Wednesday, December 12, 2007

O BOBO - o humor como contrapoder

Por: Osvaldo Macedo de Sousa
Estando eu agora em cena no Teatro de São Carlos com a ópera Rigoleto, historia do Bobo do Duque de Mantua. resolvi recuperar este texto que fiz para o MouraBd sobre o Bobo e sua arte de humor.
Porque no te callas!!!


INTRODUÇÃO

/…/ “No Meio do silêncio tremendo do padecer incrível e de sofrimento forçado, um homem havia que, leve como a própria cabeça, livre como a própria língua, podia descer e subir a íngreme e longa escada do privilégio, soltar em todos os degraus dela uma voz de repreensão, punir todos os crimes com uma injúria amarga, e patentear desonras de poderosos, vingando assim, muitas vezes sem o saber, males e opressões de humildes. Este homem era o truão. /…/ O bobo, que habitava nos paços dos reis e dos barões, desempenhava um terrível ministério. Era ao mesmo tempo juiz e algoz; mas julgando, sem processo, no seu foro íntimo, e pregando, não o corpo, mas o espírito do criminoso no potro imaterial do vilipêndio.
E ele ria; ria contínuo! Era rir diabólico o do bobo…”

(“O Bobo” de Alexandre Herculano, pág, 54, Ed. Ulisseia)


O Romantismo, corrente estético-filosófica do séc. XIX que ainda hoje perdura como sombra de muitas correntes do pensamento contemporâneo, foi o grande obreiro de diversos mitos, de efabulações do passado. Um dos períodos que mais sofreu distorções subjectivas, porque ainda mal estudado na época, foi a Idade Média, a qual ganhou um cariz de mistério, de tenebras após o esplendor do Império Romano, e anterior ao Renascimento do re-esplendor da Sociedade Ocidental Moderna.
Dentro da fauna dessa Idade Média mistificada em tramas romântico-trágicas, vamos encontrar o Bobo, esse ser diabólico, detentor do riso, e da razão; detentor da justiça, e da maledicência… Tal como fizeram com o Palhaço, ao Bobo foi-lhe embutido o ferrete da tragicomédia. O Homem que faz rir os outros carregando o peso da tragédia pessoal, na deformidade; a tragédia familiar no aviltamento social. Ele é apresentado como a máscara do riso que tapa a tragédia do homem solitário, vilipendiado, desprezado pelos cortesãos que o temem e adoram. Ele é a memória do eco das gargalhadas que ressoam nas abóbadas dos Castelos, é a imagem do riso, do burlesco joco-sério que animava as residências, os Palácios dos Senhores Feudais, dos Reis, dos Nobres mais importantes.
Essa imagem romântica monta a máscara da comédia por cima da tragédia, como se a essência do Homem fosse esse Fado de misérias do quotidiano, da luta da sobrevivência entre seus pares. Uma imagem, uma filosofia que é conveniente ao Poder, já que torna o Homem mais submisso à natureza, mais derrotado e enfraquecido, um instrumento de submissão mais eficaz do que a ideia da vida como uma comédia social, matizada pelas tragédias momentâneas, pelas tragédias individuais, de um ou outro momento. A felicidade, para bem dos políticos, não deve ser uma constante, antes uma recompensa oferecida pelo sistema, pelo poder, a quem vive dentro da normalidade, dentro das conveniências.
Todo o animal tem de lutar pela sobrevivência, para não ser devorado na cadeia alimentar do planeta, contudo a maioria fá-lo de forma comunitária, em bando, em alcateia, em manada… sempre no equilíbrio ecológico do sistema. O Homem, apesar de estar organizado em comunidade em relação aos inimigos externos, tem de lutar pela sobrevivência a nível individual, não apenas para o alimento, mas também na cadeia social. Claro que isso também acontece noutras comunidades animais, porém no mundo humano não está apenas em causa a questão do macho dominante, mas também o maquiavelismo social, onde o tal jogo de tragédia/comédia é se suma importância.
Qual o papel do Bobo dentro desta tragédia-Comédia?

