Monday, October 02, 2006

Caricaturas Crónicas 8

QUARESMAS CARICATURAIS

Por: Osvaldo Macedo de Sousa

Pelo cruzar das linhas se tece a vida, a qual é a luta no dia-a-dia, é a gargalhada de uns perante a queda de outros, é a caminhada íngreme, com seus obstáculos e tropeções nas necessidades de alguns.
O povo, na sua visão sábia, e irónica, simboliza esta labuta num paralelismo, onde a «Cruz» é o pesado sinal dessa luta. Os espinhos (dos impostos), as vergastadas (da opressão, desemprego, desilusões) nada se comparam com este carrego da eterna Quaresma.
Mas tudo isto são símbolos, estruturas-base de toda a comunicação, inc1usive da caricatura. Esta, para que o leitor a traduza facilmente e de imediato, procura o dia-a-dia, os acontecimentos sociais, políticos ou religiosos para melhor veículo. Porém, a utilização desses símbolos ou comparações está sempre dependente de um outro símbolo quaresmal, a abertura das mentes, o saber rir de si próprio, da censura ditatorial, que pela sua fragilidade de conceitos, de espírito limpo prefere fazer calar as bocas dos lápis e da tinta-da-china.
Um desses símbolos «perigosos» pertence à religião, é a cruz que trazemos (quase) todos ao peito, é a Quaresma, porque a «Cruz» não é igual para todos, como diferentes são as texturas das madeiras que a constroem. Para uns é mais leve, porque até o carpinteiro é subornável; para outros é pesada como chumbo, porque a fome é demasiado leve. Mas, todos têm a sua cruz, transportando-a em solitário, em cooperativas, sempre presente nem que seja na sua sombra de ameaça negra: «O pobre Zé depenado / Tanto pagou o patau, / que chega aquelle estado / d'escalado bacalhau.»
«E se isto vae neste andar, / e se a coisa assim mais caminha / há-de acabar por ficar / reduzido a magra espinha.» (J.M. Pinto, in «Charivari», 18/2/1899.) Os paralelos são quase sempre os mesmos, tocando-se a eterna tecla da vida política do Zé povo: os impostos.
«Atráz d'esta procissão vae uma cruz, esta cruz é a dos contribuintes; quem carrega com ela é o Zé-Povinho. Os emblemas do poder e os martyrios dos contribuintes são levados pelos anjinhos dos diversos círculos.» («Procissão dos Passos-Políticos», Raphael Bordalo Pinheiro, in Antonio ·Maria 19/2/1880.)
A imagem, por mais que se queira escapar a comparações que possam ofender susceptibilidades, é sempre a mesma, a identificação do Zé com Cristo, porque ambos sofrem os castigos do poder temporal, com a única esperança de uma outra vida. Cristo foi flagelado pelo chicote, o que no Zé dói tanto como as contribuições. Cristo carrega a cruz, o Zé, apesar de despojado, tem que carregar com o País para a frente… e ambos são crucificados. O primeiro, como cumprimento de e um sacrifício, o segundo, como sacrifício cumprido, sem direito a levantamento para reagir.
Mesmo nos trâmites dessa Quaresma, o Zé não vê reconhecido o sacrifício - «O sacerdote da constituição lava indistintamente os pés a todos os partidos, dando assim um exemplo de limpeza de mãos a todos os governos da orbe. Zé Povinho é posto fora, em consequência de no orçamento não haver sabão para ele.» (Lava-Pés Político, R. B. P. in António Maria 25/3/1880.)
Raphae1 foi provavelmente dos caricaturistas que mais empregaram estes símbolos da Quaresma, como se de um Zé da Arimateia se tratasse, tentando levar os políticos a tomar consciência do peso do madeiro, e dos espinhos, ou então avisando esses mesmos políticos dos perigos de um dia o mártir deixar de se sacrificar - «Zé-Povinho, amarrado pelos a laços do deficit à coluna dos, impostos; e ameaçado pela lança do sello, suporta resignado as crueldades dos judeus políticos, até que a cana verde que tem na mão se transforme n'um cacete secco.» («A Paixão Popular» de Raphael B. Pinheiro in António Maria, 21/4/ /1881)

