Por: Osvaldo Macedo de Sousa
1912
Em 1912 é publicado o Regulamento do Salão dos Humoristas Portugueses, o qual já denuncia os elementos que estão na Comissão organizadora, ou seja Francisco Valença, J. Stuart Carvalhais, Christiano Cruz, Joaquim Guerreiro, Silva Monteiro, Hipollito Collomb, Cândido Silva, Menezes Ferreira, Alfredo Cândido, Saavedra Machado, Carlos Simões, M. Cardoso Martha, curiosamente estão aqui todos os que participaram no primeiro almoço de homenagem e de boas-vindas a Leal da Câmara em 1911, e de que ficou registo num menu com as auto-caricaturas.
Mais tarde iremos descobrir um homem sombra, que manterá sempre viva esta chama, que é o secretário do grupo o Manuel Cardoso Martha.
Neste Regulamento destacamos alguns artigos:
Artigo 1º - É organizada em Lisboa uma exposição de caricaturas a que podem concorrer unicamente artistas portugueses ou como tais naturalizados.
Artigo 3º - As obras recebidas serão sujeitas à apreciação colectiva de todos os caricaturistas concorrentes, especialmente convocados para tal fim, que se pronunciarão pela sua admissão ou exclusão.
Artigo 4º - Não se permitem:
a) Caricaturas obscenas, ou de flagrante ofensa à moral;
b) Desenhos que contenham alusões de qualquer espécie à vida intima de quem quer que seja;
c) Cópias e reproduções de caricaturas de outros autores, inéditas ou já publicadas;
d) Trabalhos que, embora anónimas ou subscritos com pseudónimos, iniciais, monogramas, etc., não venham acompanhados, na lista de remessa, do nome e moradia do autor.
Poder-se-ia dizer que este artigo é um código deontológico, o primeiro e único que jamais foi apresentado na profissão, mas que a grande maioria sempre respeitou por imposição própria.
Art. 8º - Nenhum expositor pode retirar as suas obras, seja sob que pretexto for, antes do encerrada a exposição, para o que lhe é concedido um prazo de 12 dias a partir desse encerramento.
Art. 10º - Na venda de caricaturas será deduzida uma percentagem de 10% para fundo de reserva de subsequentes exposições, e a favor delle reverterá também o produto da venda de catálogos.
Lisboa, Janeiro 1912
Nesta primeira exposição dos Humoristas participarão Amarelhe (Américo), Aranha (Isidro), Alfredo Cândido, Barradas (Jorge Nicholson), Bordallo Pinheiro (Manuel Gustavo), Bordallo Pinheiro (Raphael), Candido da Silva, Celso Hermínio, Christiano Cruz, Faria e Maya (Ernesto do Canto), Guerreiro (Joaquim), Menezes Ferreira (João), Negreiros (Almada), Nunes (Emmerico H.), Nunes Ribeiro (Carlos Ernesto), Oliveira (António Maria de), Rocha Vieira (Alfredo Carlos), Saavedra Machado (João), Sanches de Castro (A.), Sarmento (Hugo), Silva (Viriato), Silva Duarte (Cerqueira), Stuart Carvalhais (José Pinto), Valença (Francisco), Teixeira (Francisco), Hipolito Collomb, Rodrigues Castañe, Santos Silva (Alonso), ou seja 28 artistas (todos eles com residência na zona de Lisboa, excepto o Stuart que é dado como estando em Paris, e Emmérico que residia de facto na Alemanha) com um conjunto de 330 obras. Curiosamente Joaquim Guerreiro que pertence à Comissão Organizadora não aparece a expôr.
Onde estão os artistas do Porto - Manuel Monterroso, Armando Basto...; de Coimbra - Correia Dias, Luís Filipe... e doutras localidades ???. Amadeo de Souza-Cardoso tinha prometido enviar uma obra, que não chegou. Stuart apesar de estar anunciado no catálogo, parece que também não enviou trabalhos. Curiosamente, Leal da Câmara que está em Lisboa, não participa, fazendo uma retrospectiva pela mesma altura no Salão do Teatro Nacional D. Maria.
