Friday, October 06, 2006
Caricaturas Crónicas 11
NACIONALISMOS
Por: Osvaldo Macedo de Sousa
«-Olha, o António já pratica o nudismo!»·
«-Olha, o António já pratica o nudismo!»·
«- Aquilo não é nudismo. É nacionalismo integral.
Não vês que vai de tanga?»
(Stuart, in Sempre Fixe de 1/10/1930).
A questão do nacionalismo é um ponto de muitas visões filosóficas e subjectivas. Para uns, é um sentimento que se centra nos valores simbólicos do hino e da bandeira, elementos sacrossantos, tabus acima de qualquer charge. Para outros, é um estar na vida, um jogo entre a internacionalidade conveniente e o nacionalismo de casta, com uma certa abertura de transgressão para ambos os lados, consoante os ventos e tempos.
Por exemplo: «0 nosso amigo X é patriota de uma cana e nacionalista dos quatro costados. Abre, contudo, umas pequenas excepções: usa bigode à americana, veste-se de autêntico cheviote inglês, tem gato francês e canário belga, é gerente da sucursal de uma Companhia Suiça, mora na Praça do Chile, e pela-se por uma partida de golfe, adora as amêijoas à espanhola, o macarrão à italiana e o bacalhau sueco, não dispensando à sobremesa a salada russa, o queijo f1amengo e as fatias da china, tudo tão bem regado com vinho de Bordéus e cerveja alemã que, o nosso amigo X, patriota de uma cana e nacionalista dos quatro costados, não sabe de que terra é» (Francisco Valença, in Sempre Fixe de 16/9/1937).
A terra é o único elemento fixo dessa estrutura nacional, porque é nela que as raízes se afundam numa prisão sentimental, num sentir acima de qualquer política, que é a Saudade, essa figura mítica lusa da «acção do desejo sobre a lembrança e da lembrança sobre o desejo».
A saudade raramente cria humor, antes, a tristeza, e, conciliando a terra lusa, a saudade e a tristeza, nasce o Fado. É claro que geograficamente o fado é uma canção típica de Lisboa, e apenas desta, com uma variante em Coimbra, só que Lisboa, como capital política e económica deste império de saudades, consegue transformar tudo o resto em paisagem, impondo o Fado como mais um elemento do nacionalismo, e «toda a gente bate o fado, - todos fazem 'escovinhas' mas é sempre o Zé, coitado, - quem apanha as pancadinhas...» (Raphael Bordalo Pinheiro, in Amónia Maria de 5/4/1883).
O Zé, esse "filho das tristes ervas, neto das águas ardentes» (Stuart Carvalhais, in Sempre Fixe de 13/5/1931), é quem paga sempre com tudo, até com a saudade. Mas de que é que o Zé pode ter saudades, já que nunca foi rico, nunca teve uma vida social estável e confortável, sempre teve que lutar por todas as migalhas do seu pão, uma luta de que tem orgulho, e não nacionalismo, e por isso o Fado é importante para quem o canta: «Muito gosto eu de ouvir cantar a minha desgraça» (Stuart, in Sempre Fixe de 5/l1/1930).
O nacionalismo, para além de um jogo de políticos, da mistificação de uns símbolos, não é nada se não for um riso aberto, se não puder suportar o nudismo e mostrar a verdade feita sentimento. A tanga é por vezes o último reduto da decência do Zé, e ao menos que a bandeira lhe sirva como tal. Dessa forma ridícula, dessa forma útil, o nacionalismo poderá então ser amado, ser vivo, não como uma saudade moribunda, não como um fado miserabilista.
Tuesday, October 03, 2006
Caricaturas Crónicas 10
OS «IN DIZ POSTOS»
Por: Osvaldo Macedo de Sousa
IVA Deus pelo universo quando projectou um mundo em quatro dimensões, onde a trindade era una e a duplicidade dominava. Um mundo duplo, tendo por um lado a sociedade, pelo outro o marginal; de um a verdade, do outro a mentira; de um o doce, do outro o amargo; de um o belo, do outro a arte contemporânea; de um lado o Zé, do outro o político, porque, lá diz o adágio popular, «De Deus vem o bem, e do Governo vem o mal» (in «Pontos nos ii», 11/9/1890).
