Saturday, December 05, 2020
Caricaturas Crónicas - »O PORTUGAL CARICATURAL» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 8/12/1985)
«- Teve uma syncope! »
«- Já
o despimos, até lhe tirámos a camisa, para facilitar a circulação ... e não
recupera os sentidos. É capaz de nos
ficar nas mãos!»
«-
Entretanto vamos todos endireitá-lo, que está muito torto.»
«-
Não puxem da direita!»
«- É
da esquerda que empurram ....»
«-
Afrouxem lá de cima!»
«-
Aguentem de baixo ...»
«-
Não tem senão ossos e está todo desengonçado. O melhor é esfolá-lo e encher de
palha a pele. Bem empalhado, se lhe dará vida nova.» (M. Pinto, in
"Charivari» a 25/4/1891).
Qual
espantalho o têm transformado os nossos governos e seus desgovernos, as suas
alianças e desalianças, os empréstimos de penhora... e assim aos olhos do
caricaturista, Portugal apresenta-se em sincope crónica.
Em
1847, Cecília no Supl. do "Patriota" (27/9) dá-nos uma das primeiras
interpretações caricaturais do nosso país - descreve-o como um esqueleto
despojado de vestes e carnes, pelos agiotas. Na altura ainda não havia o FMI,
mas em todos os tempos e locais existem entidades caritativas para o
desenvolvimento dos países. Contudo, nos contratos dos empréstimos nunca fica
definido onde se provoca o desenvolvimento, se no campo económico, se na
dívida.
Em
1848 o mesmo Cecília (in «Patriota» 17/9) já nos apresenta Portugal tal como um
burro carregado de albardas. Claro está que tudo isto é uma simbologia
cadastral, numa localização zoológica, ou seja, como identificação do nosso
país como uma das raras reservas especializadas naquele espécime animal. Porém,
algumas pessoas mal intencionadas interpretam o burro como o português pronto a
obedecer a qualquer almocreve nacional ou estrangeiro, mas sempre teimoso em
não tomar o caminho do progresso.
A
albarda, nesse desenho, é o símbolo da
nossa riqueza, e nossa força. Riqueza pela abundância de albardas (já que não
temos outra coisa); força porque mesmo com oitocentos anos aguenta às costas
tanta simbologia de trabalho, e sempre pronto a aguentar muito mais. Mais
tarde, as más-línguas dirão que o burro é o povinho, e que as albardas são os
impostos, juros e décimas que lhe lançam no costado.
De
qualquer modo, é preciso esclarecer que, se por vezes o caricaturista
transforma a imagem do Zé num burro, é como gesto humanitário e pudico. O
Governo, por necessidade patriótica, penhora-lhe muitas vezes a camisa e a
pele. Ora, entre mostrar um Zé em pêlo, ou um burro, é preferível o último, não se vão ofender virtuosos olhos.
Nesse
mesmo ano de 1848 um anónimo desconhecido (já que Cecília era um anónimo
conhecido, apesar deste desconhecidos ser provavelmente o mesmo desconhecido
Cecília - in «Patriota» 22/10) cria uma pequena alegoria com a tourada,
mostrando o nobre Portugal a ser toureado, a ser farpeado por políticos
nacionais e estrangeiros (que isto de hospitalidade vem de longe). O povo
entretanto observa deliciado a perícia dos cavaleiros. Uma das razões por que
ainda hoje não se mata touro na arena, provém do mau exemplo para possíveis
simbologias, provém do perigo que seria o caricaturista simbolizar a morte do
País. Farpeado, pegado, domado ainda vá lá, porque isso já está na nossa massa
do sangue, mas morto não.
Em
1849, outro Anónimo («Patriota» 2/1) apresenta Portugal como uma nau à deriva
em plena tempestade. Uma imagem bonita deste povo de marinheiros sem frota
pesqueira, deste país que vive na água que os políticos metem. Na verdade somos
marinheiros por essa mesma razão, para não nos afogarmos na nossa política
intestinal.
Depois
de 50, os anónimos cansados de tanto clamar no deserto deram lugar aos
assinantes, já que a lista classificada
é meio caminho andado. Mas estes poucos trouxeram de novo o mais importante
símbolo nascido dos assinantes, apareceu em 1875, e baptizado com o nome pomposo
de Zé-Povinho.
Portugal
manter-se-á sempre como um velho esquálido, mas perante tal imagem degradante,
o caricaturista envergonhado apresenta um jovem Zé, mesmo em pêlo ou esfolado
como o povo português, como o País em si. Simbiose compreensível, já que ambos
sofrem na mesma medida com as actividades dos nossos políticos, e com a amizade
dos nossos aliados.
Essa
amizade fez com que certos povos (ou investidores) afirmassem que o
«Zé-Prometeu» (R.B.P., in «António Maria», 24/3/1881) certos favores nas
colónias (industriais e comerciais), na isenção de impostos, em conclusão,
facilidades. Mas, mesmo jurando que não prometeu nada, continuam a devorar-lhe
o fígado.
Esfolado
e empalhado; albardado; quase afogado; debicado... tudo isso pode ser, mas que se
lembre o diabo de tentar matá-lo, porque então coiceia, investe de cornos no
ar, e manda uns tantos Miguel de Vasconcelos pela janela fora. No caso dos
vivos adormecerem. Stuart gritará de novo: «Mortos de pé, que os vivos estão de
cócoras!»