrista (como nas Zarzuelas), e com raras paixões, pela sátira caricatural. O povo espanhol tem uma tendência natural para este estilo de humor social e político, porque sabe que quando não se autocensura, cai na crítica agressiva, na sátira do excesso. Por isso, apesar desta também existir, procuram temperar o seu gênio «sanguíneo».

Leal da Câmara chega a Madrid de «sangue na guelra», cheio de agressividade por um regime que não lhe deu liberdade de imprensa, nem de expressão, mas curiosamente vai imediatamente cair numa autocensura da ironia, em que permaneceria durante todo o seu exílio, com a tal excepção dos desenhos que ainda em 1898 mandou para «O Diabo».

Tendo ido para Madrid com a ajuda monetária de amigos, o nosso exilado viu-se na necessidade imediata de arranjar dinheiro, e neste caso o melhor é procurar trabalho. Eis as notícias que envia a sua mãe, sobre estes problemas: «Minha querida Mamã: não me guarde ressentimento. Ainda não saíram dos desenhos nos jornais em que lhe falei, mas vão sair. Eu lhos mandarei. Nesta semana publico uma caricatura no «El Album». Trata-se duma revista de certa voga, e o meu caricaturado é Benavente, dramaturgo célebre. Dou-me bastante com ele. Neste mesmo instante estamos lado a lado no café, eu escrevendo, ele botando chalaças. Os jornais em que colaboro são: Revista Vinícuola, La Nacion Militar, El Álbum e La Vida Literaria. Pouco a pouco, como uma formiga rabiga, voi criando nome e subindo em crédito. No próximo número da Vida Litaréia vem uma caricatura que reputo do melhor que tenho feito até o dia de hoje. É a pastel, matéria que acho optimo e vou adoptar doravante.

Quando a finanças, estão mal, mas tenho esperança que hão-de melhorar

MUITOS ELOGIOS – POUCO DINHEIRO       

A recepção a Leal da Câmara pelas tertúlias intelectuais, e mesmo pelo público não podia ter sido mais calorosa. Por exemplo, quando começa a sua colaboração na Vida Literária, ao seu primeiro desenho juntaram-lhe ali esta apresentação cheia de graça e carinho: « S.M. El Diablo – Tenho o gosto de vos apresentar o distinto desenhador português Sr. Leal da Câmara que se encontra em Madrid em consequência de diabruras políticas, o qual se propõe continuar nesta corte a sua campanha caricaturesca, sempre na companhia do diabo, “cicerone” insubstituível para percorrer Madrid nestes tempos de Aguilera». 11/2/1899.

Também o «El Álbum» faria uma apresentação interessante do nosso artista, quando este começou a colaboração naquele jornal (7/7/1899): «Já todo o mundo conhece o caricaturista original, o seu nervoso e estranho regozijo, o seu critério extravagante e raro.

Em periódicos e revistas populares tem feito célebres os traços estupendos, diabólicos, singularmente bufos do seu lápis, e tem revelado um aspecto, uma eloquência, uma sensação da linha que não conhecíamos aqui.

Os “bonecos” de Leal são uma “zancada”, um cómico 2Trapiés” da humanidade, vazia de juízo, pela estrondosa alegria, pela forte travessura desse especial artista que surpreende em todos os perfis, em todos os requebros da linha o picante começo de uma gargalhada estrondosa.

É saneamento satírico; as suas caricaturas, mesmo as mais travessas, não crucificam o paciente, porque fazem rir sem ferir, rir sem desprezo e sem ódio.

Leal da Câmara tem entre nós um futuro brilhante, porque tem um brilhante e original talento».

O futuro poderia parecer brilhante a nível de trabalho, de glória, já que os elogios provinham de todos os lados, mas a nível monetário, não se verificavam as mesmas perspectivas brilhantes: «O problema da minha vida em Espanha – escreve ele a sua mãe – está posto em termos bem claros. Revolvê-los agora é questão de tempo e paciência. Mas a paciência não é o meu forte. Tenho trabalhado como um moiro. Fiz caricaturas sobre caricaturas, algumas de pessoas virgens para essas celebrações, tanto a pastel como óleo, estudadas do natural, que merecem o elogio, entre outros, de Sorolla, Moreno Carbonero, Benlivre. /…/ o êxito dos meus pasteis foi estrondoso no meio intelectual; só há um contra, um grande contra: ter de trabalhar de graça /…/ tanto aqui como em Barcelona e Valência, críticos de certa categoria fizeram charlas e conferencias acerca da caricatura em geral e da minha maneira em particular. /…/ O que preciso é lutar mais, redobrando os esforços, dando um pouco de mão aos periódicos que pagam mal… quando pagam, e preparar desde já nova exposição».