Se apenas passou um ano entre o aparecimento do grupo, e a concretização da primeira exposição, não se pense que foi fácil. Antes do mais, como já referi, os humoristas são aves solitárias, por isso foi necessário procurá-los, informá-los, desafiá-los, vencer barreiras, disputas pessoais... Tinha-se que pagar para participar, o que eventualmente terá afastado alguns artistas menos abonados. Em cartas endereçadas a Cardoso Martha descobrimos um pai de Emmerico Nunes preocupado por ainda não ter pago a participação do filho… depois furioso pelos adiamentos da inauguração… depois a pedir a devolução do dinheiro porque já não acredita que a exposição se realiza
Por outro lado, Saavedra Machado escreve uma carta crítica a Cardoso Martha, acusando a forma precipitada e confusa desta organização, defendendo que tratando-se do primeiro certame deste género em Portugal “não é em pouco tempo que se podem apresentar trabalhos razoáveis, com legendas ordenadas, e que pelo menos não envergonhem os Humoristas Portugueses. Tire o Cardoso Martha os nomes do Valença, do Emmérico Nunes, do Carvalhais, do Christiano Cruz, do Collomb e de possíveis mais alguns, e o que lhe restará mais ? - Uma horda de famintos sequiosos de brilharem; amadores sem a mínima preparação, desconhecendo a história do humorismo mundial e que baixarão a caricatura ao insignificante mamarracho que vemos para aí todos os dias. Esta é que é a verdade, a grande verdade que é preciso dizer bem alto....”
O problema é que se partiu com uma série de equívocos. A intenção era a defesa da arte e profissão ? Na realidade, como se pagava, quem pagasse tinha o direito a expor. Assim surgem nomes de pessoas que não publicavam, que nunca vieram a publicar.... num evento que deveria ser o arranque de acção de uma cúpula dos profissionais do humorismo.
Outro equivoco encontra-se no confronto entre concepções humorísticas e estéticas, ou seja a luta pela ‘defesa da arte’. Os ‘velhos’ e academisados raphaelistas vêm esta iniciativa como uma promoção da arte tendo como proa da iniciativa a homenagem a Raphael com que abria a exposição. Uma plêiade de raphaelistas conservadores dominará em numero. A direcção do Grupo, para evitar conflitos de geração, ou de estética, tinha sido dada a Manuel Gustavo, filho do Mestre. Para amenizar os conflitos, e heranças, fez-se também uma homenagem a Celso Hermínio (que tinha morrido um ano antes do mestre Raphael), de quem os jovens modernistas se sentem mais próximos. Desta forma está presente um passado (académico, e uma modernidade), onde todos se podiam rever.
Os jovens, por seu lado viam esta iniciativa como a primeira manifestação pública da ruptura modernista, consagrando o que já se ia fazendo na imprensa. É preciso lembrar que esta é a primeira exposição de humoristas em Portugal. Já se tinham verificado uma ou outra exposição individual, principalmente logo a seguir à implantação da Republica (Leal da Câmara, Amarelhe, depois Almada, Correia Dias…)
Estas diferenças de concepção, levantarão diversas vozes e clamar pela separação do trigo do joio na criação desta Sociedade, criará quezílias entre os humoristas...
Como verificamos, o anuncio da Sociedade surge em “A Sátira”, jornal propriedade de Joaquim Guerreiro, um artista mediano, que segundo os ecos dessa época se considerava um excelente artista, e senhor de um poder crítico acima de qualquer suspeita, detentor da verdade.... Senhor de grande arrogância, já que tinha dinheiro para lançar as suas próprias publicações, contratar caricaturistas, irá entrar em conflito com diversos artista. Pela carta endereçada por Guerreiro a Valença, a 19/9/12, pode-se compreender a sua postura como Elemento Fundamental da Caricatura Portuguesa: Vou hoje às 2 horas para o Rio de Janeiro, onde vou trabalhar para o bom nome dos caricaturistas portugueses e dos seus interesses futuros no Brasil e Argentina. Começarei por conferências (mas não à Leal da Câmara) depois uma exposição de quadros, etc, etc.
Um dos primeiros a entrar em ruptura com este Joaquim Guerreiro é precisamente Leal da Câmara. O mesmo acontecerá com os lideres do modernismo Correia Dias e Luís Filipe, como nos explica no postal endereçado a Cardoso Martha pelo Christiano Cruz: “Recebi postal de Correia Dias de Coimbra, participando-me que não participa na exposição, e que igual resolução tinha tomado o Luís Filipe. A razão desta sua resolução é eles não quererem emparelhar com o ingramavel Guerreiro. Isto tudo não é mais do que o resultado da política de atracção aplicada à arte...