O RISO

Como já se escreveu milhentas vezes, ninguém sabe quando nasceu o primeiro sorriso, a primeira gargalhada, a primeira comicidade intencional. Uns dizem que surgiu logo a seguir ao primeiro vagido da criança. Aqui surgem as questões teológicas sobre quem aparece primeiro: o ovo ou a galinha, mas como não estamos aqui para fomentar a discórdia, esqueçamos essas discussões. Talvez tenha surgido quando o Homem se olhou no reflexo e tomou consciência da sua imagem, do seu Ser com todos os defeitos, vícios e virtudes. Nasceu com a primeira descarga de inteligência que cruzou o cérebro humano.
O humor é um dos graus superiores da inteligência. Como tal, não é facilmente acessível a todo o ser humano, já que, para o dominar, necessita – para além dos neurónios despertos – de uma cultura, de uma educação de comunicação democrática, de saber olhar e pensar o indivíduo e a sociedade com tolerância. É não só preciso ter, como saber usar o humor. Por isso, consoante as capacidades individuais, há tantos graus de comicidade, de forma de usar o riso, de usar essa filosofia profunda de irreverência.
Nem todo o indivíduo tem o dom, a arte de desvendar o lado cómico das coisas, assim como nem todos têm a sabedoria de se divertir, tomando consciência, com essa visão clarividente, da realidade grotesca do dia a dia. O mundo divide-se entre os que fazem e os que usufruem. Entre os que fazem, há aqueles que têm maior ou menor arte criativa, e entre os que usufruem há os que se divertem a rir, sorrir ou chorar, e os que se divertem a bater nos outros.
Como tudo o que é humano é complexo, devo alertar também para os diferentes níveis de “homo risibilis”, ou seja: podemos encontrar os indivíduos divertidos, aqueles que estão sempre bem dispostos, sempre com uma palavra amável, um dito espirituoso, que alegram o ambiente, mas que não são verdadeiramente uns humoristas; há os indivíduos que são magníficos contadores de anedotas, uns com maiores dons de comediantes que outros, mas que, quando resolvem animar o grupo, são magníficos entretainers, contudo também não são cómicos criadores, já que apenas repetem o que outros criaram; há os indivíduos tristes, macambúzios, que nos surpreendem de tempos a tempos com uma farpa, uma ironia que nos leva a uma boa gargalhada fruto de um efeito cómico inesperado, espontâneo como um relâmpago; há os indivíduos que, sendo uns tristes ou uns alegres, se dedicam a olhar a vida pelo prisma da irreverência e criam cenas cómicas, textos, desenhos, ideias… são os Humoristas criativos.
Analisando o lado criativo, podemos sintetizar a questão da comicidade em dois pontos cruciais, ou seja: na visão e no tacto. Bem, não era isso que eu queria escrever, ou queria dizer, mas seria melhor escrever na visão e na lógica sequencial de pensamento. O Homem revê, desracionaliza, e reconstrói pelo tacto? Já são três pontos e não dois. Isto é como as gargalhadas, os pontos analiticos são contagiosas e crescem sem darmos por isso!!!!
Cada animal tem uma visão própria do mundo. A visão da mosca é diferente da do cavalo, do gato diferente da do peixe, o Bin Laden vê diferente de Bush… Mesmo entre os homens, cada um tem perspectivas diferentes, apesar de próximas fisiologicamente. A visão do cómico é muito mais incisiva da realidade, conseguindo despir o dia-a-dia das máscaras de hipocrisia, de falsidade. A sua visão desconstroi os cenários imaginários, para nos confrontar com a realidade, através da deformação, da incongruência, do contraste. Ele consegue transformar uma queda num acto de ballet; uma demagogia política num poema romântico; uma traição numa declaração de amor…
O segundo ponto está radicado na lógica clássica do pensamento humano, que o cómico consegue desconstruir criando novas pistas de raciocínio, criando, pelo absurdo, pela deformação, pelo contraste, pela incongruência, novas lógicas que nos levam à realidade pelo riso, pela gargalhada, pela lágrima sentida cheia de humor. Esta manifestação física resulta do prazer ao conseguir deslindar a incongruência do raciocínio, do acto.
Afinal voltei a enganar-me, não são apenas dois pontos cruciais, há que acrescentar-lhes os mecanismos da deformação, da incongruência, do contraste jogados filosoficamente com a visão e o pensamento que nos levam ao cómico, ao humor. Este depende também da pitada de loucura divina de cada criador, para equilibrar os vários componentes da receita, e assim criar algo mais profundo, ou apenas divertido.
Ser cómico é fazer rir os outros. Mesmo não sabendo nada destas teorias, mesmo não sabendo como se faz, fazendo apenas. Assim, sempre houve homens sérios (os cómicos), e os homens que lhes devem a sobrevivência, já que eles são os magos, são os curandeiros da alma humana.
O riso é, com um dia escreveu Juca Chaves, “a ginástica da inteligência”, porque não só constrói a descontrução de lógicas de raciocínios, como faz aeróbica de uma série de músculos faciais e corporais, trabalhando o sistema nervoso central, o sistema cardiovascular, o sistema respiratório, os sistemas imunológico e endócrino… libertando uma série de substâncias químicas, como a dopomina, a serotonina e a adrenalina. E, associadas a um conjunto de reacções electromagnéticas, redundam numa função de anti-stress, de descompressão física e mental, de reforço imunológico do corpo humano.
Já dizia o filósofo grego Epicetus, “não são os eventos do mundo que são o problema, mas a nossa forma de olhar para eles”. Esse olhar torna-se mais turbo quanto maiores são as responsabilidades no grupo, necessitando de uma arma de focalização da realidade, não política, antes racionalista, razão pela qual vamos descobrir, mesmo entre os ditos povos bárbaros, a exploração, pelo poder, desse olhar clarificador do riso, incentivando certas formas de cómico social.
O riso é uma arma que pode ser assassina, muito potente, que tem o dom de destruir e, paradoxalmente, de fazer renascer a vida. Toda a gargalhada é um assassínio momentâneo de algo, devendo o criador saber dar uma nova oportunidade, fazendo reerguer o destruído das cinzas, qual Fénix renascida. Sendo a gargalhada tão poderosa e ao mesmo tempo tão irreverente, difícil de controlar, o poder preferiu silenciar o criador, individualizando-o num mundo à parte de qualquer sociedade civilizada.
Sendo a demência algo que o Homem nunca soube justificar e controlar, a solução mais fácil, foi transformar a loucura como a mãe suprema de todas as desculpas, e o riso foi internado nesse sanatório, donde só deve sair bem medicado, manietado pela camisa de sete varas do poder político.