Assim, na permanência em Madrid, para além das caricaturas de personalidades (intelectuais por vezes tão tesos como ele e que por isso não pagavam), dos desenhos humorísticos de tipo pitoresco e costumbrista para os jornais, não encontramos já a sátira política com a agressividade conhecida na «Marselheza» e na «Corja». É natural que Leal da Câmara, como estrangeiro e exilado, não se sentisse tão à vontade em Espanha como em Portugal para satirizar a política, mesmo assim poderemos encontrar uma única caricatura referente ao que se passa em Portugal (Insomnias Reales), que tem um tom bastante moderado, ou então uma ou outra caricatura de cunho internacional, começando deste modo a sua campanha (que prosseguirá com toda a força em França), contra a cobiça imperialista, nomeadamente contra a Inglaterra, Os Estados Unidos da América e contra a Alemanha.

EXPOSIÇÃO COM PICASSO   

Além destas publicações, realizou também uma exposição, a referida na carta à mãe, mostra esta que não foi individual, mas na companhia de mais dois artistas: um grande humorista espanhol – Sancha e um outro artista espanhol, não humorista, mas um simples desconhecido que procurava ainda a sua identidade, o seu caminho – chamava-se Pablo Picasso. A exposição realizou-se na Galeria Weil. Sancha quase se poderá considerar como um seu discípulo porque, se esta influência estética se poderá verificar em todo o meio humorístico espanhol (e em Portugal, após o seu regresso do exilio), na realidade a influência mais marcante seria neste artista que o acompanharia em Paris.

Leal da Câmara estava satisfeito pelo que tinha conseguido realizar num ano de permanência em Madrid, mas perante a constatação que não podia mesmo regressar a Portugal, perante as dificuldades económicas que representava o trabalhar em Espanha, começou a sonhar com a mudança de residência de exilado para a capital das artes – Paris – onde a fama e o desafogo económico seria mais fácil para quem tinha talento.

«E olhe – escreve ele à mãe- andava há muito a acariciar a ideia duma passeata a Paris. A estada ali de uns meses só podia fazer-me bem e seria o coroamento feliz dos meus esforços. /…/Tudo isto vem de introito a eu querer-lhe dizer que o “Imparcial”, a maior gazeta de Espanha, me propôs ir a Paris fazer umas crónicas semanais para os suplementos das segundas-feiras, consagrado às letras. /…/ De Paris enviarei o endereço que é muito possível seja este…. É onde mora Sancha».

Tendo chegado a Madrid no final de 1898, partiu para Paris no princípio de 1900. Aqui consumiu portanto, um ano de exílio, partindo depois para mais onze anos em Paris. Mas, Madrid não foi só o início do seu exílio político, foi também o começo da sua fama no estrangeiro: em Paris, trabalhando para os principais jornais da época («L’Assiette au Beurre», «Rire», «Sourire», «Vie Parisienne») ganhou o reconhecimento internacional do seu talento.

Em Paris, o seu traço satírico dedicar-se-á fundamentalmente à politica internacional, com crítica ao espírito imperialista.

Entretanto, em 1908, pôde começar a enviar do exílio alguns trabalhos para serem publicados em Portugal (no Século) e em 1911 pode finalmente regressar. Aqui continuará por algum tempo a sua actividade de caricaturista em diversos jornais, começando entretanto uma nova vida de conferencista e de professor (actividades que já ensaiava em Paris).

Voltaria, porém, uma vez mais a Madrid, agora para fazer uma série de entrevistas para o jornal brasileiro «A Noite» (em 1915) sobre a posição dos intelectuais e figuras de destaque perante a posição de Espanha na Guerra Mundial. Fará também uma série conferências, publicará algumas caricaturas em jornais espanhóis e acabará por publicar um livro sobre essa viagem chamado «Miren Ustedes».

Regressando a Portugal, manter-se-à por pouco tempo no mundo do humorismo e da caricatura, para se dedicar preferencialmente á pintura costumbrista ou bucólica, ou à ilustração de livros e revistas, com preferência pelas historias infantis.

Para esta nova vida, retirou-se para o seu canto da Rinchoa (lá existe ainda o seu belo museu) onde construirá um dos últimos redutos do mundo saloio. Viria a morrer em 1948.


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