Sunday, November 29, 2020

Caricaturas Crónicas - «Francisco Valença: um jornalista gráfico?» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 21/7/1985

Os seus primeiros desenhos, apesar de seguirem o traço de Raphael Bordallo Pinheiro, não o seguiam quanto ao espírito, já que estavam imbuídos de uma sátira agressiva, que o levou várias vezes ao Governo Civil.

 

«Eis o Espectro. Nesta hora tremenda, hora talvez fatal, há quem graceje como em pleno Carnaval» (F. Valença in «O Espectro» nº0 de 18/5/1925)

Gracejar com a vida no dia-a-dia, fazer crónica de humor gráfico com as aventuras e desaventuras da política, com as relações, os acontecimentos, a forma de estar na vida social, é a profissão de homens ligados aos jornais, mas que não são considerados como jornalistas. Jornalista é o indivíduo que trabalha as notícias das aventuras e desventuras da política; das relações e acontecimentos da sociedade para os jornais. Então, o que são estes cronistas gráficos? Nas artes, são conhecidos como caricaturistas, ilustradores de humor, cartoonistas, enquanto que… no sindicato dos jornalistas não são conhecidos.

«A caricatura, seja ela pessoal ou política, fantasista ou anedótica, constitui uma expressiva e eloquente manifestação artística. Com uma vantagem: todos a compreendem, desde que não sejam cegos». Isto , segundo Valença, é o desenho de jornal, uma forma de fazer jornalismo eloquente e expressivo. Isto foi a vida de um artista que dedicou toda a sua vida á imprensa.

Francisco Valença é o seu nome e nasceu em Lisboa a 2 de Dezembro de 1882, em pleno período áureo da caricatura rafaelista.

Como já referi numa crónica anterior, a presença de Raphael foi como que um sol que ofuscou toda a experiência estética da ilustração humorística, e poucos conseguiram fugir à escola bordalliana. Valença não foi a excepção, antes pelo contrário, uma das mais importantes vozes dessa escola, perdurando esse traço barroco-naturalista até meados do nosso século.

Os seus primeiros trabalhos saíram no «Chinelo», um jornal que ele próprio fundou e dirigiu em 1900, mas que só publicou 11 números. Nesta altura era facto corrente cada artista criar o seu jornal na tentativa de triunfar junto ao público, o que provocava um constante rodopio de falências e criação de novos títulos. Estes seus primeiros desenhos, apesar de seguirem o traço de Raphael, não o seguiam quanto ao espirito, já que estavam imbuídos de uma sátira agressiva, que o levou várias vezes ao Governo Civil.

Depois do «Chinelo», colaborou em jornais como a «Comédia Portuguesa», «Gafanhoto», «Supl. de O Século», «O Moscardo», «O Mundo», «A Capital», «Diário de Notícias», «Tiro e Sport», «Sátira», «Ilustração Portuguesa», «Espectro», «Arte Musical», «Alma Nacional»… mas de toda esta profusão de colaborações , três obras se destacam:

Em 1909 Valença inicia a publicação dos «Varões Assinalados», um álbum de glórias com caricaturas a cores publicado em forma de folhas soltas mensais. Uma edição de qualidade que durante três anos apresentou uma série de individualidades nacionais caricaturadas pela pena de Valença e escrita de insignes escritores.

«O riso como o bocejo… e a tinta de copiar são comunicativos. Rimo-nos nós, vós e eles. Foi tudo “raso” com “riso”. E foi assim que a nossa “graça” caiu nas “boas graças” de toda a gente. Até a sisuda e ilustre Sociedade Nacional de Belas Artes, influenciada pelo nosso bom humor, vae modificar e actualizar a sua legenda bíblica “No in solo pane vivit homo”. D’ora avente a Vénus de Milo será substituída, no papel timbrado, pelas três graças, levando em português esta legenda correcta e aumentada: “Nem só de pão… de milho vive o homem, mas das palavras… do Catálogo Cómico”». São palavras de Carlos Simões, o colaborador de outra das obras insignes de Valença: os Catálogos Cómicos das Exposições da Sociedade de Belas artes. Estes aparecem pela primeira vez em 1913 e prolongaram-se por mias de dez anos. Nestes catálogos os quadros expostos eram satirizados pelo desenho de Valença e palavra de Carlos Simões.

Por ultimo, em 1926 apareceu o «Sempre Fixe», o jornal de humorismo mais importante do nosso século, e Valença assumirá um lugar de destaque neste periódico. Se por vezes a sua obra passou despercebida em jornais anteriores, neste dominará as primeiras páginas, travando um certo modernismo dominante nos jovens desenhadores (que publicam no interior), investindo numa melhor qualidade gráfica do seu traço, ou numa maior concentração do comentário ao dia-a-dia, trabalho que realizou até à morte, em 1959.

Se no âmbito estético, a influencia de Raphael foi castrante, impondo-lhe o “gag” de natureza literária, com um estilo de traço fixado desde as suas primeiras obras, no humor após as primeiras experiências satíricas caminhará para uma ironia discreta (mais a gosto de Raphael) para a crónica humorística de um comentador do quotidiano. Um trabalho de tantos anos que lhe deu a técnica perfeita da notícia necessária.

Francisco Valença, como outros artistas seus companheiros que antes dele e depois dele dedicaram uma vida aos jornais: «Trabalho até quando os outros descansam aos domingos; pode tudo desertar, mas eu tenho de ficar debruçado sobre uma mesa para o “Sempre Fixe”». Será que poderão ser considerados como jornalistas?


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