A HISTÓRIA

A história faz-se com as epopeias, com as tragédias, e se é fácil encontrar registos das grandes batalhas, dos movimentos dos povos, dos guerreiros mais famosos, seus líderes, suas tragédias épicas, raros são os registos sobre o quotidiano dos bastidores desses grande eventos, dos momentos de descontracção, dos fait-divers do dia-a-dia onde a comicidade aparece sempre.
Se foi nas grandes batalhas, nas traições aparatosas, nas grandes migrações que os historiadores fundamentaram a evolução dos povos, estes aparatos não aconteciam se não houve massas anónimas por detrás, não houvesse milhares de acções, gestos, palavras esquecidas pela efemeridade do tempo. O grande motor da história é o quotidiano ignorado de milhares de piões.
Nesse quotidiano, o riso esteve sempre presente, pelo menos desde que o Homem tomou consciência do poder dele na sua vida. Os Gregos usaram o termo Gelao para designar o riso, o qual significava “iluminar”; o riso ilumina a face, ilumina o mundo.
Com esse facto, houve uns poucos, mais dotados de espírito irreverente que assumiram para si o papel de divertirem os seus pares pelo riso, enquanto que outros optaram por usar essa visão de crítica filosófica para pensarem na existência humana. De imediato se dividem as formas de estar na sociedade, com ou sem riso, com irreverência filosófica e sem irreverência e sem filosofia. Os que se evidenciaram por essa irreverência ou foram integrados na sociedade, subjugados ao poder, ou simplesmente foram aniquilados como aberrações, como deformações do pensamento normal, como loucos.
Não foi apenas o indivíduo comum, mas também o poder, quem rapidamente tomou consciência da importância e do perigo deste espírito na orgânica social, impondo de imediato regras de conduta, de “ética”, para o controlar.
A forma mais comum do controlo dessas irreverências, da loucura cómica, foi a de sacralizá-la em manifestações específicas, associando-a, ou “prendendo-a” em Festas Populares, ligadas aos cultos da mãe terra, do universo. Assim canalizam toda a irreverência, toda a revolta, para as comemorações das passagens dos ciclos da natureza, incrementando a irreverência, o sarcasmo, a crítica, esvaziando a agressividade que poderia criar rebelião. Fundamentalmente ligadas aos Solstícios e Equinócios, há momentos de inversão das regras, de alteração momentânea dos status sociais e exageros controlados pelo calendário, que de imediato repõe a normalidade do universo. Para que essa catarse seja mais abrangente, e não se restrinja a quem tem fácil adesão ao cómico, o poder incentiva o uso de drogas nesses momentos, como o vinho e outras bebidas fermentadas, as quais facilitam a libertação do corpo, provocando a fácil comunicação com os deuses e, posteriormente, a ressaca para os recordar do seu real lugar na sociedade, na normalidade. Há muitos exemplos desses momentos na história de todas as civilizações, e que hoje na sociedade contemporânea ainda sobrevivem discretamente, como o Carnaval, o São João (Festas Populares), ou, esvaziado do conteúdo inicial, o Natal.
Para a evolução histórica da comicidade no ocidente europeu, os registos levam-nos à Grécia antiga, leva-nos ao encontro do “Cosmos”. Este é o nome de grupos de camponeses que percorriam as aldeias celebrando “Dionísios”, onde o vinho jorrava a bel-prazer, aproveitando o cortejo folião para lançarem farpas, sarcasmos à sociedade, onde criavam pequenas dramaturgias cómicas do dia-a-dia, dos seus medos, duas preocupações e ambições. Também na Grécia antiga vamos encontrar as “Falofórias” em que o mundo venéreo tinha maior expressão como irreverência. O sexo, o álcool, a exuberância corporal estarão associadas ao riso nesta fase em que prevalece o dito humor de baixo-ventre, ou seja: com o grotesco, o burlesco da crítica a radicar-se mais numa linha física do que mental.
Nestas comemorações orgíacas, misturavam-se o espírito irreverente licencioso com o espírito libertado pelos vapores do vinho, condimentados no grotesco cómico. É nesta raiz popular que surgem as representações dos Mimos, primeiros “profissionais” da comicidade, que surge o Teatro de Comédia. O teatro falado, ou apenas gestualizado, irá desenvolver-se numa estrutura paralela ao riso de que estamos a falar, que é um riso mais popular, mais uma voz do dia-a-dia. A Comédia vai-se estruturar pela palavra escrita e pela representação em espaços cénicos, com maior controle do poder.
Nesse mundo dramatúrgico, a tragédia, como exaltamento do sofrimento dos heróis perdedores (já que acaba sempre mal), como engrandecimento das tentativas (falhadas, caso contrário não era trágico) do desejo humano, será rainha. A Comédia, por seu lado, como sublinha os ridículos das pretensões humanas, como satiriza os vícios, mas premiando no final os bons, acabou por viver sempre como a “bastarda” dos dramaturgos.
Assim sendo, é naqueles rituais populares de forma grotesca, repleta de sarcasmos, críticas, comicidades, que vamos continuar à procura dos nossos heróis, os truões, os “homo cómicus”. Não são actores de teatro, são, antes, pensadores, filiados na irreverência do pensamento e da língua. Personagens que se evidenciam na sociedade pela sua visão crítica, ao mesmo tempo construtiva, pela comicidade de suas intervenções. São estes indivíduos, possíveis instigadores da rebelião popular, que o Poder vai requisitar para confidente, conselheiro, entreteiner do “Senhor”. São a “voz do povo” no meio da hipócrita linguagem cortesã, e são quem faz rir o Poder. É um papel muito importante, como o do curandeiro ou do sumo-sacerdote, vigiando cada um, o seu campo específico, a pessoa do rei: a mente, o corpo e a alma. Destes não reza o a história os seus nomes, excepto o de um ou outro que foi protagonista de alguma tragédia.
Mas que ele está lá, está. E um ou outro cronista foi deixando referências da sua presença. No antigo Egipto vamos encontrar a existência de uma deusa do cómico, Bess, para além de uma série de hieróglifos de âmbito satírico, criticando o poder (esta veia de crítica cómica prosseguirá nas cerâmicas, frescos da diversas civilizações que se seguirão). Além destes registos directos, temos a referência da existência de um indivíduo no circulo da corte que tinha como função divertir o Faraó. Seria, pois, a génese do truão, da personagem que na Idade Média ficaria conhecida por Bobo. No caso do Rei Salomão, sabemos mesmo o nome dessa personagem, Marcoulf, um confidente, um conselheiro, um mago cómico que zelava pela saúde mental do Rei.
Nas terras a Oriente, também existia essa personagem nas cortes do Império do Meio, e o grande conquistador Tarmerlão tinha ao seu serviço o celebre “bobo” Khoja (também conhecido por Nasr-Ed-Din ou Si-Djoha).
Muitos outros houve nas mais diversas cortes por esse mundo fora, e em todos os continentes. No sistema republicano da Grécia, o Teatro de Comédia irá ocupar essa necessidade humana de usar o riso para sobrevivência do espírito nesta vida que nos querem impor sempre como uma Tragédia.
Em Roma, onde a Comédia, os Mimos, irão manter a mesma função, encontramos novos registos da existência de homens burlescos ao lado dos imperadores, os quais usavam a irreverência para manter os pretendentes no seu posto. Quando os Generais Romanos regressavam das suas conquistas, no cortejo triunfal ia, a seu lado, um escravo a segurar-lhe a coroa de louros e a sussurrar-lhe que apesar do triunfo ele não passava de um ser humano, e portanto frágil, ao mesmo tempo que recebia insultos da plebe. Como herói, devia saber aceitar qualquer sarcasmo, vindos dos seres mais baixos do escalão humano, já que, divino, só o Imperador se podia considerar.
Para os Romanos, nada ficará a salvo da sátira, da irreverência, seja na escrita, na representação ou na expressão máxima do seu espectáculo, o Circo. Aqui, a morte era o ponto de êxtase; mas, como contraponto, e apesar de o esquecerem nos livros de história, ou nos filmes épicos, o cómico também conquistou aqui o seu lugar, com gladiadores cómicos que não só faziam malabarismos circenses, parodiavam combates, o quotidiano dos cidadãos, como lançavam farpas às intrigas palacianas, ao imperador. Estes cómicos, muitos deles escravos, não viviam só no Circo, mas também na casa dos Senhores, dos Imperadores.
Contudo, pelo que sabemos da história, não resultou a terapêutica ao nível da saúde mental dos imperadores, que entraram numa espiral de assassínios, de traições, de loucura, criando um ambiente de terror, de medo e decadência.
Aliando esse medo ao lado negro da humanidade, coadjuvado pela incompreensão da génese dos seres grotescos, disformes, desenvolveu-se então a ideia de que os loucos (com suas sentenças directas e cruas), os anões, os corcundas (que não suscitavam inveja, antes repulsa) eram portadores de imunidade à malevolência aos maus-olhados. A união entre estas superstições, e a necessidade do riso como antídoto social, levou a que essas personagens fossem amalgamadas no mesmo projecto. O Truão passa a ser não só o que trata a saúde mental do poder, da sociedade, como passa a ser um amuleto contra os maus-olhados, contra a malevolência. É a maledicência que protege da malevolência !!!!
Com a decadência do Império Romano, vão surgir várias ondas de invasões de certos povos, considerados como bárbaros. O seu barbarismo consistia em serem diferentes. Mas havia algo que era comum, pois vamos encontrar em alguns registos a existência de truões, de personagens cómicos, ao lado dos Chefes. Até o famoso Átila tinha o seu apoio psicológico no cómico.