Deus criou o mundo e o Homem. O Homem criou o objecto como utensílio de sobrevivência. A sobrevivência criou o político, o qual criou o imposto. Deus criou um paraíso para o Homem, mas como este não o soube merecer mandou-lhe um político, condenando-o a pagar impostos durante toda a eternidade, o qual nomearia um gestor público para transformar esse Paraíso público em Inferno privado.
Deus tinha criado o Homem como tantos outros animais, mas um político prometeu-lhe um maior futuro, e ele roubou o fogo da consciência. Como castigo transformou-se num marginal, num contrapeso que desequilibra a balança natural do mundo.
Deus criou o bem e o Homem transformou-o no mal. Deus criou a espiga como a semente, reprodutora da abundância, e o Homem fez da vida uma grande espiga: «...todos têm a sua espiga: uns a doença, outros os empregos, outros os jornais e todos a falta de dinheiro, a maior de todas as espigas» (R. B. P., in «António Maria», 27/5/1892).
O Homem criou o objecto como um elemento auxiliar na sua luta pela sobrevivência. O Homem é o bem, a natureza o mal a vencer. Esses objectos, utensílios inspirados na anatomia, são prolongamentos dos nossos dedos, como por exemplo o pente, a pinça...; das nossas mãos, como o copo, o prato, a bacia... quando estas estão abertas, ou o martelo quando se fecha o punho (a foice só veio depois); dos seus dentes, como a faca, a serra, a varinha mágica...
Outros utensílios apareceram, não como prolongamentos visíveis, mas como, estudo mecânico da nossa anatomia como articulações exteriores, como são o caso das tesouras, balanças... máquinas, próteses do homem que o levaram à civilização. Viagem longa, primeiro a burro, depois a carroça e finalmente de veículo motorizado. Um longo caminho cheio de buracos, tal como as estradas nacionais (essa uma das razões por que ainda não chegámos ao progresso e à civilização).
Em qualquer estudo da evolução do Homem, ou da história dos descobrimentos mecânicos, nunca encontrei, o imposto como um objecto de sobrevivência do Homem. Mas, na história das sobrevivências já encontramos o dito imposto, como criação dessa quarta dimensão humana, o político.
O imposto não é uma criação natural; mas imposta exteriormente, e essa a razão da partícula IM. Qual a sua importância? Por exemplo, analisamos o seguinte texto: Ao político é (im)possível não ser (im)parcial, porque naturalmente existe uma (im)potência intrínseca em não realizar (im)posturas viáveis para a sociedade.
O «im» é uma partícula de grande importância política, porque, se não é uma articulação anatómica, é uma articulação governamental.
O Governo vive dos im-postos, o Zé trabalha im-posto. Uma articulação harmoniosa para uns, enquanto a que para outros é a eterna espiga: «O ministro da Fazenda faz andar os escrivães da dita n'uma verdadeira dobadoira; mas, por mais que ele destrince, o pobre contribuinte é que há-de ficar sempre embrulhado na meada» (R.B.P., in «Pontos nos ii» a 21/10/1886).
O imposto é uma necessidade governamental: « - O patriotismo exige que o país se dispa um pouco mais...» «- Mais do que isto?» (pergunta o Zé já todo nu)·«- Sim, exige-o o patriotismo» (R.B.P., in «António Maria», 13/1/1981). Uma cantiga que já é muito velha, mas que todos os dias os políticos a cantam como a novidade. É que, como o desenhou Cecília em 1848, o Orçamento é uma cuba rota que os impostos nunca conseguem encher.
No final, já não se sabe onde está o bem ou onde está o mal, e iva o português a matutar nos seus impostos quando lhe caiu na cabeça um outro, proveniente do céu, perdão da CEE: «Aguenta, Zé! A coisa vem do alto, manda-a nosso senhor; portanto puxa por os cordões à bolsa, paga e na bufes!...» (A. Silva, in «Charivari», 26/4/1890).
