Sunday, November 22, 2020
«O Exílio político de Leal da Câmara – Exposição com um desconhecido chamado Picasso» por Osvaldo Macedo de Sousa (in revista «História» nº 71 de Setembro de 1984)
Certamente que o nome de Leal da Câmara não é estranho
aos leitores desta revista, e todos, ou quase todos, sabem que foi um dos
nossos grandes caricaturistas do passado. Nasceu em Nova Goa (Índias
Portuguesas) a 30 de Novembro de 1876, filho de um oficial expedicionário, e de
uma senhora pertencente a uma das famílias mais importantes da Índia
Portuguesa.
Poucos anos permaneceu na colónia, e passou a sua vida
de estudante em Lisboa, na companhia da mãe, então já viúva. A sua educação, no
fundo, provém do meio tradicionalista da vida lisboeta, da sua família de
burguesia acomodada e do espírito revolucionário que pairava no ar, levando o
povo a reclamar as promessas do “Mindelo”, onde seu avô paterno tinha sido um
herói.
Apesar destes antecedentes heroico-revolucionários e
do ambiente fervilhante à sua volta, a família queria para Tomáz Júlio Leal da
Câmara uma educação e uma carreira dentro da tradição da boa burguesia,
levando-o a cursar Agronomia e Veterinária. Só que nem sempre os desígnios
maternos podem ser cumpridos, e neste caso, o seu espírito boémio e
«revolucionário» foram mais fortes, tendo-se mantido naqueles estudos apenas um
ano, voltando-se para o desenho, uma das suas paixões de sempre, e para a
sátira, fruto da sua adolescência irreverente.
Pelos anos 90 (de oitocentos) já D. Carlos era Rei e a
política, quer a continental quer a colonial, continuava a ser contestada,
tanto pelos grupos da oposição parlamentar, como pelos grupos socialistas,
anarquistas ou republicanos e, Leal da Câmara integra-se nestes últimos,
servindo-os com o seu lápis agudo e perspicaz.
A ESTREIA DE LEAL DA Câmara
Em 1896 João Chagas começa a dirigir o jornal «A
Marselheza» (que se deveria chmar «República» não fosse a proibição oficial)),
ao qual, a partir de Novembro de 1897, se lhe agrega um «Suplemento de
Caricaturas» ilustrado por Leal da Câmara. Sem este acontecimento,
provavelmente nunca a «Marselheza» tivesse a fama com que ficou para a
História, pois foi graças ao tal suplemento que este periódico ganhou a
«glória» de ser «o jornal de maior
circulação em todo o Governo Civil».
Leal da Câmara já era conhecido do público através das
suas caricaturas nos «D. Quixote» e «Ridículos» (1896/7), mas será através da
«Marselheza» (e depois do desaparecimento desta, da «Corja»), que o seu cunho
satírico se encarniçaria contra o Rei e seus ministros, contra o Juiz Veiga
(representante da opressão policial a jurídica do Governo Civil), contra o
regime encarnado mais tarde por um chapéu à Mazzantini.
A caricatura existia em Portugal desde os anos 50 (a
nível periódico), e tinha tido entretanto grandes mestres do humor e da sátira,
como Cecília (Lopes Pinta-Monos), Raphael Bordallo Pinheiro, Sebastião Sanhudo,
Celso Hermínio… e se estes sempre atacaram a política, os reis…., se Costa
Cabral, Fontes Pereira de Melo…. Foram alvo de centenas de caricaturas, nunca um
caricaturista em Portugal tinha atacado com tanta frontalidade e sátira os
políticos e, essencialmente o Rei, como Leal da Câmara. Esta sua agudeza de
crítica valeu-lhe, não só a fama entre um certo público, como no Governo Civil
e, consequentemente uma constante perseguição policial aos seus trabalhos,
multas, apreensões e finalmente a proibição de caricaturar o Rei.
Mas, esta proibição, para um bom caricaturista, não é
um impedimento, antes pelo contrário e, como já tinha feito o francês Philipon há
uns bons 50 anos antes, tal figura foi substituída por símbolos que não só o
identificavam, como o transformavam em melhor alvo do riso.