O BOBO

A imagem que nos foi incutida deste período de invasões, de requalificação territorial, é a das trevas, de confusão, doença e morte. As estradas bem concebidas, as cidades romanas limpas de pedra e geometricamente delineadas, as estruturas burocráticas bem organizadas… surgem em confronto com uma anarquia organizativa, um povoamento anárquico, uma cidade escura, pouco limpa, onde as sombras nos transmitem o medo, a superstição, as trevas do mal a rondar.
É no meio desta cenografia sombria que o Bobo vai ganhar maior protagonismo. Como verificámos, esta personagem, com outros nomes, mas estruturalmente com as mesmas funções, existe desde longa data, mas será só agora que os historiadores lhe irão dar importância. Porquê? Na realidade tem um papel mais importante na sociedade, ou resultou da mitificação construída pelo Romantismo oitocentista?
No caso de Portugal, como a sua fundação se verificou neste período, será aqui que todos os elementos estruturais irão ganhar relevo. Alexandre Herculano, como escritor de romances históricos, dará o seu importante contributo, não só com “O Bobo”, mas com outros livros, para mitificar este período.
Será também por esta altura que este ofício adoptará os nomes por que hoje é conhecido: Bobo, Bufão, Truão.
A designação de Bobo provém do castelhano, e no Dicionário de Língua Portuguesa define-o como pessoa que pretende divertir os outros com ditos tolos, chocarreiros, truanices, momices, esgares. Ou seja um contador de anedotas que acompanha a sua actuação com malabarismos e contorcionismos. Em relação ao Bufão, termo que provem do italiano, é apresentado mais como um fanfarrão. Em relação ao Truão, palavra de origem celta ou occitana, consoante os historiadores, é apresentado como a personagem que faz palhaçadas, que é um saltimbanco. Em todas estas definições, apenas se valoriza o aspecto exterior de diversão, ocultando o seu papel de crítico social, ou de cómico filosófico.
A Idade Média como período de transição, foi de grandes revoluções tecnológicas e sociais, foi o encontro de uma série de culturas que se entrechocaram, e que tiveram de ter tempo para se reequilibrarem. Perderam-se algumas riquezas civilizacionais e ganharam-se outras. No meio destes movimentos, destes jogos de poder, é o povo quem mais sofre, porque transmissor das culturas mais arreigadas na sociedade, nem sempre aceita facilmente as mudanças. Nessa cultura profundamente popular, está o cómico, o gosto pela diversão, mesmo que tenha de usar o medo como arma da sua defesa e de arremedo.
Um dos mais importantes confrontos verificou-se a nível religioso, já que, acima das suas convicções, há uma Igreja a tentar controlá-lo. O Império Romano já estava cristianizado, e procurou evangelizar todos os povos que vieram ocupar o seu território. Aquando da cristianização do Império já se tinha feito uma série de ajustes para sacralizar ao novo Deus uma série de crenças, de tradições do panteão romano. O mesmo acontecerá com o cruzamento com as crenças dos novos povos. Ou seja, o povo continuava a adorar as suas divindades ancestrais (pelo menos enquanto se manteve a sua memória), sob a capa do cristianismo.
O poder político perdeu a centralidade do Império, conquistando cada território a sua autonomia senhorial; em contrapartida, o poder religioso foi conseguindo impor a sua autoridade única, inquestionável, e sempre atenta às heresias, aos desmandos do seu controle.
Desde logo, o riso foi um dos principais inimigos a abater pelos senhores da Igreja, o que levaria à decadência não só da Comédia, como de todo o divertimento público. Mas o riso será mesmo uma preocupação teológica, condenada por alguns pensadores cristãos como uma ameaça, um pecado. Segundo a visão que a igreja quer impor, não estamos nesta existência para nos rirmos da vida, mas para nos penitenciarmos do pecado original, dos pecados do mundo. A tragédia é sacralizada e exaltada como ideal. Não é Deus que está por detrás do prazer (carnal ou mental, pelo qual o sexo também é pecado), mas o diabo.
A Igreja necessita do medo aos infernos, do medo do pecado para manter o rebanho unido sob seu manto de obediência. Como o riso destrói o medo, abre a porta da dúvida irreverente, é naturalmente um inimigo a abater por qualquer poder despótico. Será uma longa luta, séculos de perseguição, com batalhas ganhas por uns e por outros, mas interminável.
Nesses anos de instabilidade, onde a morte e a vida se confundem no dia-a-dia, o riso manteve-se como uma porta da sobrevivência, e a loucura conquistou um espaço importante, um espaço de redenção da realidade.
Sacralizada, ou dessacralizada, o povo continuou a comemorar a vida, os ciclos da terra, misturados com os ciclos religiosos. Comemora a razão, na irracionalidade, provoca a ordem com o exagero, o grotesco, a inversão dos sistemas, com a loucura.
A loucura, a irreverência, mesmo nestes tempos de aparente anarquia, não podiam andar à solta, tinham de estar enquadrados pelo poder, no calendário, sob vigilância. Desenvolveram-se as Danças macabras, as representações gráficas do “Mundo Invertido”, a proliferação de imagens grotescas na iconografia popular, nas catedrais, as representações dramáticas dos “Mistérios”, das “Soties”… mas são as “Festas dos Loucos” que mais me cativam, já que encarnam a inversão do mundo, mais próxima da irreverência do Bobo.
Toda a realidade é contestável, pois vivemos mo mundo das aparências, e a loucura acaba por ser uma porta que realiza a fusão do que se conhece com o que se supõe, dando à realidade uma leitura mais profunda, ou mais crua. O louco é um destruidor das aparências, é um contestatário das evidências.
