Tuesday, November 24, 2020
Caricaturas Crónicas - «Raphael Bordallo Pinheiro: a ironia na caricatura» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 9/5/1985)
Raphael Bordallo Pinheiro é sem dúvida um dos mestres da caricatura portuguesa, não só por ter sido a voz mais importante do jornalismo gráfico do séc. XIX, como o mais influente artista da nossa história. O seu estilo criou escola, sob o nome de rafaelismo (ou bordalliano segundo outros historiadores), e ainda hoje subsiste como naturalismo caricatural.
O jornalismo gráfico, ou seja, a ilustração humorística como crítica político-social desenvolveu-se em Portugal com o liberalismo, primeiro sob a fórmula de sátira violenta, depois como crítica «costumbrista».
Quando Raphael nasceu (1846), ainda a sátira violenta (panfletária) dominava, mas já seu pai (o artista realista Manuel Maria Bordallo Pinheiro) com Nogueira da Silva e Manuel Macedo procurava, sob a influência da escola francesa, criar uma nova tendência na sátira portuguesa, instigando o «costumbrismo», dominado pela ironia. As primeiras obras do jovem Raphael pertencem a este movimento realista.
Trabalhando sob a influência de seu pai e de Manuel Macedo, em breve libertar-se-á destas influências, para criar não só um traço independente, como uma nova forma de jornalismo.
A sua estreia como caricaturista deu-se em Fevereiro de 1870 (apesar de no ano anterior já ter publicado um cabeçalho de um jornal), data em que publicou uma litografia comemorativa da primeira representação da comédia «O Dente da Baronesa» de António Augusto Teixeira de Vasconcelos (época em que o teatro ainda era encarada como uma possível carreira). Ainda em 1870 publica os seus primeiros jornais («A Berlinda» e o «Binóculo»), antecedidos pelo álbum «Calcanhar d’Aquiles». Em 1875 lanla «A Lanterna Mágica», onde nascerá a imortal figura do «Zé Povinho».
A vida dos caricaturistas em Portugal, mesmo daqueles que, abdicando da sátira violenta procuravam um caminho pela crónica irónica, era difícil, obrigando-os na maior parte serem proprietários dos jornais onde trabalhavam, como aconteceu co Raphael. Aborrecido com os problemas políticos e financeiros, Raphael aceitará um convite para ir trabalhar para o Brasil, onde permaneceu três anos (mesmo aqui, para melhor complementar a sua renda mensal, associou-se a um compatriota como importador de chouriços portugueses).
Se em Portugal tinha tido problemas políticos, no Brasil esses conflitos provocados pelas caricaturas (principalmente vindas de emigrante) chegaram a extremos que puseram em perigo a segurança, não só do artista como da família. Em 1878 regressa a Portugal.
Apesar de ter tido vários convites para trabalhar noutros países da Europa, Raphael nunca mais quis sair de Portugal, com a excepção de uma estadia na Andaluzia, onde fez a cobertura das lutas «carlistas» para o «Illustrated London News», tornando-se desta forma o primeiro correspondente de guerra português. Apesar dessa recusa, isso não impediu que obras suas fossem publicadas nos mais diversos periódicos da Europa, com: «Illustracion Española y Americana», «El Mundo Cómico», «The Illustrated London News», «L’Univers Illustre»….
De regresso a
Portugal, ele nunca mais deixaria de comentar (ou perseguir) a política
portuguesa, pois ele «…intenta ser a
synthese do bom senso nacional (…) Fará todas as diligências para ter razão,
empregando ao mesmo tempo esforços titânicos para, de quando em quando, ter
graça».
«/…/ Claro está que (Raphael) António Maria não tem outro remédio, na maioria dos casos, senão ser oposição declarada e franca aos governos, e oposição aberta e sistemática às “oposições”, o que não o impossibilita de ser amável uns dias por outros, e cheio de cortesia em todos os números». Neste editorial de “António Maria” (12/6/1879), Raphael sintetiza a sua filosofia de cronista político.
Durante trinta anos, ele desenharia vários milhares de páginas, comentando a política e a vida social do país. Dirá mais tarde um crítico, que um dia, quando for feita a história da caricatura em Portugal, em vez de Raphael, encontrar-se-á o Partido Progressista, o Fontes, o Zé Povinho. A forma do comentário de Raphael, como testemunho cheio de vida de uma época, confunde-se com os próprios acontecimentos e individualidades. Raphael foi o ilustrador, o comentador e caracterizador de uma sociedade através da ironia, foi «um jornalista sem reservas de paixões cegas», que nos deixou a história da segunda metade do século XIX enriquecida pelos seus comentários, cheio de graça. Como obra-prima, e companheiro da sua saga crítica, ele criou a síntese do povo português, o homem desconfiado, mas ingénuo, o revoltado mas indiferente, o alegre mas saudoso, o Zé Povinho.
Orientador de um novo estilo de sátira como opinião, foi também o criador de um estilo estético marcante. Partindo de um desenho naturalista, apresenta-nos uma abundância de traço de detalhe exagerado. Evoluindo na simplificação das superfícies envolventes, e síntese do traço, verifica-se uma demarcação de contornos que o mantêm ligado à origem do naturalismo. O «barroco» decorativista do traço é uma constante do seu estilo.
Outro elemento inovador de âmbito gráfico que Raphael trouxe para os jornais, está no tratamento da paginação. Trabalhando a página como um todo, ele dialoga as legendas, as letras com a ilustração, criando-a como uma obra única.
Raphael (que morreu em 1905) foi um novo estilo de humor, um novo estilo de traço, uma personalidade que se impôs, criando por isso uma plêiade de discípulos, que ao imitarem-no, criaram uma escola estilística que se mantém até aos nossos dias, como estilo académico. No fundo, os academismos do nosso século, estão dominados pela família Bordallo Pinheiro.