Thursday, November 26, 2020

«Christiano Cruz, mestre de Almada Negreiros» por Osvaldo Macedo de Sousa (in revista «História» nº75 de Janeiro 1985)

Falar de Almada Negreiros tornou-se já numa rotina e poder-se-á dizer que foi o acontecimento mais importante de 1984 em Portugal. Um Mestre que, 15 anos após a sua morte, é relembrado em todos os campos da sua criatividade e das mais variadas formas sem, em qualquer delas se mencionar a lembrança de seus mestres. Um mestre também teve mestres, e neste caso, queria falar de Christiano Shepard Cruz, o primeiro mestre de Almada Negreiros e um dos mais enigmáticos artistas portugueses.

CHRISTIANO MESTRE DE ALMADA

Com que direito posso dizer que Christiano Cruz foi o primeiro mestre de Almada? Na verdade não sou eu que o digo, mas o próprio Almada, quando falava nas suas origens – a caricatura.

A caricatura foi, ou é, uma das principais artes da Idade Contemporânea, não só porque o grafismo é uma das experiencias estéticas mais interessantes e renovadoras, mas também porque a comunicação e a intervenção na vida da sociedade, são uma das fundamentais necessidades do artista de hoje. A caricatura, pela sua estrutura sintética e satírica, possui essas duas características.

Em Portugal, a caricatura apesar de ter, nas suas origens, uma relação muito directa com a política, soube depois libertar-se dessa submissão e dialogar com o humorismo e a estética. Houve mesmo períodos em que, apesar de haver um substrato político, o fundamental era a utilização da sua irreverencia numa intenção demarcadamente estética. Isso aconteceu nos anos dez do nosso século.

«A caricatura ia na vanguarda», dirá mais tarde Leal da Câmara. As artes plásticas, desde que receberam a lição de Barbizon, tinham estagnado, e a caricatura fora dominada pelo raphaelismo bordalianno (pelo estilo de Raphael Bordallo Pinheiro) desde os anos setenta do século passado, com as naturais excepções de mestres acima de qualquer influência como Celso Hermínio e Leal da Câmara.

Assim, quando se inicia o nosso século, e quando a monarquia é abatida, o academismo domina todos os campos, sejam políticos como artísticos. Os tempos passam, as pessoas envelhecem, assim como as instituições, que, apesar de escutarem o ruido das revoluções, se mantém inalteráveis. Mas, a juventude, essa anda sempre irrequieta e, por vezes, leva a irreverência à vanguarda, neste caso, ao anti academismo.

UMA SAIDA DE SOBREVIVENCIA

As artes, para viverem, necessitam que o artista sobreviva. Para que isto aconteça é necessário que, ou ele seja rico e não necessita de outro apoio monetário, ou então necessita de vender a sua obra. Ora, num país aonde a sociedade ainda não se integrou na nova relação social, imposta pela revolução industrial; onde o gosto estético se radica no simples gosto visual, ou seja, na mimese do belo da natureza; onde os intelectuais estrangeirados não são compreendidos e, nem compreendem a sociedade onde vivem, é difícil sobreviver monetariamente como artista.

A decoração, a ilustração ou a caricatura foram desde sempre uma saída de sobrevivência, já que são artes «por encomenda» de uma certa camada social aberta e com outra perspectiva estética. A caricatura, em especial, é a saída mais interessante para quem deseja utilizar a linha no comentário político, na critica social, quem deseje ser irreverente para despertar uma sociedade da letargia. Essa a intenção de Almada Negreiros, esse foi o desejo de Christiano Cruz.

Christiano Shepard Cruz nasceu em Leiria em 1892 e, já em 1909 (com dezassete anos) aparecem obras suas nas revistas nas revistas «O Gorro», seguindo-se em «A Farça» de Coimbra, em «A Águia» do Porto e depois com o passar dos anos na «Rajada», «Sátira», «Novidades», «Garra», «Lucta», «Revista Portuguesa»… por onde continuou na sua actividade satírica.