Na “Festa dos Loucos”, que se realizava por altura das Saturnales (Dezembro), incentivava-se à anarquia colectiva, à loucura como libertação das tensões sociais, das cadeias que o ligam à sociedade, individualizando o indivíduo no meio do grupo, reforçando este como colectivo de indivíduos. Tudo era permitido, todo o exagero, todo o grotesco era exaltado até á coroação do REI dos Loucos, terminando a demência com a consagração do Burro na Catedral. Esse animal, pobre e na ranking mais baixo do grupo equino, mas que tinha tido o privilégio de carregar Maria e Jesus, era adornado como um belo alazão, e louvado na igreja com uma procissão de cânticos grotescos, seguidos de uma paródia sacramental, e onde os crentes se assumiam no papel de outros animais, fazendo todo o alarido de latidos, urros, miados, consoante os animais que encarnavam. Era a loucura a intervir nos elementos mais sagrados. Por isso a Igreja procurou interditar tais loucuras em 742 e, como não conseguiu, encontramos nova interdição em 1445.
A inversão do Mundo, ou as celebrações do “Mundo ao Contrário” realizou-se das mais diversas formas, mas a troca do mundo humano com o animal foi um dos favoritos, o que levará depois a Igreja a corporizar o Diabo (figura até então apenas anímica, ou com forma simplesmente humana), num retalho de animais, como a serpente, os pés e cornos de cabra… Os próprios Sabbat de feiticeiras estão ligados a esta loucura de inversão, mas isso é outra História.
O povo tinha estas festas sazonais, mas os mais doutos, como os monges ou os universitários, também exploravam este mundo de loucura. Era de dentro da própria Igreja que surgiam muitas destas manifestações grotescas, em que as Carmina Burana são um dos exemplos da criatividade monástica no cómico. Os estudantes, para além dos cortejos grotescos, desenvolviam os sermões burlescos recitados do alto da cátedra, onde nada escapava à sua sátira, em improvisos, ou em textos bem trabalhados na comicidade retórica, testemunhos que ainda hoje se podem ler. Mas é na improvisação, nas cantigas de desafio, que vamos encontrar o seguimento de tradições populares do sarcasmo como arte do riso, como sátira dramatúrgica. Foram esses encontros de improvisações cómicas nas feiras que deram origem às “soties” (de Sot – Parvo), “parvoíces” encenadas que evoluíram para as “Farças” e que irão levar ao renascimento da Comédia na passagem para o Renascimento.
Regressando ao Bobo e seu papel na corte. Ele é um dos muitos “loucos” que habitam a sociedade, só que este não está restringido pelo calendário, permanecendo salvaguardado por algumas defesas naturais, alguns artifícios que o colocam acima da raiva, da justiça das vítimas.
Não era qualquer “louco” que poderia ser Bobo. A diversão da corte não era o seu principal papel, como todos querem fazer crer. Para as festas, os senhores convidavam saltimbancos, malabaristas, jograis que andavam de feira em feira, de castelo em castelo, vivendo da protecção temporária dos senhores e transmitindo as novidades. Os Jograis eram músicos de profissão, recitadores de poesias épicas, românticas, mas também tinham no seu repertório cantigas de Escárnio e Mal Dizer. Representavam também “arremedilhos”, “Entremeses” e “momos”, ou seja: dramaturgias cómicas que se transformarão nas célebres Farsas, Autos, Diálogos, em que Gil Vicente foi mestre. Este “pai” do Teatro Português usará a mesma linguagem vernácula do Bobo, representará com a mesma dialéctica de linguagem ambígua, mas contundente. Os loucos serão personagens importantes na sua trama cómica. Os Senhores tinham muito por onde escolher para se divertirem nos grandes momentos, nos saraus.
Quem podia ascender a este posto? Além de “louco”, tinha de ter “juízo”, tinha de saber o que dizia, ser incisivo, contundente, certeiro, mas filosófico e justiceiro. Não podia ser um político de tramas palacianas, de demagogias, tinha de ser, antes, um analista político que lançava para o ar, para o rei, os pensamentos mais profundos sobre as questões.
Entre a população havia sempre uma ou outra voz de loucura que se evidenciava, e quando mostrava algum discernimento na sua anarquia, quando o Senhor lhe encontrava “Razão”, requisitava-o para seu serviço. Era pois necessário evidenciar-se e agradar aos Senhores nas suas sentenças. Este é o primeiro passo.
Dizem os historiadores que esses “Bobos” da plebe, que animam as feiras, é que são os verdadeiros Truões, só passando a Bobo, quando ao serviço de um Senhor, ou seja no grau acima na escala social do Poder do cómico.
O segundo passo reside nas suas defesas, nas suas protecções. Ao se comportar como um louco, já se salvaguarda, pois o louco é considerado irresponsável, uma voz pura sem mancha de hipocrisia que não pode ser castigada. A sua irreverência inimputável (como agora se diria) era sacralizada como amuleto contra “maus-olhados”. Se alguém era ridicularizado pelo “louco”, ficava imune à inveja e maledicência da sociedade.
Esse lado de superstição, no Bobo, era reforçado pelo seu aspecto grotesco. Ele não podia ser uma pessoa esbelta, antes algo de repugnante. Não podia ser alvo de adulação física, ou de inveja, antes alguém cuja sorte não era possível de ser cobiçada. Devia ser grotesco, feio, anão ou corcunda, “anormalidades” que a tradição associava à imunidade, ás magias negras, aos maus-olhados. Tocar-lhe, ser alvo da sua atenção, servia de amuleto, de “mascote” contra essas artes das trevas que tanto assustavam a sociedade desses tempos.
A estas deformidades, reais ou construídas (corcundas falsas, pernas desfiguradas para pareceram aleijadas…) associava-se indumentárias específicas. Ao princípio pouco se diferencia pelas vestes, mas com o tempo vai aprimorando o traje. Antes do mais, usa cores vistosas, com predominância do verde, amarelo e vermelho. Os tecidos axadrezados ou ás riscas são coroados com sapatos de guizos, e chapéus com crista de galo, ou com orelhas de burro. Estas duas orelhas, que depois proliferaram em número, são uma das últimas heranças da Festa dos Loucos e da coroação do Burro. A completar o seu figurino, e como contraponto do poder real, ele usava um cepto, também conhecido por Palheta, uma haste encimada por uma auto-caricatura de Bobo, a Folia. Outros Bobos mais modestos, ou para festas menos charmosas, usavam como cepto uma cana encimada por um balão feito com uma bexiga de porco, com o qual também faziam barulho a reforçar as suas irreverências.
