Sunday, November 29, 2020

«História da Arte da Caricatura de Imprensa em Portugal- 1933» Por Osvaldo Macedo de Sousa

A CARICATURA DURANTE O ESTADO NOVO

1933 

Esta data, no âmbito da história da caricatura não tem qualquer significado especial, como já referi no volume anterior. Esta escolha é imposta por via ditatorial, por vida política do país. Com a publicação da nova constituição nasce um novo regime, institui-se uma nova ordem social.

Essa nova ordem impõe uma monocromia, não só para as esquerdas, como para as próprias clivagens de direitas, sendo diversos dirigentes fascistas afastados da capital, em exílios temporários dentro do país, ou perseguições a órgãos de comunicação, como o jornal "Revolução" do Partido Nacional-Sindicalista de Rolão Preto. Este último, chefe da extrema-direita dos camisas azuis, será perseguido, e afastado da política. Para melhor harmonizar esta monocromia ideológica e cultural, é criada a 25 de setembro o Secretariado de Propaganda Nacional, que tem como responsável António Ferro.

Contudo a oposição mantem-se activa, apesar de constantemente fracassada, como é o golpe militar de Bragança a 27 de Outubro.

A caricatura se vivia por um lado, um período mau, tendo que se restringir na liberdade de expressão e irreverência, vivia por outro lado um bom momento estético e satírico.

Um bom momento satírico, porque apesar de estar já vigente a censura prévia, esta ainda tinha muitas frinchas por onde o humor, a ironia, mesmo a sátira se escapavam, e tornavam o humor mais agradável. Era um jogo entre a inteligência criativa e a estupidez política. Um jogo entre o léxico da língua e as limitações culturais dos censores. Este jogo irá endurecendo ao longo de toda esta década

Um bom momento estético, porque ainda vivia no limiar da decadência da primeira e segunda geração modernista, com obra de Almada, Barradas, Soares, Emmérico, Marques, Stuart, D. Fuas… Que tinha um novo balanço com a terceira geração, pela obra de Botelho, de Lemos, + Além, Tom, Teixeira Cabral… Não esquecendo académicos, como Francisco Valença, Alonso, Amarelhe… que prolongavam na imprensa nacional a sombra do raphaelismo, como fórmula de jornalismo satírico actuante, e irreverente bem ao gosto nacional.

O certo é que o humor gráfico ainda se mantêm na linha da frente da vanguarda nacional, ainda se mantêm em alta na irreverência e criatividade intelectual do país. Como curiosidade, encontrei uma notícia que durante este ano, se verificou em Vigo um Salão de Humoristas Portugueses e Espanhóis. Para além desta referência, não encontrei mais informações, por agora.

Em relação à imprensa, também não nos podemos queixar. É certo que continuamos a encontrar tentativas de sobrevivência falhadas de alguns jornais humorísticos, como é o caso deste ano de 33 com o "Maria Rita" ou o "Pirolito", curiosamente ambos do Porto, encontramos como contraponto "Os Ridículos" e o "Sempre Fixe" solidamente estabelecidos. No Funchal sobreviverá, durante alguns anos, o "Re-nhau-nhau", um trimensário humorístico dirigido por Gonsalves Preto, e onde trabalharão o artistas gráficos Malho (Manuel Rodrigues), Teixeira Cabral, Ivo… e onde iniciarão a sua carreira os jovens João Rosa e Paulo Sá Braz. Este jornal tinha a particularidade de ser quase artesanal, já que não havendo técnicos de gravura na Madeira, eram os próprios artistas que se encarregavam de desenhar, depois passar para a madeira ou linóleo, paginar, etc.

Por outro lado, toda a imprensa noticiosa já se convenceu da importância da existência de um espaço gráfico ligado ao humor nas suas páginas. Essa colaboração não terá um peso constante, verificando-se momentos de grande colaboração dispersa, como o desaparecimento de qualquer colaboração, ao mesmo tempo que vão tentando mudar a perspectiva de colaborações a avulso, para terem um colaborador mais permanente, um humoristi que se manterá como imagem gráfica dessa publicação.

O maior problema dos humoristas portugueses não será propriamente o espaço de publicação, mas espaço para as suas colaborações. É que a partir da década de vinte vamos encontrar um crescente de presenças de trabalhos de artistas estrangeiros. Primeiro foram os espanhóis, os franceses, para agora sermos invadidos pelos ingleses e americanos, através das Syndications que colocam os trabalhos dos seus associados por um bagatela, em jornais de todo o mundo. O preço a que os jornais compram esses trabalhos inviabiliza qualquer concorrência nacional. A salvação dos artistas portugueses é que esses artistas estrangeiros não faziam caricaturas dos portugueses, não comentavam o dia a dia típico do português, obrigando os nossos jornais a complementar essas importações de entretenimento, com ilustrações de âmbito mais nacional.

Mas como referi atrás, os jornais que dominam o mundo gráfico-humorístico destes anos, são "Os Ridículos", e o "Sempre Fixe". No primeiro, encontramos a presença dominante, quase ditatorial de Alonso. No segundo, quase todos os que a este campo se dedicam com qualidade, ali têm espaço. O "Sempre Fixe" será, inclusive o bastião do modernismo humorístico da terceira geração, com presenças marcantes como a de Carlos Botelho, de Almada, Stuart… contudo o académico Francisco Valença, por ter a quase exclusividade da capa, pelo seu peso satírico, impõe-se não só como imagem de marca daquele periódico, como destes anos de ditadura. É um reinado respeitado e homenageado por todos, como por exemplo pelo jornal "O Diabo” que a 31/3/1935 escreverá : Francisco Valença é um artista que põe sempre na sua arte uma intenção social. Poderão objectar-nos que toda a criação do espírito tem, ou pelo menos, deve ter significado social. Todavia, nem sempre esse intuito se verifica, mormente, numa modalidade artística em que o humour parece, para pessoas pouco perspicazes, constituir desprendida superficialidade.

Os desenhos de Valença, sem seus pormenores satíricos e factos e homens merecedores de correctivo, são admiráveis lições ministradas a pessoas sisudas.

Ao contrário do que muita gente pensa, a caricatura é uma arte séria. Dizemos isto sem ar pretensioso de paradoxo, ou de fútil intenção de facécia. É na deformação do traço que o verdadeiro caricaturista procura corrigir tanta coisa disforme que observa nas sociedades e nos indivíduos. É essa maneira de interpretar que torna a caricatura uma arte tão profunda que só ela consegue reunir esta dualidade humana: o riso e a tragédia. Nesta há sempre esgares de fossa, como naquele se pode pressentir a dor que lhe anda próxima.

Não será, pois, a caricatura uma enorme obra de crítica traçada em estilo descuidado ? Há tempos estivemos folheando uma edição da Bíblia em … caricatura. Os versículos desse livro eram comentados, interpretados e reproduzidos… em desenhos caricaturais. Temos lido várias críticas escritas, ao citado livro. temos meditado sobre o que filósofos a tal respeito, têm escrito. Pois, confessamos: nenhum dos muitos pensamentos provenientes da fria análise crítica de tantos contraditores provocou em nós tão esclarecida revelação comentadora como a do artista que escreveu a Bíblia… em caricatura.

Este facto é mais que suficiente para justificar a seriedade da caricatura.

Francisco Valença é dos artistas que constroem. Os seus desenhos obedecem à missão elevada que se propôs: ad nihil redigere.

Por isso eles ficarão como valiosos subsídios documentando uma época de ridículos e de injustiças.


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