Monday, November 30, 2020
Caricaturas Crónicas - «Carlos Botelho: o humorismo como “eco”» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 18/8/1985)
Todos o conhecem como o Pintor de Lisboa, conhecem as suas telas róseas, onde a cidade se transforma em cenografia. Mas poucos conhecem o traço fugidio que registava, com rara ironia, os «ecos» da sociedade alfacinha. Botelho viveu e retratou o invólucro e o interior desta cidade conhecida por Lisboa.
«Que me recebeu, foi o Pedro Bordalo, administrador, que era um homem muito atencioso. Eu levava uma folha com desenhos de crítica à vida de Lisboa. Ele viu, viu com atenção, e só me perguntou assim: você é capaz de fazer esta coisa todas as semanas? Respondi que sim. Fiquei vinte e dois anos no Fixe».
Assim nasceu um humorista. A sua arte de humor não era a mesma de seus companheiros, já que estes a procuravam fundamentalmente pelo traço caricatural, ou pelo lado da crítica política, enquanto ele a procura como grafismo como grafismo traductor de ambiências e de atmosferas sociais.
Claro está que estou a falar de Carlos Botelho, o lisboeta que nasceu em 1899 sob a direcção harmónica de seu pai, músico de profissão. Sob a tutela dele, crescerá aprendendo a conjugar as harmonias, as tonalidades mais adequadas para cada sentimento, os andamentos para cada tempo.
Começando por um vivace juvenil, passaria por um adágio da maturidade, terminando num harmonioso andante. O violino seria o seu companheiro nos momentos de lazer, e não os profissionais, já que estes foram dominados pelos pinceis e os lápis, os quais seriam os transcritores fundamentais das suas obras mestras.
Apesar das suas primeiras obras a serem expostas, serem a óleo, iniciaria a sua carreira artística pelo desenho, o qual estudou com o mestre Condeixa. Por essa razão, nos anos vinte, vemo-lo dedicado à ilustração infantil, à ilustração de revistas e livros, à cerâmica, às artes gráficas, ao cartaz e ao humorismo. Este último, a partir de 1928, quando disse «sim» a Pedro Bordalo. Um início de carreira através das artes gráficas, porque «começa-se sempre pelas artes gráficas por necessidade monetária e, além disso,elas abrem as portas da pintura».
A pintura só
viria, como dominante, um pouco mais tarde, enquanto o humorismo era a sua
ferramenta de descoberta: «A pessoa
interessa-me no humorismo, no “portrait-sinthése”, porque aí eu sou livre. Pela
caricatura nunca tive grande interesse. A caricatura é a anedota e não podemos
passar o dia a contar anedotas. Com o humorismo é diferente: é a crítica a
factos e situações. De resto, está perfeitamente integrado na minha maneira de
ser, porque me interesso sobretudo pelos ambientes: na pintura procuro traduzir
os ambientes das grandes cidades ou de populações; no humorismo é ainda o
ambiente que me interessa: a crítica à sociedade.
A sua crítica social ficaria registada durante vinte e dois anos, numa página do «Sempre Fixe», com o título de «Ecos da Semana». Aí, «fazia um apanhado do que se passava no país, com especial interesse por Lisboa». Uma página onde o desenho não aparecia como interesse formal, mas suporte, como «armação linear», a ironia reinava como crítica a uma sociedade que desejava parecer mundana, quando era provinciana, que desejava ser aberta, quando a censura reprimia.
No seu trabalho semanal, Botelho foi tipificando esta sociedade alfacinha numa série de formas de estar. Assim, encontramos no seu desenho crítico o: «Parece-mal» - a crítica ao falso moralismo tipificado no indivíduo de fato e gravata, como fachada civilizadora e que vai caracterizar os subservientes do Estado Novo; o «Escarre-cospe» - a Lisboa porca onde a salubridade é posta em causa por actitudes grosseiras, numa sociedade dita civilizada; «D. Encrenca» - a senhora bojuda que só complica a vida, representando o espirito intriguista do nosso povo, em especial da mulher citadina; «Arrepanhadas» - «inspirado nos penteados das senhoras refugiadas (da II Guerra Mundial) que não tinham dinheiro para ir ao cabeleireiro e criaram uma moda de penteado: arrepanhado»; … mas de todos se destaca o «Piu», «o mocho que ocupava o espaço dos desenhos censurados». Desta forma, Botelho criava uma simbologia crítica à falta de liberdade de imprensa, um símbolo da inteligência que se opunha ao obscurantismo, que significava a castração das ideias.
Entretanto, após uma viagem a Paris, “descobre” a pintura e Lisboa (1930), uma cidade cenográfica onde as pessoas perdem o valor, sendo substituídas pelo seu espírito, pelas ambiências, pela ingenuidade - «…o mais importante é a atmosfera, a ambiência, a transparência, são os planos… As pessoas estão lá em espirito».
Outra característica da sua Lisboa é a cor rósea - «Lisboa, cuja situação geográfica, caracterizada pelas suas sete colinas caprichosas, em que as casas encostadas umas às outras se descobrem mutuamente, como cartas de jogar, em que os pregões das vendedeiras, integradas na sua paisagem, são alegres e ingénuas- não pode ser uma cidade de cor amuada». A cor de Lisboa, um cavalo de batalha de Botelho, que lutará pela alegria para a cidade.
Carlos Botelho, pelo desenho ou pintura, pela crítica à sociedade, ou cenografia da cidade, retratou Lisboa ao som do seu violino: «Todos os dias desenho ou pinto (é a minha razão de ser), isto entremeado com uns bocadinhos semanais que faço de música de câmara (como violinista), com o meu grupo de amigos, todos amadores como eu». Porém, o seu violino daria a sua última nota em 1982.
PS: Todas as citações de dizeres de Carlos Botelho foram recolhidas presencialmente pelo autor, em encontros com o artista no seu atelier.