A importância destas personagens pode-se avaliar na morte, já que, aquando do falecimento dos Senhores, muitos deles eram beneficiados com doações, e na sua própria morte tinham direito à sepultura em campo santo, o que não acontecia a outros comediantes, aos actores de teatro, aos saltimbancos… a quem era vedada sepultura cristã.
Muitos foram os Bobos que alegraram esta Península, seja na cultura sueva, seja nas cortes árabes, seja depois no mundo cristão. Alguns acabaram por ser eternizados na literatura, outros através da pintura, e outros apenas como referência de um nome. No caso da corte portuguesa, acabei por saber alguns nomes de que aqui deixo referência: o Conde D. Henrique trouxe da Borgonha o seu Bobo, um triste comediante que tinha dificuldade em se fazer compreender em terras estrangeiras, sendo depois substituído por D. Bibas, o herói d’“O Bobo”, livro de Alexandre Herculano. D. Sancho I teve a seu lado dois irmãos: Bonamis e Acompaniado. Reza a história que D. Fernando foi alegrado por um tal Anequim, e D. Beatriz, mulher de D. Afonso IV, teve ao ser serviço a Miguéis.
As mulheres, por vezes, serviram também de Bobas, normalmente anãs, como foi neste caso. Estas não necessitavam de indumentárias grotescas, porque já o eram, e as suas intervenções dirigiam-se mais ao círculo das damas.
D. Sebastião andava sempre acompanhado por Couto e Pêro Dias. D. Duarte divertia-se com Filipe de Brito e Joanne… Muitos outros houve que a memória esqueceu.
Personagens cómicas, divertidas, que acompanhavam o Senhor e que tinham por função tratar da mente, do espírito. Serviam de bode expiatório das fúrias, levando pancada dos Senhores e das vítimas do seu sarcasmo. Mas também serviam de confidentes nos momentos mais íntimos, assim como de espelho caricatural onde os homens reviam os seus erros.
Se Deus tinha como contraponto o Diabo, o Rei tem como contraponto o Bobo. Os opostos servem para relembrar quão ingrata pode ser a vida, se não houver discernimento na loucura geral. Lembrar que o louco vê mais longe do que aquele que se leva a sério, encandeado pelo orgulho e soberba. A humilhação do Bobo era a recordação de quão frágil é a alma humana. O bobo dá ao rei a imagem da irrealidade, numa linguagem ambígua e grotesca, para que o Rei possa gerar a realidade, visto ser ele o único com poder para o fazer.
Ninguém conhece melhor do que o Bobo as dúvidas, as hesitações, as fraquezas do Rei; ele é a sua sombra que o acompanha para todo o lado, que escuta todos os suspiros e gargalhadas, que é o espião de todas as tramas da corte e do reino. Por isso o Bobo é não só o confessor, como o psicólogo, o médico da alma e da mente. Ele deve saber como curar os maus humores, como apaziguar suas dúvidas, como alertá-lo para o que o rodeia. No meio das gargalhadas, dos pontapés, das pancadas, as suas orelhas captam todos os sussurros, todas as fofoquices e conspirações, todos os boatos, para no momento certo os lançar a público, entre brejeirices e momices, esvaziando-lhes o poder reivindicativo. O Bobo é o guardião do Senhor, desarmando as revoltas, diluindo as agressividades latentes no ar, e fazendo justiça por aqueles que não podem falar.
Ser Bobo tinha uma função tão importante que, em muitos casos, ele era educado para esse serviço. Para além da “loucura”, de saber divertir, ele tinha de saber dizer em público aquilo que apetecia ao Rei dizer, mas que não lhe era permitido pelo politicamente correcto. O Bobo tinha de saber ser politicamente incorrecto nos momentos certos, ser irreverente magoando “diabolicamente” à esquerda e à direita, sem contudo ofender o Senhor, porque caso contrário, não havia superstição que o salvasse de uma sova, ou, em caso mais grave, de ser despedido ou até decapitado.
Apesar de toda esta múltipla função de psicólogo, de sociólogo, de confessor e conselheiro, a única característica exorbitada pela História é a do cómico grosseiro, a do entreteiner da corte.
O Bobo ganhou maior protagonismo na Idade Média, mas prosseguiu sua actividade no Renascimento e na Idade Moderna, desaparecendo apenas com a queda das monarquias absolutistas. Na maior parte da Europa, subsistiu até ao séc. XVIII, havendo casos de ainda subsistir em cortes do séc. XIX.
Naturalmente que a sua agressividade verbal, a sua comicidade grotesca foi-se refinando, tornando-se menos boçal e escatológico, característica desse humor medieval. O Bobo acompanhará a evolução da arte do cómico.
Até então comicidade, mesmo filosófica, estava imbuída pela cultura do baixo-ventre, usando-se o escatológico, o licencioso, o brejeiro, o grotesco para provocar o riso, para sublinhar a ideia subliminar. Com o Renascimento, vai haver uma tentativa de inversão do mundo do cómico, que será conceptualizado no termo Humor, e onde o cómico passa a provir do Alto Ventre, o cómico da inteligência, do jogo de lógicas intelectuais. É o humor que não ridiculariza, antes desnuda, que não é sarcasmo, antes ironia. É o humor da Democracia que procura RIR COM os outros, em vez de RIR DOS outros.
Claro que o povo continuou a preferir a comicidade do baixo-ventre, mais fácil, mais imediata, mais vingativa nas lutas entre vizinhos, mais irreverente com os tabus da alta sociedade, mantendo assim o seu cordão umbilical com as festas da mãe natureza, com o louvor à fecundação do Cosmos, como continuidade da espécie. É o riso da terra.