As querelas iam aumentando, mudou o nome do jornal,
continuaram as perseguições, e em Outubro de 1898, perante a preensão de mais
um número de «A Corja», Leal da Câmara manda imprimir e distribuir
gratuitamente uma folha onde um ardina, tentando vender «A Corja», fugia de um
«fagulha» (polícia) com o seguinte texto como legenda: «À hora a que escrevemos
este Suplemento a polícia está apreendendo o nº17 da Corja. A polícia mandada
pelo agente Fagulha entra nas lojas e apreende todos os exemplares.
Os nossos vendedores são presos.
O público que faça o comentário a este facto, passado
numa cidade onde se acaba de fazer um congresso a favor da liberdade de
imprensa».
Esta atitude foi a gota de água que a polícia
procurava e, perante esta facto manda proibir «A Corja» e lança um mandado de
captura ao autor destes trabalhos agitadores e subversivos.
Leal da Câmara, ao ser prevenido a tempo dos
preparativos da polícia e suas intenções, abandonou Lisboa e refugiou-se no
Cartaxo, na casa do seu amigo dr. Marcelino Mesquita. Aí permaneceu uns dias,
mas em vista das más notícias, vindas da capital, e dos conselhos dos amigos,
viu-se na necessidade de partir para o exílio, sendo deste modo, o primeiro
artista gráfico, o primeiro caricaturista, a exilar-se devido à sua obra
artística.
EXÍLIO EM MADRID
Partiu para Madrid, na esperança de poder regressar em
breve, mantendo por isso contactos directos com os amigos e durante um breve
tempo com os seus leitores, através do jornal «O Diabo», periódico dirigido por
Diamantino Leite (que também fazia caricaturas). Aí, durante os últimos meses
de 1899, foram publicados alguns trabalhos de Leal da Câmara, que este enviava
de Madrid (nos quais prosseguia o mesmo espírito e estilo agressivo, mas talvez
um pouco mais matizados pela distância). Esta colaboração foi reduzida. Desde
então, e até à queda da monarquia, só virá a publicar em Portugal alguns, poucos,
trabalhos e já quando a morte desta estava diagnosticada.
Leal da Câmara partia para Madrid, com a simples
intenção de aí esperar que os ânimos se acalmassem, e que o seu regresso (em
segurança) se pudesse realizar de um momento para o outro, mas os meses foram
passando, e em vez do perdão, as notícias que foram chegando diziam que tinha
perdido todos os direitos cívicos e que se regressasse, podia ser deportado
para Timor, sem a necessidade de qualquer outro tipo de processo.
Mas, enquanto o nosso artista esperava o seu regresso,
qual foi a Espanha que ele encontrou? Uma Espanha em guerra contra os
movimentos independentistas das suas colónias, ou contra o desejo imperialista
de outras potências; uma Espanha destruída pelas guerras Carlistas que dividiram
durante quase um século, os espanhóis numa mini guerra civil; uma Espanha
feudal, governada por uma oligarquia e pelo caciquismo; uma Espanha pobre,
material e espiritualmente, que no fundo não se diferenciava muito de Portugal.
A nível de caricatura, havia em Espanha uma maior
preferência pelo humorismo de cunho pitoresco e costumbrista (como nas Zarzuelas), e com raras paixões, pela sátira
caricatural. O povo espanhol tem uma tendência natural para este estilo de
humor social e político, porque sabe que quando não se autocensura, cai na
crítica agressiva, na sátira do excesso. Por isso, apesar desta também existir,
procuram temperar o seu gênio «sanguíneo».
Leal da Câmara chega a Madrid de «sangue na guelra»,
cheio de agressividade por um regime que não lhe deu liberdade de imprensa, nem
de expressão, mas curiosamente vai imediatamente cair numa autocensura da
ironia, em que permaneceria durante todo o seu exílio, com a tal excepção dos
desenhos que ainda em 1898 mandou para «O Diabo».