Segundo me disse o Amarelhe, o Leal da Câmara também não expõe pela mesma razão do Luís Filipe e do Correia Dias. Deves convir em q’isto tudo é um grande transtorno, pois temos de sacrificar três bons artistas, e ter o Guerreiro com as suas pecegadas. Se não fosse por coisas, fazia o mesmo.
Fizemos muito mal em não ‘separar o trigo do joio’. O público não é o tal juiz, como tu dizes: o público é besta, o público é incapaz de separar o bom do mal.”
Além disso, a presença do Presidente da República, que, se por um lado dignificava a Arte do Humorista, minimizou a irreverência satírica, irreverência estética e boémia, tornando-o num acontecimento mundano do Chiado.
É inaugurado a 9 de Maio de 1912 no Grémio Literário, com a presença do Presidente da República, Manuel Arriaga (o qual, numa forma de homenagear os artistas, e incentiva-los, comprou uma obra de cada um - onde estarão estes 28 desenhos ?). O espaço da exposição era um local de grande dignidade intelectual, burguês, conservador, e nessa forma rígida ficará registada a foto do Presidente com os artistas. Como escreveria o critico Veiga Simões “os artistas todos em fila, como tochas de enterro, em frente ao Estado”
Nesse texto de 9 de Julho de 1912 em “A Águia”, o crítico descreve deste modo este primeiro Salão: “Fechou o Salão dos Humoristas onde nada faltou - nem sequer o Humor.
/.../ A máscara do humor dos nossos humoristas é cabeçuda e sombria. Tem o crânio luzidio e liso, os olhos encovados, e as pupilas olham baixo, desconfiadas, sob as pálpebras papudas. O rosto é o bocejo calmo. O bigode grisalho gradeia a boca, apanha o beiço inferior, caído e desajeitado. Tem pêlos nos ouvidos. Ata ao pescoço uma gravata bicolor, e encheu de caspa a gola do casaco. Não é a máscara do humor; é um retrato a crayon de amanuense com filhos e letras no fim do mês.
Ora sucede que na Rua Ivens há uma sociedade de pessoas limpas, génios calvos, sujeitos ornamentais de esquina do Chiado, proprietários em Mato Grosso, primeiros oficiais, e outras forças públicas - que se considera o equilíbrio nacional - denominada, como muito era de ver - Grémio Literário. À sombra deste oloroso roble (já Eça de Queiroz lhe chamou faia) gozavam os Poderes Constituídos as delícias estivais, perderam portadores de nomes vastos a derradeira charneca, e brasileiros considerados, junto ao fogão, sonhem mudanças de câmbio, olhando o fogo, pensativos.
Por uma ironia singular aqui abriram os humoristas o seu primeiro Salão.
/.../ O que ao primeiro relance mais feriu a minha vista (devo dize-lo) foi o amável aspecto dos artistas, numa total compostura que muito era de agradecer; pois alguns houve que dentro de seus hábitos davam mostras de sacrifício, e em todos era muito curioso ver o ar endomingado que tinham querido tomar para melhor receber os visitantes.
/.../ Entrou agora o Poder Executivo, seguido dos homens graves, dos detentores da Constituição. Os artistas ficaram-se todos em fila, como tochas de enterro, em frente ao Estado. O Marta, junto à mesa, tornou-se mais solene ao entregar a pena, solicitando o nome. E o Poder Executivo nem sorri: o Poder Executivo considera... Escorre das salas uma tal melancolia, que a gente, sem saber como, se sente levado nela; e sob o público curvado a inscrever o nome, me pareceu ver na sombra uma larga tarja preta nessa folha de papel onde os nomes se sucedem, isocronissimamente.
/.../ Ao de cima do que se vê fazendo cócegas à vista - os marujos do Sr. Cândido, e o pim-pam-pum em barro do Sr. Coisas - surge um artista tão distante de todos os bons senhores humoristas, que é, se os cavalheiros dão licença, o mais perfeito, o único até agora perfeito artista da caricatura nado e criado em terras de Portugal.
Christiano Cruz, o mago da ironia - olhos quebrados para as coisas de em redor, varando um além ideal de linhas em que desnudam o mundo das vestes usuais para apenas verem na vida o caricato e o cómico. Visão estranha, evocada em relevos, fantasmagorias de nórdico escritor, erguendo para aquém da vida um claro velador em que a vida perpassa só no que tem de caricatural - visão que torna este artista irmão gémeo dum Balzac do grotesco nunca lido.