RESUMINDO E CONCLUINDO

Foram séculos de actuação ao lado dos Senhores do Poder, mas não sabemos se foram séculos de poder na sombra. Nunca saberemos até que ponto seus conselhos, suas farpas, foram influenciadoras das decisões reais, quantas vezes foram influenciados pelas intrigas palacianas. Nunca saberemos quantas injustiças foram corrigidas pela sua intervenção e quantas vítimas sucumbiram sob a sua língua afiada. Personagem de irreverência crítica, porta-voz da loucura humana, cómico do grotesco, o que ficou na história da sua existência?
Houve Bobos cronistas que deixaram no papel a sua visão histórica do quotidiano, e houve outros que levaram cronistas a referirem algumas das suas impertinências, mas a grande maioria das suas intervenções perdeu-se no vácuo da memória, esvaziou-se na efemeridade do eco dos salões senhoriais. O que restou da sua memória foi a imagem da “pessoa que pretende divertir os outros com ditos tolos e momices” (Dic. Língua Portuguesa, Porto Editora).
A História épica, dita séria, esvaziou sempre o papel da comicidade na evolução humana, e em relação ao Bobo só o refere como essa personagem caricata que actuava de forma burlesca, para divertir a corte. Era o louco que só dizia idiotices, tal como o Truão que divertia os feirantes com suas farpas “idiotas”. O mesmo papel mantém o “tolinho da aldeia”. É essa a ideia que domina o pensamento actual.
Com o liberalismo, desapareceu essa personagem do mundo cómico. Uns dizem que o seu descendente é o Palhaço, genealogia com que não concordo. Quando muito, aquele seria descendente do Truão, ou, mais propriamente, do saltimbanco.
Então... ninguém substituiu o Bobo no seu papel social?
Nos países de Leste da Europa, aqueles que levaram as monarquias absolutistas até mais tarde, e que depois foram subjugados pela ditadura, refugiaram-se na figura iconográfica do Bobo para o simbolizar como a voz da crítica, a voz da liberdade de expressão, como a bandeira da defesa pelos direitos do Ser. Se em alguns locais o palhaço gráfico tem também esta mensagem iconográfica, nesse espaço geopolítico o Bobo é Rei e Senhor da luta pela liberdade de expressão. Em mais nenhuma outra região encontrei o Bobo com tão importante simbologia iconográfica.
Regressando ao nosso canto ocidental, quem poderia substituir o papel do Bobo? Se o encararmos como o entreteiner espirituoso, naturalmente que os stand up comedy, os comediantes, são os prosseguidores da sua actuação.
Se o encararmos como o Idiota da sociedade, que diverte os outros com suas poses, suas vestes, suas tropelias e embirrisses, então esse papel está entregue ao Jet7, à fauna que habita as revistas de coscuvilhices.
Mas, se encararmos o Bobo como a voz crítica que alerta o poder para os seus erros, que satiriza os vícios, as intrigas… então o Bobo contemporâneo é o Caricaturista, o Cartoonista, o Humorista, o Cronista irónico, o Jornalista satírico, o analista maquiavélico.
Por outro lado, se aceitarmos o Bobo como peça da engrenagem, como peça do sistema governativo, desviador das atenções dos problemas fundamentais da governação, usando essa linguagem confusa, difusa, para comunicar o vazio da mente senhorial, então os bobos da actualidade são os Políticos, os Ministros que, pela sua acção grotesca, pela ironia demagógica, desmentem a realidade, que caricaturalmente prometem o nada.
No extremo desta actuação política, se o Bobo Louco é o que subverte o mundo na inversão do Cosmos e nos obriga entrar na Barca dos Loucos ao som das Danças Macabras, então os Bobos Contemporâneos são os ditos senhores da “Guerra e Paz”, os senhores do Petróleo e da Bolsa que, de forma terrorista, dividem o mundo no grotesco do fundamentalismo.
Na realidade, não sei quem é hoje o Bobo da Corte nesta Barca de Loucos, ou mesmo se há Corte neste Mundo Invertido. Mas que necessitamos de Bobos que ecoem seu riso, irreverente e satírico, nas paredes do nosso Castelo, necessitamos! Que é obrigatório zurzir nos Senhores cegos pelo poder, e pelo capital, como uma necessidade da nossa sobrevivência, é!
Gostaria de ainda acreditar em Mouras encantadas, de acreditar que o riso comanda a vida, e que uma boa gargalhada mata todos os medos da nossa existência.

Monday, December 10, 2007

HISTÓRIA da arte DA CARICATURA de imprensa EM PORTUGAL (parte 6)