Tendo ido para Madrid com a ajuda monetária de amigos,
o nosso exilado viu-se na necessidade imediata de arranjar dinheiro, e neste
caso o melhor é procurar trabalho. Eis as notícias que envia a sua mãe, sobre
estes problemas: «Minha querida Mamã: não
me guarde ressentimento. Ainda não saíram dos desenhos nos jornais em que lhe
falei, mas vão sair. Eu lhos mandarei. Nesta semana publico uma caricatura no
«El Album». Trata-se duma revista de certa voga, e o meu caricaturado é
Benavente, dramaturgo célebre. Dou-me bastante com ele. Neste mesmo instante
estamos lado a lado no café, eu escrevendo, ele botando chalaças. Os jornais em
que colaboro são: Revista Vinícuola, La Nacion Militar, El Álbum e La Vida
Literaria. Pouco a pouco, como uma formiga rabiga, voi criando nome e subindo
em crédito. No próximo número da Vida Litaréia vem uma caricatura que reputo do
melhor que tenho feito até o dia de hoje. É a pastel, matéria que acho optimo e
vou adoptar doravante.
Quando a
finanças, estão mal, mas tenho esperança que hão-de melhorar.»
MUITOS ELOGIOS – POUCO DINHEIRO
A recepção a Leal da Câmara pelas tertúlias
intelectuais, e mesmo pelo público não podia ter sido mais calorosa. Por
exemplo, quando começa a sua colaboração na Vida Literária, ao seu primeiro
desenho juntaram-lhe ali esta apresentação cheia de graça e carinho: « S.M. El
Diablo – Tenho o gosto de vos apresentar o distinto desenhador português Sr.
Leal da Câmara que se encontra em Madrid em consequência de diabruras
políticas, o qual se propõe continuar nesta corte a sua campanha caricaturesca,
sempre na companhia do diabo, “cicerone” insubstituível para percorrer Madrid
nestes tempos de Aguilera». 11/2/1899.
Também o «El Álbum» faria uma apresentação
interessante do nosso artista, quando este começou a colaboração naquele jornal
(7/7/1899): «Já todo o mundo conhece o
caricaturista original, o seu nervoso e estranho regozijo, o seu critério
extravagante e raro.
Em periódicos
e revistas populares tem feito célebres os traços estupendos, diabólicos,
singularmente bufos do seu lápis, e tem revelado um aspecto, uma eloquência,
uma sensação da linha que não conhecíamos aqui.
Os “bonecos”
de Leal são uma “zancada”, um cómico 2Trapiés” da humanidade, vazia de juízo,
pela estrondosa alegria, pela forte travessura desse especial artista que
surpreende em todos os perfis, em todos os requebros da linha o picante começo
de uma gargalhada estrondosa.
É saneamento
satírico; as suas caricaturas, mesmo as mais travessas, não crucificam o
paciente, porque fazem rir sem ferir, rir sem desprezo e sem ódio.
Leal da
Câmara tem entre nós um futuro brilhante, porque tem um brilhante e original
talento».
O futuro poderia parecer brilhante a nível de
trabalho, de glória, já que os elogios provinham de todos os lados, mas a nível
monetário, não se verificavam as mesmas perspectivas brilhantes: «O problema da minha vida em Espanha –
escreve ele a sua mãe – está posto em
termos bem claros. Revolvê-los agora é questão de tempo e paciência. Mas a
paciência não é o meu forte. Tenho trabalhado como um moiro. Fiz caricaturas
sobre caricaturas, algumas de pessoas virgens para essas celebrações, tanto a
pastel como óleo, estudadas do natural, que merecem o elogio, entre outros, de
Sorolla, Moreno Carbonero, Benlivre. /…/ o êxito dos meus pasteis foi
estrondoso no meio intelectual; só há um contra, um grande contra: ter de
trabalhar de graça /…/ tanto aqui como em Barcelona e Valência, críticos de
certa categoria fizeram charlas e conferencias acerca da caricatura em geral e
da minha maneira em particular. /…/ O que preciso é lutar mais, redobrando os
esforços, dando um pouco de mão aos periódicos que pagam mal… quando pagam, e
preparar desde já nova exposição».