DUAS FASES

Apesar de podermos dividir a obra de Christiano em dois períodos, ou duas fases – na verdade foi ele próprio que a dividiu em fase de estilização e fase de expressionismo – a sua obra apareceu desde o seu primeiro desenho como que de um «artista já feito». Curiosamente, é difícil destrinçar a sua obra de «debutante» da de Mestre. Em relação às tais fases, estas verificam-se, não por uma simples questão de evolução técnica, mas por uma evolução interior, por uma pesquisa do autor, ou mesmo por um desespero que acompanhou toda a sua obra, como pronúncio de uma insatisfação que o afastará das artes.

Na primeira fase, a caricatura ou o desenho humorístico de cunho ácido predominam através do seu traço sintético, traço que despe as nossas artes do barroquismo rafaelista, que esquematiza o mundo do nosso naturalismo. Na segunda fase, vai-se dedicar a um universo dominado pelo desespero, onde a sociedade e a cidade nos aparecem levados por uma imaginação sombria, sem nunca deixar de sintetizar o mundo no seu traço fino. Como factor comum destas duas fases encontramos o tratamento da linha – a síntese, a liberdade em relação à mimese. A linha, tornou-se independente da imagem, para criar ela uma nova imagem, seja procurando a forma absoluta, abstrata das coisas, seja como grafismo tradutor das sensações.

Christiano Cruz apareceu como que vindo do nada, para abrir novos caminhos às nossas artes, como quea sua missão fosse indicar o princípio, indicar as possíveis novas vias e desaparecer depois. Possuidor de grande cultura (e certamente conhecedor do que acontecia no mundo artístico francês) e uma maturidade artística, impôs-se de imediato entre seus pares, influenciando toda uma nova geração, entre os quais estava o jovem Almada. Se este, desde muito cedo conseguiu, pela sua força criativa, impor a sua personalidade no seu estilo, podem-se encontrar desenhos da sua primeira fase onde é nítida a influência directa de Christiano Cruz. Depois, cada um seguiu seu caminho: Almada Negreiros na irreverência apontada pelo Mestre e fomentada por outros mestres, e Christiano Cruz para a sua mitificação – mas a lição sobre a linha, origem de todas as coisas, estava semeada.

AS EXPOSIÇÕES DOS MODERNISTAS

Christiano não só induziu uma nova forma de «ver» a linha, de estruturar o mundo, como foi um dos principais dinamizadores das chamadas Exposições dos Humoristas.

Como todos sabem, estas exposições foram o embrião de uma corrente estética que ficaria conhecida por Modernismo. O modernismo-humorismo foi uma sequencia de experiencias gráficas que, para além de Christiano Cruz e de almada Negreiros, tiveram nomes importantes como Emmérico Nunes, Stuart Carvalhais, Jorge Barradas, Correia Dias… experiências que se limitaram a um vanguardismo moderado (dentro do âmbito internacional), evolucionando depois para um decorativismo mundano nos anos vinte.

Nesses mesmos anos dez do nosso século, haverá outras tentativas de de irreverencia vanguardista, seja ligada ao «Orpheu» ou ao Futurismo, com nomes como Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor, Amadeo de souza-Cardoso, mas Christiano Cruz já não estava nesta s linhas de vanguarda, antes perdido na sua própria pesquisa.

Christiano colaborou nas mais variadas revistas de arte e polémica, humorísticas ou de informação, espalhando por todas elas a sua arte, sem nunca se entregar totalmente a esta. De carácter reservado, manteve-se quase sempre afastado dos seus companheiros, lutando pelo modernismo unicamente através da sua obra, contributo que desapareceu no início de década dos vinte. Um artista que nasceu do nada e que no nada desapareceu.

Dez anos de carreira, dez anos de desespero em busca de uma satisfação estética, dez anos com uma obra importante e influente, abandonada de repente, trocada pelas selvas de África – Moçambique primeiro e depois no final da vida Angola, onde morreria em 1951 (Silva Porto). Contam os seus amigos que nunca mais voltou a pegas num lápis e numa folha de papel (o que não é totalmente verdade) para expressar seu mundo interior, trabalhando unicamente na sua profissão de médico-veterinário.

Tal como um cometa, envolto numa névoa mítica, deixou a sua obra a influenciar as gerações posteriores, à qual pertence esse Msetre chamado Almada, e que em 1984 teve honras de recordação.


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