Saturday, November 28, 2020

Caricaturas Crónicas - UM VOTO POR CARNEIRO COM BATATAS por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 15/9/1985


«- Isto não são lá eleições nem meias eleições!»

«- Diz V. Ex.ª muito bem! A urna já não dá nada! Nem um reles carneiro com batatas!»

(Joaquim Costa, in Alfacinha, a 31/10/1882).

 

O acto eleitoral como almoço da carneirada, como campanha política, como caça ao voto, como corrida ao Poder, sempre foi um assunto favorito para o caricaturista ou humorista. Tal atracção deve-se à riqueza de motivações e situações passíveis de serem satirizadas ou ironizadas, deve-se ao flagrante antagonismo entre a palavra política e a realidade no dia-a-dia do Zé Povinho.

Se hoje o caricaturista tem ainda muito com que se «inspirar», no século XIX havia um mundo especial, onde a carneirada era conquistada pelo “carneiro com batatas” e onde as situações eram diferentes. Este pitéu foi durante anos um dos artifícios de arregimentar votos, oferecendo de comer no dia da votação a quem lhes desse o voto. Os partidos poderiam ser diferentes o manjar era o mesmo.

Vejamos pois como a caricatura do século passado via o acto eleitoral. O primeiro e mais importante elemento de base, neste jogo é o político, o futuro deputado que procura um lugar sentado à sombra do S. Bento, que ainda não sabe se tem porta aberta ou fechada para ele. O político não é um qualquer, é um «talento perspicaz, saber profundo, dai-lhe dinheiro, dar-vos-á o mundo» (Maria, in O Patriota a 6/9/1847); É uma individualidade influente, é um comprador de sonhos e projectos («votai em mim, eleitores, que sou um homem de brio, pelos votos dou dinheiro, e quem dá é sempre tio» - Anónimo, in Demócrito a 9/7/1865). É a retórica das promessas, é o compromisso da realização de mundos e fundos, mas que quando está no Poder esquece os mundos e fica com os fundos: «No dia dos votos Zé Povinho tem tudo o que lhe apetece - em expectativa: tem estrada para a sua aldeia, um novo sino para o seu campanário, tem vinte mil réis de feijão a mais para o rancho do seu regimento, tem três mil e quinhentos pelo voto.» «O outro dia - no outro dia Zé Povinho tem tudo aquilo o que não quer: tem um novo imposto, tem um deputado novo, e para substituir o pão sem peso, tem pau sem conta e sem medida.» (R.B.P" in António Maria"a 18/8/1881).

O político é um indivíduo arregimentado a um partido, o qual poderá ou não ser o Poder. Ora, como o Poder é o objectivo principal a atingir para este, facilmente se pode compreender uma certa mobilidade, com tendência para se apoiar no que está na mó de cima: «Coisas do mundo! Estas almas do Progresso (partido Progressista) tão devotas, alcançaram nobres palmas, tornando-se engraxa botas! // Qual camaleão ser vário, mudar como o catavento, é quanto hoje é necessário, para entrar no Parlamento.» (Anónimo, in Demócrito a 25/6/ /1865).

O político é um vendedor de promessas, é um comprador de votos, o que significa que o eleitor está disponível a vender-se. Eis como se fabrica um eleitor: «Os cinco sentidos eleitorais: primeiro vê-se uma cara vela de doze (dinheiro); depois ouve-se uma promessa tentadora...; mais tarde cheira-se o carneiro com batatas; em seguida gosta-se do torreano ( vinho) de 80 réis o litro, e por fim apalpa-se o chão com as costelas. E aqui está como se vota.» (R.B.P., in António Maria a 1/11/1883.)

O eleitor vende-se, é enganado, «apalpa o chão com as costelas» e volta a vender-se. Porquê? É que «o eleitor é como os carneiros de Panurge: atira-se para a urna inconsciente, indo atrás do choro d'um emprego ou de uma promessa. (...) Quando os ventos mudarem e os donos d'agora queiram segurar os últimos carneiros suceder-lhes-há fatalmente marcharem com eles para o abysmo...» (R.B.P., in «Pontos nos ii» a 18/11/1886.)

O eleitor é como um rato que apesar de conhecer a armadilha, cai sempre na «ratoeira eleitoral» (Sebastião Sanhudo, in «Sorvete», a 28/9/1879), tendo como engodo o «carneiro com batatas» e o bom vinho, que o nosso povo se quer alegre. O acta eleitoral é como uma feira (R.B.P.. in António Maria, a 19/10/1879) onde cada partido monta a sua tenda (porque a barraca monta-a quando governar), chamando os eleitores pelo cheiro ou orientando-os como um bando de perus: «Para a ninhada regeneradora (partido oponente aos progressistas) ser grande, o galo do partido não tem mais remédio senão arrastar a asa às galinhas que põem ovos de ouro /…/ Ainda há circuitos em que os eleitores 'independentes' se levam à urna como um bando de perus.» (R.B.P. in António Maria a 16/10/1879.)

Se as tendas com carneiro com batatas são a atracção, o momento fundamental é a partida para o Poder. A feira envolve assim o Hipódromo onde cada partido aposta no seu Jokey, mas, seja quem ganhe, o político fica sempre de pé, e o Zé... Já dizia Raphael que a política era uma senda escabrosa por onde passam os políticos interrogando-se: «Ora porque será que ele cai (o Zé) e nós ficamos sempre em pé:» (António Maria a 23/10/1879.). Mistérios do mundo eleitoral ainda por resolver.

Entretanto perdeu-se a moda de voto por carneiro com batatas: «Então, vizinha, que há de novo? - Tudo de mal a peior! O meu António até está arriscado… a ir votar de graça! Uma coisa assim!» (J. Costa in Alfacinha a 3l/10/1882).

 


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