Wednesday, December 02, 2020
Caricaturas Crónicas - «Bernardo Marques e o expressionismo português» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 17/11/1985)
Com traço corrosivo, desvendou uma sociedade decadente e hipócrita, uma sociedade provinciana que se julgava europeizada pela fachada mundanista. Quando tratava o povo, era romântico e nostálgico, traduzindo-o numa delicada caligrafia algo impressionista.
Entre a cidade e o campo há uma barreira de
ingenuidade; entre a provincia e a capital, uma diferença de hipocrisia. Muito
se tem humorizado com o «saloio» que vem á cidade e aí, fascinado pela
«civilização», perde não só a dua ingenuidade, como a simplicidade.
Algumas vezes
se tem satirizado o «civilismo» citadino que numa fachada cosmopolita tenta
disfarçar o seu provincianismo. Grande satírico da cidade foi Bernardo Marques.
Bernardo Marques era um algarvio de sines, nascido em
1899 que, após os estudos liceais na sua terra natal, veio para a capital
estudar na universidade.
Quando aqui chegou, a irreverência futurista já se
tinha diluído em mundanismo. Já tinha morriso Amadeu de Souza-Cardoso e Santa
Rita Pintor. Christiano Cruz, um dos principais obreiros do modernismo via
humorismo, partia em breve para as áfricas tratar da saúde à bicharada, que a
de cá já não tinha salvação. Para os modernistas da primeira geração só havia
como saída a imigração, ou a moderação irreverente, acomodando-se a uma sociedade
que requeria mundanismo e decorativismo.
Foi neste mundo de pseudo-europeização que Bernardo
aterrou. Vindo para cursara universidade, conheceu as tertúlias modernistas,
cujo convívio o iniciou nas artes, bebendo as suas primeiras influências do
traço de Christiano Cruz e seu expressionismo.
Chega a Lisboa em 1918 e expõe, pela primeira vez, em
1920 na terceira e última Exposição dos Humoristas, em Lisboa. A partir de
1921, começa a trabalhar em periódicos, primeiro como humorista, depois
conciliando com a ilustração, acrescentando mais tarde a tarefa de director
gráfico.
Partindo da influência expressionista, tempera-se como
uma profunda ironia romântica. Com alma de «provinciano», observa esta
sociedade com um distanciamento e uma veracidade que a desnuda pela sátira, sem
contudo a deixar de observar com um quê, de romantismo e ironia. Conjugaria o
mundanismo satírico com o populismo pitoresco.
Quando trata o povo, os bairros mais antigos povoados
por uma casta orgulhosa e pitoresca, um povo provinciano que se orgulha da sua
horta ou das suas raízes, ele é romântico, nostálgico num lirismo trágico,
traduzido numa delicada caligrafia algo impressionista.
Quando trata a burguesia, esse povo provinciano com
ares de cosmopolita, é satírico, irónico, com a agressividade humorística a
manifestar-se em arabescos rápidos e expressionistas. Com traço corrosivo,
desventra uma sociedade decadente e hipócrita, uma sociedade provinciana que se
quer europeizada pela fachada mundanista.
Entretanto, como todos os artistas exilados nesta
margem da Europa, quis conhecer o que se passava nos centros das artes, e
partiu primeiro para Paris, e depois para a Alemanha. Neste último país,
contactará com maior profundidade o expressionismo alemão, sendo especialmente
atraído pela obra de George Grosz. Como fruto destes contactos, o seu traço
ganhou agressividade, principalmente nos temas da burguesia, do novo-riquismo e
uma certa aparência de alegoria no seu humor, talvez por influência de Chagal.
Poder-se-ia dizer que esta viagem marca a sua maturidade como artista.
De regresso a Portugal, ingressará na equipa que
António Ferro organizava, na sua campanha de «Política de Espírito». Nessa
equipa, trabalhará como decorador nos pavilhões de Portugal das Feiras
Internacionais; como decorador de montras na «política de bom gosto»; como
director artístico e gráfico, numa visão modernista «de bom gosto» no
«Panorama» (1941-1950), «Litoral» (1944 – 1945) e «Colóquio» (1959 – 1962);
como cenógrafo, fundamentalmente do grupo de bailado «Verde Gaio»; e fará
múltiplas ilustrações de livros.
Os anos passaram nesta diversidade de trabalho e o
amadurecimento transformou-se em envelhecimento, não como decadência, mas como
amortecimento satírico.
Diz-se que foi a partir da sua estadia em Nova Iorque
(1939) que a agressividade abandonou o seu espírito e portanto o seu trabalho
como humorista (em «O Século», «Diário de Notícias», «A Batalha»,
«Civilização», «Contemporânea», «Revista Portuguesa», «Kino»….). Isto aconteceu
numa gradação que o levou, a partir dos anos 50, a pintar paisagens
nostálgicas, onde as personagens perdem importância ou desaparecem.
Predominando as paisagens campestres, o romântico modernista vencia com a
idade, o expressionista humorístico. Nesta dezena de anos, transformar-se-ia num
dos maiores paisagistas da sua geração.
Em 1962, morria um dos mais significativos
expressionistas do humorismo e do modernismo português.