Monday, November 23, 2020

Caricaturas Crónicas - «Stuart: um artista popular» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de21/4/1985

     Um artista pode ser popular em vida, sê-lo após a morte ou sê-lo em ambos os casos. Um artista poder ser reconhecido por uma elite e ser «consagrado», ou ser simplesmente admirado e amado pelas massas. Este ultimo, é o caso de Stuart Carvalhais, um artista (quase) ausente dos museus portugueses, mas presente em várias manifestações que o recordam como um artista do povo. A última homenagem é a re-inauguração de um café-concerto, onde vai funcionar, a partir de agora, uma galeria de arte (da qual fui o seu director) com o seu nome (Bar Stuart – Hotel Impala propriedade do cineasta Paulo Rocha), um espaço vocacionado para a caricatura e ilustração.

                Stuart Carvalhais (Vila Real 1887 – Lisboa 1961) é um vila-realense que viveu Lisboa através da sua arte e da sua vida. Artista boémio, a sua arte será o espelho da sua vida, da sua vivência com o mundo, seja ironizando-o, criticando-o ou ilustrando-o com amor.

                Tendo começado a sua actividade como aprendiz, no estúdio de azulejaria de Jorge Colaço, em breve se dedicou à caricatura e humorismo gráfico, manifestando de imediato uma independência e originalidade de traço, que ao ser envolvido pelo movimento modernista, o catapultou para os principais periódicos, como um dos artistas da «nova vaga».

                Este espírito «vanguardista» que se respirava entre uma certa juventude, levou-o a Paris, a cidade das artes, das novas experiências estéticas, e aí triunfou como caricaturista. Num ano, impôs-se nos principais jornais. Um ano que o marcaria para toda a vida.

Por razões pouco claras, em 1914 teve de regressar para este país onde reina a mediocridade, trazendo consigo a saudade, a frustração da oportunidade perdida em vir a ser «alguém».

                Em Portugal, o artista-boémio retomará o seu trabalho, dispersando-se seja pelos jornais políticos (republicanos, antirrepublicanos, monárquicos, sidonistas…), jornais infantis, de arte e decoração, ilustração, de caricaturas….

                Assim como é difícil definir as suas tendências polícias, também o é no campo estético. Stuart tanto foi um tradicionalista da escola rafaelista, como um modernista, um vanguardista… variando o seu traço consoante o gosto, ou simpatia, do destinatário da obra. Caricaturista, humorista, banda-desenhista, ilustrador de livros, de capas de música, cenógrafo, pintor… ele soube dar ao público o que este, em cada momento, desejava (talvez esta uma das razões para não ser um «consagrado»). Não se pode dizer que se vendia ou que se comercializava, num intuito fácil, simplesmente agradava, para poder sobreviver, para ter dinheiro para uma «bucha» e um «copo de três».

                «Ser artista é ter talento, possuir garra, ser condecorado /…/. Eu não, nunca pintei nada /…/, faço bonecos para distrair a fome. /…/ Artista são os outros». (do «República» de 13/12/1940).

                Ele nunca compreendeu o seu próprio valor (salvo quando esteve em Paris), por isso, sempre trabalhou como um simples operário da imprensa, para ganhar o dia-a-dia e, gastando-o no prazer do dia-a-dia. Ele era um simples, tal como o eram os modelos que ele mais gostava de retratar – os vagabundos, os bêbados (em que ele se refletia), os ardinas, os putos, as prostitutas e seus «cães vadios», as costureirinhas, as varinas, os gatos…. Pintados a óleo, aguarela ou a crayon. Ele transmitia carinho, amor por essa gente que vivia com ele a mesma cidade. Mesmo quando o humor e a sátira estão presentes, nunca é de forma a ofender o povo. Por isso, não só o seu traço era célebre entre os leitores de jornais, assim como a sua personagem o era entre o povo «castiço», ou entre as gentes da noite.

                Se o seu espírito brejeiro tornou célebre as pernas das varinas, a sensualidade do andar das costureirinhas, a cumplicidade das prostitutas, a irmandade dos pequenos ardinas, não menos célebres foram os seus personagens – Quim e Manecas, Zé Manel, Cocó, Reineta e Facada…. entre a camada mais jovem.

                As suas bandas desenhadas foram, não só, das mais interessantes realizadas entre nós na sua época, como pioneiras na utilização de módulos que já caracterizavam os comic americanos e que depois se universalizaria.

                Falava eu há pouco do óleo, aguarela, crayon? Termos «finos», para falar dos materiais que utilizava. É verdade que os encontramos em obras suas mas, na maioria das vezes, ou não havia dinheiro para os comprar, ou não os tinha presentes no momento de inspiração. Então, nesses casos tanto servia qualquer tinta, como borras de café, graxa, fósforo queimado, remédios… , se apesar da diversidade estilística, existe uma constante stuartiana, o efeito «pau de fósforo» é a assinatura mais marcante de Stuart. Com um canivete (ou com os dentes), Stuart fazia de um pau de fosforo um pequeno pincel e, como ele, traçava obras inconfundíveis da sua arte e mestria. Meia dúzia de traços mal definidos, eram o suficiente para retratar a dor, o amor, a miséria, a alegria, a vida de um povo conhecido como lisboeta.

                Stuart poderia ter sido um caricaturista internacional, poderia ter sido um mestre do modernismo português, poderia ter sido…. Mas foi simplesmente um artista boémio, talvez o último da velha guarda, que retratou a velha Lisboa, não a dos prédios novos, mas a do que restava do velho casticismo, da que restava do orgulho de ser «alfacinha». Stuart foi simplesmente, um artista popular.


Comments: Post a Comment



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?