Assim, na permanência em Madrid, para além das
caricaturas de personalidades (intelectuais por vezes tão tesos como ele e que
por isso não pagavam), dos desenhos humorísticos de tipo pitoresco e costumbrista para os jornais, não
encontramos já a sátira política com a agressividade conhecida na «Marselheza»
e na «Corja». É natural que Leal da Câmara, como estrangeiro e exilado, não se
sentisse tão à vontade em Espanha como em Portugal para satirizar a política,
mesmo assim poderemos encontrar uma única caricatura referente ao que se passa
em Portugal (Insomnias Reales), que tem um tom bastante moderado, ou então uma
ou outra caricatura de cunho internacional, começando deste modo a sua campanha
(que prosseguirá com toda a força em França), contra a cobiça imperialista,
nomeadamente contra a Inglaterra, Os Estados Unidos da América e contra a
Alemanha.
EXPOSIÇÃO COM PICASSO
Além destas publicações, realizou também uma
exposição, a referida na carta à mãe, mostra esta que não foi individual, mas
na companhia de mais dois artistas: um grande humorista espanhol – Sancha e um
outro artista espanhol, não humorista, mas um simples desconhecido que
procurava ainda a sua identidade, o seu caminho – chamava-se Pablo Picasso. A
exposição realizou-se na Galeria Weil. Sancha quase se poderá considerar como
um seu discípulo porque, se esta influência estética se poderá verificar em
todo o meio humorístico espanhol (e em Portugal, após o seu regresso do exilio),
na realidade a influência mais marcante seria neste artista que o acompanharia
em Paris.
Leal da Câmara estava satisfeito pelo que tinha
conseguido realizar num ano de permanência em Madrid, mas perante a constatação
que não podia mesmo regressar a Portugal, perante as dificuldades económicas
que representava o trabalhar em Espanha, começou a sonhar com a mudança de
residência de exilado para a capital das artes – Paris – onde a fama e o
desafogo económico seria mais fácil para quem tinha talento.
«E olhe – escreve
ele à mãe- andava há muito a acariciar a ideia duma passeata a Paris. A estada
ali de uns meses só podia fazer-me bem e seria o coroamento feliz dos meus
esforços. /…/Tudo isto vem de introito a eu querer-lhe dizer que o “Imparcial”,
a maior gazeta de Espanha, me propôs ir a Paris fazer umas crónicas semanais
para os suplementos das segundas-feiras, consagrado às letras. /…/ De Paris
enviarei o endereço que é muito possível seja este…. É onde mora Sancha».
Tendo chegado a Madrid no final de 1898, partiu para
Paris no princípio de 1900. Aqui consumiu portanto, um ano de exílio, partindo
depois para mais onze anos em Paris. Mas, Madrid não foi só o início do seu
exílio político, foi também o começo da sua fama no estrangeiro: em Paris,
trabalhando para os principais jornais da época («L’Assiette au Beurre»,
«Rire», «Sourire», «Vie Parisienne») ganhou o reconhecimento internacional do
seu talento.
Em Paris, o seu traço satírico dedicar-se-á
fundamentalmente à politica internacional, com crítica ao espírito
imperialista.
Entretanto, em 1908, pôde começar a enviar do exílio alguns
trabalhos para serem publicados em Portugal (no Século) e em 1911 pode
finalmente regressar. Aqui continuará por algum tempo a sua actividade de
caricaturista em diversos jornais, começando entretanto uma nova vida de
conferencista e de professor (actividades que já ensaiava em Paris).
Voltaria, porém, uma vez mais a Madrid, agora para
fazer uma série de entrevistas para o jornal brasileiro «A Noite» (em 1915)
sobre a posição dos intelectuais e figuras de destaque perante a posição de
Espanha na Guerra Mundial. Fará também uma série conferências, publicará
algumas caricaturas em jornais espanhóis e acabará por publicar um livro sobre
essa viagem chamado «Miren Ustedes».
Regressando a Portugal, manter-se-à por pouco tempo no
mundo do humorismo e da caricatura, para se dedicar preferencialmente á pintura
costumbrista ou bucólica, ou à
ilustração de livros e revistas, com preferência pelas historias infantis.
Para esta nova vida, retirou-se para o seu canto da
Rinchoa (lá existe ainda o seu belo museu) onde construirá um dos últimos
redutos do mundo saloio. Viria a morrer em 1948.