IVA Deus pelo universo quando projectou um mundo em quatro dimensões, onde a trindade era una e a duplicidade dominava. Um mundo duplo, tendo por um lado a sociedade, pelo outro o marginal; de um a verdade, do outro a mentira; de um o doce, do outro o amargo; de um o belo, do outro a arte contemporânea; de um lado o Zé, do outro o político, porque, lá diz o adágio popular, «De Deus vem o bem, e do Governo vem o mal» (in «Pontos nos ii», 11/9/1890).
Deus criou o mundo e o Homem. O Homem criou o objecto como utensílio de sobrevivência. A sobrevivência criou o político, o qual criou o imposto. Deus criou um paraíso para o Homem, mas como este não o soube merecer mandou-lhe um político, condenando-o a pagar impostos durante toda a eternidade, o qual nomearia um gestor público para transformar esse Paraíso público em Inferno privado.
Deus tinha criado o Homem como tantos outros animais, mas um político prometeu-lhe um maior futuro, e ele roubou o fogo da consciência. Como castigo transformou-se num marginal, num contrapeso que desequilibra a balança natural do mundo.
Deus criou o bem e o Homem transformou-o no mal. Deus criou a espiga como a semente, reprodutora da abundância, e o Homem fez da vida uma grande espiga: «...todos têm a sua espiga: uns a doença, outros os empregos, outros os jornais e todos a falta de dinheiro, a maior de todas as espigas» (R. B. P., in «António Maria», 27/5/1892).
O Homem criou o objecto como um elemento auxiliar na sua luta pela sobrevivência. O Homem é o bem, a natureza o mal a vencer. Esses objectos, utensílios inspirados na anatomia, são prolongamentos dos nossos dedos, como por exemplo o pente, a pinça...; das nossas mãos, como o copo, o prato, a bacia... quando estas estão abertas, ou o martelo quando se fecha o punho (a foice só veio depois); dos seus dentes, como a faca, a serra, a varinha mágica...
Outros utensílios apareceram, não como prolongamentos visíveis, mas como, estudo mecânico da nossa anatomia como articulações exteriores, como são o caso das tesouras, balanças... máquinas, próteses do homem que o levaram à civilização. Viagem longa, primeiro a burro, depois a carroça e finalmente de veículo motorizado. Um longo caminho cheio de buracos, tal como as estradas nacionais (essa uma das razões por que ainda não chegámos ao progresso e à civilização).
Em qualquer estudo da evolução do Homem, ou da história dos descobrimentos mecânicos, nunca encontrei, o imposto como um objecto de sobrevivência do Homem. Mas, na história das sobrevivências já encontramos o dito imposto, como criação dessa quarta dimensão humana, o político.
O imposto não é uma criação natural; mas imposta exteriormente, e essa a razão da partícula IM. Qual a sua importância? Por exemplo, analisamos o seguinte texto: Ao político é (im)possível não ser (im)parcial, porque naturalmente existe uma (im)potência intrínseca em não realizar (im)posturas viáveis para a sociedade.
O «im» é uma partícula de grande importância política, porque, se não é uma articulação anatómica, é uma articulação governamental.
O Governo vive dos im-postos, o Zé trabalha im-posto. Uma articulação harmoniosa para uns, enquanto a que para outros é a eterna espiga: «O ministro da Fazenda faz andar os escrivães da dita n'uma verdadeira dobadoira; mas, por mais que ele destrince, o pobre contribuinte é que há-de ficar sempre embrulhado na meada» (R.B.P., in «Pontos nos ii» a 21/10/1886).
O imposto é uma necessidade governamental: « - O patriotismo exige que o país se dispa um pouco mais...» «- Mais do que isto?» (pergunta o Zé já todo nu)·«- Sim, exige-o o patriotismo» (R.B.P., in «António Maria», 13/1/1981). Uma cantiga que já é muito velha, mas que todos os dias os políticos a cantam como a novidade. É que, como o desenhou Cecília em 1848, o Orçamento é uma cuba rota que os impostos nunca conseguem encher.