Fazer caricatura é seguir as sombras das figuras, ora alongando-as em picaresca ronda de espectros-marionetes, agora fluídicas e misteriosas, logo já nédias e anafadas como a gordura dum felizardo. É vincar nas linhas da sombra humana o próprio riso - como o esqueleto é a memória grotesca duma cortesã gloriosa.
Da vida se ergue uma carícia múrmura que nos roça com asas de crepúsculo, e nos enleia em ciciantes vozes marinhas, e nos envolve em sonho, a desmaios de luar. Então, à hora hiperlúcida do espírito, a gente escuta as confidências magoadas que têm as fontes, primeiros deslumbramentos de flores a abrir, as epopeias altas dos oceanos e o silêncio das águas mortas. Isto se diz sentir a vida.
Mas entre a multidão que reduz a si mesma a razão da existência, há conflitos, situações, gestos e traços que o homem criou à sombra do passado, ao sol maneiro dos dias correntes. E tão feita é a vida que aí vai andando, que a cada gesto o homem desenha um arabesco cómico, e da mais trágica situação se levanta a ironia aveludadamente. Só o dandi ideal num mundo super-sensível atingiria a negação do grotesco. Mas - ai! - o dandi ideal não usaria chinó ?
Porque tanto o ascetismo de Simeão Stilita como a vã oratória dum legislador têm em si mesmos a linha caricatural, desenhando-se, tornando-se relevo ou diluindo-se nos longes. Destacar essa linha, atacando na medula o cómico, e com ela o conflito, a situação, o gesto que a gerou: e eis a caricatura.
Por isso mesmo, a história da nossa caricatura realiza o paradoxo de ter primeiro capítulo no que ainda está para vir. É ver o que se fez desde os tempos de “O Patriota” até aos nossos dias, em que Bordallo conseguiu um nome enorme. A nossa caricatura tem andado atada à política, em torno dela vivendo e dela se sustentando; a tal ponto que mais parece Ter sido promovida pelo grande Fontes a Acto Adicional da carta. E mais tarde, quando o seu historiador procurar a mais bela figura da sua primeira idade, com grande pasmo achará, em vez de Raphael Bordallo, o Partido Progressista; e a curiosos estudos será levado para saber o local preciso onde floresceu então, no Terreiro do Paço, a, há muito extinta, Direcção-Geral do Humor.
/.../ O velho mestre (Raphael), à entrada do certame, vinha servir de fiador aos novos: e o público passou sem reparar no mestre. A vida é por de mais complexa para que alguém julgue Burnay o centro do universo; e o Sr. José Luciano está de sobejo esquecido para que me valha a pena recordá-lo.
Ora este grande artista em que lhes falo, Christiano Cruz, nunca pensou em pôr um rabo ao que vai adiante para o que vai atrás se rir da graça (parece que era assim a caricatura nos dias joviais do Passeio Público). Nunca notou os bons senhores da política, porque a sua visão o elevou à sóbrias linhas caricaturais.
/.../ A vida vestiu-se com a farda rica de Conselheiro: o mago despiu-lha - e ficou um manequim.
O Humor de Christiano, porque vem dum sensitivo, solitário fauno flagelando ao látego da ironia, é sombrio como os espíritos que se ferem nas arestas do vulgar. O humor de Almada Negreiros é aberto, primaveril, como um belo corpo moço senhor da sua nudez. Perpassa por todo ele um sopro de graça adolescente, de quem vive grifando as coisas com sorrisos leves, sobre elas passando leve, deixando empós de si um sulco de ironia, como uma deusa alada a memória acariciante das suas asas. Dentro deste carácter a sua obra assume aspectos bem diversos, onde por vezes a roça a influência, da concepção à técnica, de Christiano Cruz - o que nada é de estranhável num artista em formação, enleado na obra perturbante de um outro artista grande, já feito. /.../ Jorge Barradas, em cujas caricaturas há transparentes ingenuidades que deixam ver nele um futura artista de elegâncias, sabendo colear uma mulher, gratificá-la, tocá-la de donaire, com uma inteligência que a observação da vida ajudará a completar e a fazer perfeito. As poucas coisas que expôs, são uma revelação de inéditas qualidades, que nem sei de artista do traço ou do romance que em nossos dias tenha tentado o seu campo.
/.../ O que dizer do resto ? Para que falar do Sr. Valença que se deu à singular curiosidade de pôr em riscos e cores as larachas de almanaque, tomando a Caricatura por Calino ?