A CARICATURA E A SEMANA SANTA

Por: Osvaldo Macedo de Sousa

A comunicação, seja verbal, literária ou pictórica tem como raiz, ou substrato, a simbologia, estruturas gráficas ou sonoras que traduzimos automaticamente para compreensão imediata das «mensagens»; Na caricatura a simbologia é uma das principais armas de comunicação, já que, baseando-se na síntese, um pequeno desenho tem que dizer o máximo possível sem legenda, podendo contudo o texto ajudar a rapidez dessa leitura gráfica.
As simbologias podem ser herméticas ou abertas, segundo se deseje relacionar com um núcleo, ou com a maioria. Então, para o segundo caso a simbologia deve estar mais próxima da vida do dia a dia, dos acontecimentos sociais, políticos ou religiosos. Desta forma, e quando a censura (política ou eclesiástica) o permitam, também a vivência religiosa e bíblica é utilizada como simbologia de comunicação, como é o caso da Semana Santa.
A Semana Santa dá ao caricaturista uma quantidade enorme de simbologias para explorar, tanto no âmbito cenográfico, como de contexto, por :exemplo: o beijo da traição de Judas pode ser lido como a traição dos políticos que atraiçoam o povo eleito, que lhes viram as costas por um bom posto governativo, por um suborno... (curiosamente nunca se utiliza a simbologia do suicídio de Judas ou seu arrependimento) A flagelação de Cristo, é a f1agelaçao do Zé Povo com os impostos, e cada imposto novo é mais um espinho na sua coroa. O transporte da cruz é o símbolo de que, apesar de flagelado pelos impostos, pela miséria, despido de tudo e quase sem direitos, tem que transportar o País para a frente, mesmo agora que já existem boas camionetas que poderiam levar a cruz sem esforço. A crucificação do Cristo-Zé é o dia-a-dia, é a vinda do primeiro-ministro à televisão pedir mais sacrifícios porque a crise está a acabar, mas mesmo assim necessita de mais um esforço final, um esforço pelo nacionalismo, pelo futuro, enquanto que o Governo «joga aos dados» a ultima túnica do Zé.
A Ressurreição? Sobre isso não se deve falar, não se deve fazer simbologias revolucionárias, porque é perigoso para o Governo e para a nação, já que a ressurreição do povo, a revolta são um grito das bocas esfomeadas que se devem manter caladas.
Um dos caricaturistas que mais utilizou esta simbologia da Semana Santa foi Raphael Bordallo Pinheiro, que nos deu de diferentes formas o seu testemunho dorido deste Calvário da vida, que se pode resumir nesta simples abordagem do «Calvário do Paiz» - Vendo-se Jesus-Povo crucificado entre os ladrões Ciência e Trabalho, tendo a seus pés chorosa a República e a Liberdade e legenda diz: «Ahi tendes, crucificado entre a Sciencia e o trabalho, o -infeliz martyr Zé Povinbo. Aos seus pés chora uma lacrimosa mãe e uma desgraçada amante. Em baixo acham-se suas excelências os centuriões, assistindo à partida de dados em que se joga a camisa da vítima.» (in António Maria de 21/4/1881)
Muitos outros exemplo se poderiam descrever aqui, como a «Procissão dos Passos-Políticos», «Lava-pés Politico», «A Paixão Popular»… todos de Raphael assim como muitos outros de outros artistas que utilizam todos as mesmas simbologias para descrever a mesma revolta o mesmo Calvário.
Por vezes, em, vez da relação Jesus-Zé Povo, opta-se por Jesus-Portugal, esse velhinho de mais de 800 anos, escanzelado, com a camisa aos farrapos sempre a sofrer os maus tratos dos seus governantes e dos aliados dos governantes, que continuadamente flagelam o nosso país com juros, com desconsiderações, com ultimatuns... Difícil cruz esta do Zé e do velho Portugal.

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