Por: Osvaldo Macedo de Sousa
O Realismo
Não foi pacífica esta introdução do realismo, como o testemunha A. Ennes em 1872, na revista “Artes e Letras” (pág. 145/6): «Os Abusos do Realismo - Não seu palavra mais prodigalisada e menos definida do que o realismo. Devendo designar uma theoria de esthética, que abolisse o dogmatismo clássico e o subjectivismo romantico, caiu das espheras luminosas e serenas da arte nos armazens da moda, onde o esfarrapou a ignorância, onde a pobreza de engenho o amoldou ao seu corpo, onde o prurido de excentricidade lhe deu relevo, as formas e as proporções de escandalo artístico. Se o não desprendermos dos abusos, que d’elle teem feito a desordem e a presumpção dos espíritos, morrerá sua victima.»
«O que banalmente começou a inculcar-se como realismo na plástica, foi a cópia servil, plana, machanica das formas naturaes, e a carencia, na arte, do seu elemento subjectivo: a idéa. /…/ Perdoem-nos os nossos artistas a liberdade d’estas reflexões, que só censuram um momentaneo descaminho de alguns, que todos vão corrigindo. As copias da natureza inanimada eram proveitosas como estudos de desenho e de côr: não podiam, todavia, ser acceitas como applicação cabal de uma theoria artística.»
«/…/ Assim como se havia imposto ás faculdades artísticas a missão orgulhosa de corrigir e aformosear a natureza, e se reputará indignas de contemplação e reproducção as realidades, que se não ajustavam aos moldes convencionaes do bello; assim a reacção contra esta falsa esthetica, desvairando-se nas horas de combater, chegou a inculcar á arte como seu exclusivo objecto os aspectos da natureza que ella até então degradara, rehabilitou e consagrou o feio, o vil e o grotesco, e alcunhou de realistas as expressões de uma concepção mysanthropica do mundo physico e do mundo moral.»
«Esta curiosa aberração observa-se na literatura como na plástica, e seria facil determinar-lhe as relações proximas com os movimentos sociaes do nosso tempo. A satyra mordaz e descrita, substituindo o idýlio e a ode perennes, apagou a lus do ceo e a virtude na alma. Esfolharam-se as arvores; enxurdaram-se as águas; o esqueleto granítico da terra rompeu o humus verdejante; empardeceu o annil dos horisontes; os campos, d’antes inevitávelmente esmaltados de flores, vestiram-se de tojos; degradaram-se as formas e desmaiaram as Côres. E a arte converteu-se em caricatura da natureza, porque nada mais é a caricatura do que essa selecção e exageração, n’um todo, das suas formas e das suas phases grotescas ou feias, que constitue a essência do realismo satanisado.»
«/…/ E os pseudos-realistas, que mais aceram vistas de philosophos para devessar os reconditos do mundo moral, assimilham-se, obcecados pelo preconceito de escola, a esse maniaco celebre que repellia uma esposa bellissima, poraue só lhe via no corpo a nudez do esqueleto por baixo das formas redondas e macias; o tecido sangrento dos musculos, a rede das veias e os filamentos nervosos por baixo da cutis rosada e sedosa.»
«Ora, nem na literatura nem nas artes plásticas, uma theoria de esthética, que se define pelos caracteres que elementarm,ente esbocei, pode ser presada como phenomeno mais grave e duradoiro, que, quando muito, poderemos corresponder a um estudo social transitório e decadente. O espirito humano passa quasi sempre pelo absurdo, mas sem presistir n’elle, para chegar á verdade; e todas as revoluções, emquanto pelejam, exageram, até os desvirtuar, os principios que vem a estabelecer definitivamente. Assim como o socialismo, militante e no estado de formação incompleta, accende as communas de Paris, a arte forcejando por acabar de partir o auctoritarismo classico e por normalisar a liberdade romantica, luta, e no tumulto da luta extravia-se, resvalla oara o satanismo, e abraça-se a quantos paradoxos lhe podem servir, não de leis, que não as procura ainda, as de armas de guerra. /…/»
Na realidade a caricatura é uma arma, uma reacção estética e jornalístico ás questões sociais e políticas da época, que deriva do pensamento realista, mas que não é tão satânica como defende este teórico escandalizado. Como contraponto apresento um texto publicado no vol. XXV de o “Ocidente” (pág. 310), onde falando de Columbano nos diz que «na verdade a estupenda fôrça do Realismo, uma espécie de duro idealismo apoiado na amor á verdade e aos sentimentos humanos, um menos literário, mas mais lógico, romantismo que derrubou o Romantismo dos princípios de escola e afastou da pintura quantos Cânones convencionaes do Academismo, reformou a Arte em toda a Europa. /…/»
É nesta ambiência de implementação do Realismo, e na procura do domínio técnico das artes da gravura que se desenvolverá o desenho satírico. E nessa evolução técnica está, como já referimos, a mão de Manuel Maria Bordallo Pinheiro, como testemunha o novo mestre do desenho satírico desta década de cinquenta, Nogueira da Silva (“A Gravura em Madeira em Portugal - I” in “Panorama” nº 7 pág. 50 de 1866): «A gravura em madeira nasceu entre nós com o Panorama, e foi seu primeiro cultor Bordallo Pinheiro, artista bem conhecido pelas suas obras de esculptura e génio emprehendedor.»
«/…/ Sem mestre, nem livros da especialidade, porque não o havia então; tendo de advinhar o systema e os meios praticos pelo que, apenas, a sua intelligencia podia ler na simples observação das gravuras estrangeiras, Bordalo fez mais do que seria rasoável exigir. As suas tentativas, postoque extremamente longe das estampas do Magasin Pitoresque, sobre cujo molde se publicava o Panorama, não parecem os prelúdios de uma arte que, na presença de tão adversas circunstâncias, pôde-se dizer, apparecia entre nós, como se não existisse em parte alguma.»
«É que, á semelhança de Alberto Durer, Bordalo Pinheiro, voando nas azas do seu engenho, rompia por si só o veu que em Portugal occultava, nas trevas de uma completa ignorância, os segredos do mais difficil genero de gravura.»
«Mas este triumpho, sufficiente para glorificar o nome de um homem n’um paíz em que se soubesse o que era arte, e quaes as suas influencias nos progressos physicos, moraes e religiosos das sociedades, não bastou ao artista, que pretendia alcançar as gravuras estrangeiras no avanço em que já iam então.»
«Vendo, pela experiência, que do estudo de desenho especial dependia o aperfeiçoamento da gravura em madeira, resolveu entregar-se todo a essa particularidade, confiando nas boas disposições que tinha descoberto em Baptista Coelho, a quem tomou por discípulo e em breve habilitou para substitui-lo e auxilia-lo no patriótico empenho.»
«Pena foi, porém, que este expediente, aliás productivo, não fertilisasse tanto quanto havia rasoavelmente a esperar./…/»
(“A Gravura em Madeira em Portugal - II”, in Panorama nº 9 - 1866, pág. 68) «Em seguida ao Panorama veio a Ilustração.»
«O pensameno inicial d’esta nova publicação ilustrada era, creio eu, radicar a arte nacional e alargar-lhe a esphera até ás vastas proporções dos jornais estrangeiros do mesmo titulo.»
«Para realisar este milagre deram-se as mãos, lapis, penna, e buril, suppondo cada um que em qualquer dos outros existia o santo. Mas, infelizmente, em todos faltava a graça. O estudo e o exercício permanentes, sem os quaes não é dado ás belas-artes convencer os incredulos e abrir o reino da glória, tinham morrido á nascença. /…/»
«Os artistas que deviam realisar tão pretencioso ensaio eram ainda os mesmos do Panorama. A arte da gravura em madeira não havia, portanto, crescido, nem em aperfeiçoamento nem em cultores; teria, pelo contrário, emmagrecido, porque dormia; e o somno é para as artes que dependem, como as da gravura, de uma execução aturada, o mesmo que o reumatismo é para a gente. Entorpece-as, impossibilitando-as, conseuqnetemente, de poderem entrar, de prompto, em vida activa. /…/»
(“A Gravura em Madeira em Portugal - III, in O Panorama nº 14 - 1866 pág. 111) «No rasto luminoso que, em relação á litteratura, deixaram o Panorama e a Illustração, mais dois ou três jornaes illustrados pretenderam viver. Morreram, porém, pouco tempo depois de nascerem, no que não fizeram mal, porque eram a negação absoluta da arte, e da grammatica também. /…/ passaram, Bordalo Pinheiro a gastar os lapis, que ainda lhe restavam, em as notas provisorias das despezas domésticas, e Coelho a encortiçar os buris, para que nada lhes desse a ferrugem. Em seguida cruzaram os braços e deixaram-se dormir… para a arte.»
«Dormiram muito, e dormiriam eternamente, talvez, se o sonho, que é o inimigo mais zombeteiro dos enganados da realidade, não viesse alterar-lhes o espírito defallecido. Bordalo e Coelho sonharam… /…/ Passados poucos dias, sahia á luz o primeiro de um novo jornal illustrado, com o titulo modestissimo de “Revista Popular”.»
«Este jornal não parecia haver nascido de um longo interregno artístico. Tão desenvolvida e animada se apresentava agora a gravura em madeira, que ninguém diria ser o remédio o ocio, a somnolencia e a inércia. /…/»

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