Também Emmérico Nunes, já conhecido dum anterior certame (do Salão Livre de 11), aqui expõe caricaturas - cenas infantis da Alemanha, uma mui saborosa evocação do Império, rondas de crianças em ar de quermesse flamenga - duma tão natural ingenuidade em gente do Norte que só o muito lusitano Nunes nos deixará ver ali alguém de Portugal.
Há também o Sr. Ferreira, que faz caricatura de calças e outras peças de vestuário dos soldados e mais pertences do batalhão onde o seu humor funciona.
Ora dada a exuberância de produções, emolduradas na cócega por amanuenses de notários, ocorre perguntar porque faltou Luís Filipe, dândi do traço, artista das coisas delicadas, voluptuoso encantador de corpos de mulher, tecendo situações galantes com a finura dum Barbey do traço. Porque faltou Stuart carvalhais, em cuja obra ondeiam sob a neblina de grande cidade, nocturnos e manchas, caladas tragédias da gente humilde, erguidas a uma ironia melancólica, fugaz, brumosa...
/.../ Ernesto do Canto, modelador de ritmos em figurinhas de barro. Porque as suas estatuetas formaram na exposição um pequenino mundo perfumado, antecâmara da malícia que não chega a tocar o vício.
/.../ Prometem os humoristas futuras exposições. E pois que desta não logrou ficar uma expressão geral que alguma coisa diga do seu caracter, pergunta a gente a si mesma qual é a face do nosso humor.”
Esta crítica/reportagem é como um manifesto, de um gesto com intenções irreverentes, mas que no entender da crítica não passou de uma intenção. O jornalista de “A Lucta” que escreve no dia 9/5/12 lamenta o estado das artes em Portugal, interrogando-se se esta manifestação dos humoristas se pode enquadrar na renascença das artes: “neste meio em que a arte vem mantendo, de há muito, um cunho de decadência, acentuado por um pessimismo fora do século, doentia herança do romantismo, ainda na posse de muitos dos nossos artistas. /.../ esta iniciativa é o /.../ canto do cisne sob o estalar dos últimos barrotes do monumento da estética que há tanto ouvimos ou imaginamos ouvir, ou pelo contrário /.../, na função que objectiva, uma autentica esperança de renascença na arte portuguesa ?”
O que estava em jogo neste Salão era por um lado a dignificação, o reconhecimento de uma profissão plástica, onde a Sociedade organizadora estava como patrona, e garante de uma nova ordem profissional, na defesa de direitos e deveres. Por essa razão a Direcção estará ocupada pelo ‘velho’ Senhor Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro, secretariado M. Cardoso Martha e Carlos Simões, tendo como Tesoureiro o raphaelista Francisco Valença, e Vogais Alfredo Cândido, Cândido Silva e Christiano Cruz. Só o último era um ‘jovem’ irreverente, na estética e no humor.
Por outro lado, uma nova geração, inspirada, e elegendo como seu Mestre Christiano Cruz, procurava ir mais além, procurava trazer para este primeiro Salão de Humoristas a irreverência. O choque é grande, como comentam os críticos, ‘vomitando’ um silêncio ou desprezo pelos conservadores, e glorificando alguns dos novos, como Christiano, Almada, Barradas...
Como dirá Jorge Barradas, em 1963 (in Diário de Lisboa de 5/12) a Christiano Cruz demos nós, sem prévia combinação, o lugar primeiro. Na realidade será ele o principal porta-voz do grupo.
Após o encerramento, A Capital (15/8/1912) procuraria Christiano Cruz para que este explicasse melhor as intenções do Grupo dos Humoristas: “O fim do Grupo dos Humoristas é a propaganda da caricatura, propaganda quer feita pelas conferências (algo que Leal da Câmara já andava a fazer por todo o país, e creio que eles não chegaram a fazer) e exposições, quer pelo jornal humorístico que, segundo é nossa intenção, verá a luz brevemente (nunca chegou a sair). Para a realização deste objectivo tem a sociedade elementos de valia, alguns de nome já feito, outros que, não obstante a sua pouca ou nenhuma popularidade, são contudo belos e perfeitos artistas. O triunfo do Grupo, a realização do seu programa, infelizmente, parece-me que estão bem longe ainda, pois há a vencer a grande, a ciclópica ignorância do público. Sim, meu amigo, em Portugal não se sabe o que é a caricatura. O nosso público só procura neste género artístico o prazer de conhecer as figuras, ver a gaforina do Sr. António José ou as lunetas do Sr. Brito Camacho; para ele só existe, portanto, a caricatura pessoal, política, dentro da qual, segundo a minha humilde opinião, um artista já não pode, hoje, revelar grandes faculdades. As situações políticas repetem-se; as circunstancias que as acompanham são hoje o que eram ontem e, consequentemente, as críticas análogas hão-de ser. Depois de Bordallo ninguém fez nada na caricatura política que mereça menção: e embora a ela se dediquem muitos...
