Thursday, November 26, 2020

Caricaturas Crónicas - CAMÕES NA CARICATURIZAÇÃO DE UM MITO por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 9/6/1985)

"O Zé-povinho chega quase a convencer-se de que Os Lusíadas deve ser uma coisa talvez um pouco superior à Carta Constitucional» (Raphael Bordallo Pinheiro, in António Maria de 10/6/1880)

Quando as forças se diluem, quando a criatividade é substituída pelos sonhos, os mitos têm de ser inventados, fomentados. Um mito não é um herói, pois esse ainda está vivo e pode despertar da passividade as populações. O mito é algo morto que se tenta colar numa imagem, revivendo pela lenda, pela história, vendo através do nevoeiro o que não existe.

No século passado; uma das tentativas de despertar o orgulho nacional onde este não existia mitificou-se como Camões. A «feliz» coincidência da celebração do tricentenário do poeta com a pseudo derrocada do «império» foi o despoletar desse mecanismo substitutivo.

Antes do mais, era necessário enterrar condignamente o poeta da nossa epopeia, mas «São Pedro convence-se de que descobrir o verdadeiro crânio de Camões», diz-nos J, M. Navarro na caricatura “No Juízo Final”, «é mais difícil do que encontrar agulha em palheiro.».

O António Maria pela pena de Raphael Bordallo Pinheiro, conta-nos a «História dos Ossos: No templo da Santa Maria de Belém (Jerónimos) sente-se agora, altas horas, um ruído estranho, tendo, como é público e notório, sido transferido para aquele templo os ossos de vários sapateiros, na suposição de que entre eles estivessem os de Camões, suspeita-se que são os esqueletos que se aproveitam das honras da imortalidade para bater sola. Vasco da Gama não pode dormir e já requereu ao sr. Pedra Franco que lhe transferisse as duas caveiras para lugar mais sossegado

Não havia um corpo concreto, mas havia uma obra a que se agarrar. O poeta épico, que cantou as glórias da pátria amada, é o símbolo de um período áureo, de um tempo que Portugal se escrevia com letra maiúscula, quando esta horta à beira-mar plantada levou caldo-verde ao Adamastor e espalhou o cavaquinho pelos novos continentes: Uma glória e um orgulho que as gentes da época, mergulhadas na labuta da comercialização, não tiveram tempo de saborear, mas que ficaram registadas em poesia. Depois, foi a decadência e a marginalização à Europa (a qual terminará finalmente com o regresso à CEE), com a própria independência em causa.

Uma das vezes que essa independência de império esteve em perigo, foi no final do século XIX, quando os nossos velhos aliados de sempre, os Ingleses, já confundiam a protecção com a colonização, ou seja, cobravam os recibos da protecção em forma de mapa cor-de-rosa, antecedido pelo pré-aviso de Ultimatum. O pouco orgulho de ser português foi então ferido, e a oposição procurou no túmulo o seu arauto épico.

«- V. Ex.ª atenda que - diz o Sr. Braamcamp a John Bull - dar à Inglaterra Lourenço Marques, segundo a opinião da maioria, é o mesmo que tirar-nos um olho»

«- É exactamente o que eu quero. - retorque John Bull - Fica uma nacionalidade à Camões» (in Raphael Bordallo Pinheiro in António Maria l0/6/1880).

Camões, como grito de indignação contra um Governo impotente, reviveu com o tricentenário comemorado em 1880. O principal dinamizador desta celebração foi o Partido Republicano, fomentando a identificação Camões/nacionalidade, Camões/Portugal de cabeça levantada. Camões/liberdade no intuito de derrubar um regime caduco e vendido pelos tratados e empréstimos (e na altura ainda não havia o FMI).

Dois anos depois, com as comemorações do centenário do Marquês de Pombal, verificar-se-á uma nova tentativa de mitificação da liberdade e nacionalidade. O Marquês simbolizava a força da reconstrução, a expulsão dos jesuítas/monárquicos, a iluminação das trevas da opressão.

Os centenários passaram, assim como os ânimos, mas a obra poética de Camões era bastante forte para que sempre que necessário, aparecesse como o facho da nacionalidade servindo monárquicos ou republicanos, ditaduras ou democracias. Camões é o mito do orgulho de um povo que vê melhor com um só olho do que com os dois. Uma solução que certamente os políticos ainda não ponderaram para nos governarem melhor.


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