No final, já não se sabe onde está o bem ou onde está o mal, e iva o português a matutar nos seus impostos quando lhe caiu na cabeça um outro, proveniente do céu, perdão da CEE: «Aguenta, Zé! A coisa vem do alto, manda-a nosso senhor; portanto puxa por os cordões à bolsa, paga e na bufes!...» (A. Silva, in «Charivari», 26/4/1890).
Monday, October 02, 2006
Caricaturas Crónicas 8
QUARESMAS CARICATURAIS
Por: Osvaldo Macedo de Sousa
Pelo cruzar das linhas se tece a vida, a qual é a luta no dia-a-dia, é a gargalhada de uns perante a queda de outros, é a caminhada íngreme, com seus obstáculos e tropeções nas necessidades de alguns.
O povo, na sua visão sábia, e irónica, simboliza esta labuta num paralelismo, onde a «Cruz» é o pesado sinal dessa luta. Os espinhos (dos impostos), as vergastadas (da opressão, desemprego, desilusões) nada se comparam com este carrego da eterna Quaresma.
Mas tudo isto são símbolos, estruturas-base de toda a comunicação, inc1usive da caricatura. Esta, para que o leitor a traduza facilmente e de imediato, procura o dia-a-dia, os acontecimentos sociais, políticos ou religiosos para melhor veículo. Porém, a utilização desses símbolos ou comparações está sempre dependente de um outro símbolo quaresmal, a abertura das mentes, o saber rir de si próprio, da censura ditatorial, que pela sua fragilidade de conceitos, de espírito limpo prefere fazer calar as bocas dos lápis e da tinta-da-china.
Um desses símbolos «perigosos» pertence à religião, é a cruz que trazemos (quase) todos ao peito, é a Quaresma, porque a «Cruz» não é igual para todos, como diferentes são as texturas das madeiras que a constroem. Para uns é mais leve, porque até o carpinteiro é subornável; para outros é pesada como chumbo, porque a fome é demasiado leve. Mas, todos têm a sua cruz, transportando-a em solitário, em cooperativas, sempre presente nem que seja na sua sombra de ameaça negra: «O pobre Zé depenado / Tanto pagou o patau, / que chega aquelle estado / d'escalado bacalhau.»
«E se isto vae neste andar, / e se a coisa assim mais caminha / há-de acabar por ficar / reduzido a magra espinha.» (J.M. Pinto, in «Charivari», 18/2/1899.) Os paralelos são quase sempre os mesmos, tocando-se a eterna tecla da vida política do Zé povo: os impostos.
«Atráz d'esta procissão vae uma cruz, esta cruz é a dos contribuintes; quem carrega com ela é o Zé-Povinho. Os emblemas do poder e os martyrios dos contribuintes são levados pelos anjinhos dos diversos círculos.» («Procissão dos Passos-Políticos», Raphael Bordalo Pinheiro, in Antonio ·Maria 19/2/1880.)
A imagem, por mais que se queira escapar a comparações que possam ofender susceptibilidades, é sempre a mesma, a identificação do Zé com Cristo, porque ambos sofrem os castigos do poder temporal, com a única esperança de uma outra vida. Cristo foi flagelado pelo chicote, o que no Zé dói tanto como as contribuições. Cristo carrega a cruz, o Zé, apesar de despojado, tem que carregar com o País para a frente… e ambos são crucificados. O primeiro, como cumprimento de e um sacrifício, o segundo, como sacrifício cumprido, sem direito a levantamento para reagir.
Mesmo nos trâmites dessa Quaresma, o Zé não vê reconhecido o sacrifício - «O sacerdote da constituição lava indistintamente os pés a todos os partidos, dando assim um exemplo de limpeza de mãos a todos os governos da orbe. Zé Povinho é posto fora, em consequência de no orçamento não haver sabão para ele.» (Lava-Pés Político, R. B. P. in António Maria 25/3/1880.)