- Talvez por rotina...
- E aos quais, note, eu não penso em negar talento, mas ao examinar uma página dos jornais humorísticos actuais eu vejo sempre uma página do António Maria apenas virada do avesso... São as clássicas quedas ministeriais... do cimo de grandes escadas, os remendos nas botas orçamentais, o Zé Povinho assaltado pelo cão do déficit as tetas da grande porca, hoje substituídas apenas pelo magnânimos seios da nossa Marianna,,,
Dir-me-ão que, de outra forma, os jornais de caricaturas se são venderiam: mas eu posso responder-lhes que o artista se não deve nunca sujeitar ao gosto do público; que antes se lhe deve impor levando-o, embora lentamente, ao gosto da boa caricatura: para o que deve primeiramente perder a preocupação dos dez reizinhos.
A caricatura impessoal, a única que lá fora tem feito grandes artistas, não é conhecida em Portugal. O irritante e perspicaz quem é, acompanhando sempre a vista de um desenho impessoal, na esperança de ver surgir as convencionais figuras dos nossos estadistas, é um sintoma da mania política do nosso público. É preciso fazer-lhe desviar a atenção para a caricatura social, para a caricatura de costumes, enfim, para a verdadeira caricatura: a impessoal. Um caricaturista deve ser sempre um romancista do traço, deve pôr as suas faculdades ao serviço da ideia e não ser um autor de sueltos políticos, assunto este que se deve deixar para os partidários, as mais das vezes facciosos por profissão. Caricatura política só a de Bordalo.
- E o programa do Grupo humorístico ?
- Queremos fazer um jornal como o Rire, um jornal em que cada um colaborará com a sua especialidade, mas que, penso, será sempre um jornal gracioso, livre da enjoativa política...
Certamente se venderá pouco, ao princípio... Mas não é essa razão bastante para desanimar.
As conferências serão feitas pelos humoristas, entre os quais há nomes bem conhecidos e admirados. As exposições já o público as conhece: o primeiro salão dos humoristas foi obra do Grupo. A Segunda exposição espero resultará muito melhor, pois que a ela concorrerão novos artistas e dos mais perfeitos. Feita esta exposição em Lisboa, tencionamos abrir salão no Porto.
A propósito das conferências, esquecia-me dizer-lhe que uma das primeiras étapes a que a realização do nosso programa nos leva é um sarau levado a efeito com os elementos do grupo e com números originalíssimos, além de conferências ilustradas.
- E entretanto ...?
- Entretanto... a caricatura é ridícula e miseravelmente paga... Se qualquer caricaturista português fosse pedir ao director de um jornal o que lá fora se paga, certamente o expulsariam da redacção como um doido...
Outro jovem humorista se vai destacando nestes "années folle" da caricatura em Portugal, é Almada Negreiros, que apesar de curta carreira, neste ano realiza já uma exposição individual. Para além do facto raro de exposições individuais, esta destaca-se porque mereceu uma crítica na imprensa assinada por figura de destaque nas letras, e que terá longa e profíqua relação com o artista - Fernando Pessoa. Com assina não é ele, mas seu heterónimo Álvaro de Campos (in "A Águia" S.2, 3, 1913), e que escreve: …Almada Negreiros é mais espontâneo e rápido (que Pessoa), mas nem por isso deixa de ser um homem de génio. É mais moço que os outros, não só em idade, mas em espontaneidade e efervescência. É uma personalidade bastante distinta e o que causa admiração é como o haja conseguido tão cedo.
Os jornais humorísticos que surgem este ano, e que merecem destaque, são "A Rajada", e "A Bomba". Principalmente o primeiro, que tem Direcção artística de Correia Dias, e é o elo de continuidade da revolução humorístico-modernista.
No panorama político, destacam-se as incursões de Paiva Couceiro, o único grupo que mantêm a luta pela monarquia, procurando pela via militar, restaurar o regime. A grande maioria dos monárquicos já tinha aderido à República.