Wednesday, November 25, 2020
Caricaturas Crónicas - A CARICATURA E A SEMANA SANTA por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 7/4/1985)
A comunicação, seja verbal, literária ou pictórica tem como raiz, ou substrato, a simbologia, estruturas gráficas ou sonoras que traduzimos automaticamente para compreensão imediata das «mensagens»; Na caricatura a simbologia é uma das principais armas de comunicação, já que, baseando-se na síntese, um pequeno desenho tem que dizer o máximo possível sem legenda, podendo contudo o texto ajudar a rapidez dessa leitura gráfica.
As simbologias podem ser herméticas ou abertas, segundo se deseje relacionar com um núcleo, ou com a maioria. Então, para o segundo caso a simbologia deve estar mais próxima da vida do dia a dia, dos acontecimentos sociais, políticos ou religiosos. Desta forma, e quando a censura (política ou eclesiástica) o permitam, também vivência religiosa e bíblica é utilizada como simbologia de comunicação, como é o caso da Semana Santa.
A Semana Santa dá ao caricaturista uma quantidade enorme de simbologias para explorar, tanto no âmbito cenográfico, como de contexto, por :exemplo: o beijo da traição de Judas pode ser lido como a traição dos políticos que atraiçoam o povo eleitor, que lhes viram as costas por um bom posto governativo, por um suborno... (curiosamente nunca se utiliza a simbologia do suicídio de Judas ou seu arrependimento) A flagelação de Cristo, é a f1agelaçao do Zé Povo com os impostos, e cada imposto novo é mais um espinho na sua coroa. O transporte da cruz é o símbolo de que, apesar de flagelado pelos impostos, pela miséria, despido de tudo e quase sem direitos, tem que transportar o País para a frente, mesmo agora que já existem boas camionetas que poderiam levar a, cruz sem esforço. A crucificação do Cristo-Zé é o dia adia, é a vinda do primeiro-ministro à televisão pedir mais sacrifícios porque a crise está a acabar, mas mesmo assim necessita de mais um esforço final, um esforço pelo nacionalismo, pelo futuro, enquanto que o Governo «joga aos dados» a ultima túnica do Zé.
A Ressurreição? Sobre isso não se deve falar, não se deve fazer simbologias revolucionárias, porque é perigoso para o Governo e para a nação, já que a ressurreição do povo, a revolta são um grito das bocas esfomeadas que se devem manter caladas.
Um dos caricaturistas que mais utilizou esta simbologia da Semana Santa foi Raphael Bordallo Pinheiro, que nos deu de diferentes formas o seu testemunho dorido deste Calvário da vida, que se pode resumir nesta simples abordagem do «Calvário do Paiz» - Vendo-se Jesus-Povo crucificado entre os ladrões Ciência e Trabalho, tendo a seus pés chorosa a República e a Liberdade e legenda diz: «Ahi tendes, crucificado entre a Sciencia e o trabalho, o -infeliz martyr Zé Povinho. Aos seus pés chora uma lacrimosa mãe e uma desgraçada amante. Em baixo acham-se suas excelências os centuriões, assistindo à partida de dados em que se joga a camisa da vítima.» (in António Maria de 21/4/1881)
Muitos outros exemplo se poderiam descrever aqui, como a «Procissão dos Passos-Políticos», «Lava-pés Politico», «A Paixão Popular»… todos de Raphael assim como muitos outros de outros artistas que utilizam todos as mesmas simbologias para descrever a mesma revolta o mesmo Calvário.
Por vezes, em, vez da relação Jesus-Zé Povo, opta-se por Jesus-Portugal, esse velhinho de mais de 800 anos, escanzelado, com a camisa aos farrapos sempre a sofrer os maus tratos dos seus governantes e dos aliados dos governantes, que continuadamente flagelam o nosso país com juros, com desconsiderações, com ultimatuns... Difícil cruz esta do Zé e do velho Portugal.