Raphae1 foi provavelmente dos caricaturistas que mais empregaram estes símbolos da Quaresma, como se de um Zé da Arimateia se tratasse, tentando levar os políticos a tomar consciência do peso do madeiro, e dos espinhos, ou então avisando esses mesmos políticos dos perigos de um dia o mártir deixar de se sacrificar - «Zé-Povinho, amarrado pelos a laços do deficit à coluna dos, impostos; e ameaçado pela lança do sello, suporta resignado as crueldades dos judeus políticos, até que a cana verde que tem na mão se transforme n'um cacete secco.» («A Paixão Popular» de Raphael B. Pinheiro in António Maria, 21/4/ /1881)
Pelo cruzar das linhas se tece a vida, a qual é a luta no dia-a-dia, é a gargalhada de uns perante a queda de outros, é a caminhada íngreme, com seus obstáculos e tropeções nas necessidades de alguns.
O povo, na sua visão sábia, e irónica, simboliza esta labuta num paralelismo, onde a «Cruz» é o pesado sinal dessa luta. Os espinhos (dos impostos), as vergastadas (da opressão, desemprego, desilusões) nada se comparam com este carrego da eterna Quaresma.
Mas tudo isto são símbolos, estruturas-base de toda a comunicação, inc1usive da caricatura. Esta, para que o leitor a traduza facilmente e de imediato, procura o dia-a-dia, os acontecimentos sociais, políticos ou religiosos para melhor veículo. Porém, a utilização desses símbolos ou comparações está sempre dependente de um outro símbolo quaresmal, a abertura das mentes, o saber rir de si próprio, da censura ditatorial, que pela sua fragilidade de conceitos, de espírito limpo prefere fazer calar as bocas dos lápis e da tinta-da-china.
Um desses símbolos «perigosos» pertence à religião, é a cruz que trazemos (quase) todos ao peito, é a Quaresma, porque a «Cruz» não é igual para todos, como diferentes são as texturas das madeiras que a constroem. Para uns é mais leve, porque até o carpinteiro é subornável; para outros é pesada como chumbo, porque a fome é demasiado leve. Mas, todos têm a sua cruz, transportando-a em solitário, em cooperativas, sempre presente nem que seja na sua sombra de ameaça negra: «O pobre Zé depenado / Tanto pagou o patau, / que chega aquelle estado / d'escalado bacalhau.»
«E se isto vae neste andar, / e se a coisa assim mais caminha / há-de acabar por ficar / reduzido a magra espinha.» (J.M. Pinto, in «Charivari», 18/2/1899.) Os paralelos são quase sempre os mesmos, tocando-se a eterna tecla da vida política do Zé povo: os impostos.
«Atráz d'esta procissão vae uma cruz, esta cruz é a dos contribuintes; quem carrega com ela é o Zé-Povinho. Os emblemas do poder e os martyrios dos contribuintes são levados pelos anjinhos dos diversos círculos.» («Procissão dos Passos-Políticos», Raphael Bordalo Pinheiro, in Antonio ·Maria 19/2/1880.)
A imagem, por mais que se queira escapar a comparações que possam ofender susceptibilidades, é sempre a mesma, a identificação do Zé com Cristo, porque ambos sofrem os castigos do poder temporal, com a única esperança de uma outra vida. Cristo foi flagelado pelo chicote, o que no Zé dói tanto como as contribuições. Cristo carrega a cruz, o Zé, apesar de despojado, tem que carregar com o País para a frente… e ambos são crucificados. O primeiro, como cumprimento de e um sacrifício, o segundo, como sacrifício cumprido, sem direito a levantamento para reagir.
Mesmo nos trâmites dessa Quaresma, o Zé não vê reconhecido o sacrifício - «O sacerdote da constituição lava indistintamente os pés a todos os partidos, dando assim um exemplo de limpeza de mãos a todos os governos da orbe. Zé Povinho é posto fora, em consequência de no orçamento não haver sabão para ele.» (Lava-Pés Político, R. B. P. in António Maria 25/3/1880.)
Raphae1 foi provavelmente dos caricaturistas que mais empregaram estes símbolos da Quaresma, como se de um Zé da Arimateia se tratasse, tentando levar os políticos a tomar consciência do peso do madeiro, e dos espinhos, ou então avisando esses mesmos políticos dos perigos de um dia o mártir deixar de se sacrificar - «Zé-Povinho, amarrado pelos a laços do deficit à coluna dos, impostos; e ameaçado pela lança do sello, suporta resignado as crueldades dos judeus políticos, até que a cana verde que tem na mão se transforme n'um cacete secco.» («A Paixão Popular» de Raphael B. Pinheiro in António Maria, 21/4/ /1881)
A CARICATURA E A SEMANA SANTA
Por: Osvaldo Macedo de Sousa
A comunicação, seja verbal, literária ou pictórica tem como raiz, ou substrato, a simbologia, estruturas gráficas ou sonoras que traduzimos automaticamente para compreensão imediata das «mensagens»; Na caricatura a simbologia é uma das principais armas de comunicação, já que, baseando-se na síntese, um pequeno desenho tem que dizer o máximo possível sem legenda, podendo contudo o texto ajudar a rapidez dessa leitura gráfica.
As simbologias podem ser herméticas ou abertas, segundo se deseje relacionar com um núcleo, ou com a maioria. Então, para o segundo caso a simbologia deve estar mais próxima da vida do dia a dia, dos acontecimentos sociais, políticos ou religiosos. Desta forma, e quando a censura (política ou eclesiástica) o permitam, também a vivência religiosa e bíblica é utilizada como simbologia de comunicação, como é o caso da Semana Santa.
A Semana Santa dá ao caricaturista uma quantidade enorme de simbologias para explorar, tanto no âmbito cenográfico, como de contexto, por :exemplo: o beijo da traição de Judas pode ser lido como a traição dos políticos que atraiçoam o povo eleito, que lhes viram as costas por um bom posto governativo, por um suborno... (curiosamente nunca se utiliza a simbologia do suicídio de Judas ou seu arrependimento) A flagelação de Cristo, é a f1agelaçao do Zé Povo com os impostos, e cada imposto novo é mais um espinho na sua coroa. O transporte da cruz é o símbolo de que, apesar de flagelado pelos impostos, pela miséria, despido de tudo e quase sem direitos, tem que transportar o País para a frente, mesmo agora que já existem boas camionetas que poderiam levar a cruz sem esforço. A crucificação do Cristo-Zé é o dia-a-dia, é a vinda do primeiro-ministro à televisão pedir mais sacrifícios porque a crise está a acabar, mas mesmo assim necessita de mais um esforço final, um esforço pelo nacionalismo, pelo futuro, enquanto que o Governo «joga aos dados» a ultima túnica do Zé.
A Ressurreição? Sobre isso não se deve falar, não se deve fazer simbologias revolucionárias, porque é perigoso para o Governo e para a nação, já que a ressurreição do povo, a revolta são um grito das bocas esfomeadas que se devem manter caladas.
Um dos caricaturistas que mais utilizou esta simbologia da Semana Santa foi Raphael Bordallo Pinheiro, que nos deu de diferentes formas o seu testemunho dorido deste Calvário da vida, que se pode resumir nesta simples abordagem do «Calvário do Paiz» - Vendo-se Jesus-Povo crucificado entre os ladrões Ciência e Trabalho, tendo a seus pés chorosa a República e a Liberdade e legenda diz: «Ahi tendes, crucificado entre a Sciencia e o trabalho, o -infeliz martyr Zé Povinbo. Aos seus pés chora uma lacrimosa mãe e uma desgraçada amante. Em baixo acham-se suas excelências os centuriões, assistindo à partida de dados em que se joga a camisa da vítima.» (in António Maria de 21/4/1881)
Muitos outros exemplo se poderiam descrever aqui, como a «Procissão dos Passos-Políticos», «Lava-pés Politico», «A Paixão Popular»… todos de Raphael assim como muitos outros de outros artistas que utilizam todos as mesmas simbologias para descrever a mesma revolta o mesmo Calvário.
Por vezes, em, vez da relação Jesus-Zé Povo, opta-se por Jesus-Portugal, esse velhinho de mais de 800 anos, escanzelado, com a camisa aos farrapos sempre a sofrer os maus tratos dos seus governantes e dos aliados dos governantes, que continuadamente flagelam o nosso país com juros, com desconsiderações, com ultimatuns... Difícil cruz esta do Zé e do velho Portugal.
Sunday, October 01, 2006
Caricaturas Crónicas 8
PENÚRIAS
Por: Osvaldo Macedo de Sousa
Quando as mentes dos governantes não têm a tranquilidade dos homens honestos e honrados, quando os interesses da nação são apenas os de alguns, c não querem ser incomodados pela ralé que clama pelo seu, optam então pela censura, como se só por isso fosse possível calar as mentes livres dos outros, fosse possível matar a fome de justiça e verdade.
Para os que trabalham na Comunicação Social, a censura, sendo um entrave da sua labuta, não é o seu silêncio. Redobram-se então as canseiras, não vá uma palavra, assunto, magoar a sensibilidade das mentes estupidificadas dos censores, não vá algo sair do seu controlo. Isto, claro, para quem não se vende à comodidade dos vendidos, para quem a informação verdadeira tem mais importância que a mentira, e, se nada apaga as mentes caladas, também há fórmulas das palavras caladas, dizerem coisas importantes. E essa a ginástica que o profissional da escrita e da comunicação tem de fazer, sempre que as sombras obscuras da ditadura procuram sufocar a luz.
O humor, como indiscreto meio de dizer coisas alegre e preocupadamente, naturalmente, sofre também com a tesoura e o lápis azul da censura, e não raras vezes o «boneco» teve que ser refeito ou a sua legenda mudada. De todos os temas, é a ironia sobre os governantes e seus actos, a sátira à justiça praticada, que sofre mais com a proibição e perseguição, desleixando-se como contrapeso a anedota social, o humor com as pequenas dificuldades da vida, como é a penúria, a eterna companheira do povo.
A penúria, em palavras menos bonitas, é a miséria que não é exclusiva das ditaduras, e já na monarquia o humorista comentava em verso: «O pobre Zé depenado / tanto pagou o patau / que chegou àquele estado / d'escalado bacalhau.»
«E se isto vae n'este andar / e se a coisa mais caminha / há-de acabar por ficar / reduzido a magra espinha.» (J. M. Pinto, in «Charivari», de 18/2/1899.)
Na Primeira República, após o falhanço da mudança, interroga-se o caricaturista: «Como será que os pobres é que pagam tudo se elles não teem nada? --É que os pobres pagam com o melhor dos dinheiros, com a pellel» (Leal da Câmara, in «O Miau» de 4/2/1916.)
Com a revolução de Maio, a miséria não se alterou, apenas a penúria cresceu para alguns, e a ditadura tentou escondê-la melhor. O humor censurado teve então possibilidades, bem controladas, de fazer piada, como ironia dos sofredores, como humor das consciências ricas: «Grandezas dos Pobres: - Que estás a comer? - Fava-Rica. - Ainda não perdestes a mania das grandezas.» (Jorge Barradas, in «Sempre Fixe», de 14/10/1926)
«Quinta-Feira da Espiga - É bom apanhar a espiga neste dia, porque quem a apanhar terá pão todo o ano. - Sim?! E que ervas havemos de apanhar para termos bacalhau e batatas?» (Stuart, in «Sempre Fixe», de 23/6/1933)
Como melhor censura, o Governo proíbe a mendicidade, pensando que dessa forma acabava com a pobreza, que apenas não queria ver, mas que andava à solta pelos bancos de jardim e demais naturezas: «Onde moras agora? - Não tenho casa, moro por aí... - Tem graça... sou teu vizinho.» (Stuart, Ín «Sempre Fixe», de 2/4/1942).
Para que haja pobres, tem que haver ricos, nesse balanço social tão necessário para o equilíbrio estável, e, se uns «trinca-espinhas», outros «trinca fortes», no poema épico que é a vida: «As batatas e os feijões tão desejados / Que este Portugal outrora cultivava, / por sítios já de nós ignorados / passaram para o rol das coisas raras / e em perigos e guerras aturados / para as arranjar muito mais caras / certos gananciosos edificaram / mercado negro, que tanto exploraram!» (Sequeira, in «A Bomba», de 2/7/1946.)