Thursday, December 03, 2020

Caricaturas Crónicas - «Sebastião Sanhudo: o contraponto bordaliano» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 5/1/1986)

Quando um sol brilha, todas as outras estrelas esmorecem. Quando uma cidade cresce como centro de um país, as outras transformam-se em maternidades de imigrantes. A imagem da caricatura do século XIX é esta mesma: o sol Bordalo Pinheiro governava o mundo do riso, enquanto a cidade de Lisboa, como centro governativo, económico e cultural, dominava o país. Para ela se dirigiam os artistas, em busca de trabalho ou de bolsas de estudo para o estrangeiro: os jornais aqui cresciam e devam um lugar de destaque aos periódicos de caricatura e humor.

O sol, na pena crítica de Raphael Bordallo Pinheiro, tinha reformulado a nossa caricatura, tinha estruturado a sua concepção e o seu génio crítico fazia a história política e cultural do nosso país. Mas, mesmo quando há um sol, as estrelas não deixam de existir e, naturalmente ele teve de deixar cintilar uma ou outra estrela, como M. Pinto, Almeida e Silva, Julião Machado…. Naturalmente, foi obrigado a dar espaço a artistas brilhantes como Celso Hermínio, Leal da Câmara…

Raphael e o rafaelismo dominaram, assim como Lisboa, mas apesar do lisboeta dizer como anedota que Portugal é Lisboa e o resto é paisagem, na maior parte das vezes os grandes de Lisboa são imigrantes provenientes da paisagem e, é nesta que se resolvem muitos dos conflitos nacionais.

O homem de quem vamos falar não é de Lisboa, nem nunca para cá emigrou. Não é um sol, mas não deixou de brilhar. Não é um artista genial, mas um humorista que sempre soube onde estava o seu público e quais os seus limites artísticos. Vamos falar de Sebastião Sanhudo.

Natural de Ponte de Lima, onde nasceu a 20/2/1851, dirigiu-se para o Porto em busca de trabalho para as suas mãos, que desde muito cedo demonstravam gosto e aptidões para as artes gráficas.

O Porto, que sempre foi a segunda cidade deste país, era como que uma aldeia nortenha acoplada a uma cidade-feitoria dos comerciantes nórdicos. Nesta simbiose, vivia num provincianismo com gostos e interesses estéticos independentes de Lisboa.

Sanhudo tinha vindo para o Porto como litógrafo, uma nova técnica de ilustração e impressão, que ele dominava com mestria. A par deste domínio técnico, ele desejava uma base estética, já que até esse momento nunca tinha tido mestres, nem orientadores, na sua livre expressão de traços. Por essa razão, procuraria a Academia Portuense de Bela-artes, onde permaneceria três anos. Como sempre acontece, verificou que a escola nada lhe trazia, sendo mais importante a prática e a sua observação.

A prática fê-lo passar à pedra, com total mestria, obras para impressão, fê-lo criar com o seu estilete magníficos retratos, que ainda hoje estão perdidos em sótãos de casas particulares.

O «PAE PAULINO» E «O SORVETE»

A oficina de litografia criou nome rapidamente, assim como a qualidade dos seus retratos. Desta forma tinha totalmente assegurada a sua estabilidade econômica e artística. Mas, algo lhe faltava – a exteriorização do seu humor. Tinha dinheiro, tinha oficinas próprias, tinha assuntos preparados nas suas tertúlias, só lhe faltava conjugar tudo na edição de um periódico.

Em 1877, aparecia no Porto o semanário de caricaturas «Pae Paulino», que mais não foi do que um primeiro ensaio para o jornal humorístico de maior longevidade no século XIX, e o segundo em toda a nossa história - «O Sorvete». Este jornal manter-se-ia nas bancas quase até à morte do seu criador, ou seja, durante vinte anos e, desapareceria simplesmente por velhice e cansaço do artista.

Em 1877 nascia pois o «Pae Paulino», o qual em 1878 mudaria de nome para «O Sorvete». A vida do primeiro jornal correspondia è média de longevidade dos jornais humorísticos que, fora de Lisboa, tentavam a sua sorte. A falta de qualidade ou a falta de compradores regionalistas lavava naturalmente à falência destes jornais, sendo preferidos os que vinham da capital. Sebastião Sanhudo, sabendo isso e, aproveitando o «Pae Paulino» como sondagem, estudo de gostos, soube encontrar a fórmula que o público portuense desejava, ou queria, nas suas leituras.

Abandonando a sátira mordaz e a crítica directa, Sanhudo conseguiu, sem intuitos estéticos superiores, comentar com graça e ironia a vida da sua cidade. O seu jornal, é uma crónica alegre, pitoresca do dia a dia de homens de negócios e da política, escrita pelo traço leve e hábil de um humorista simples e, porque não, provinciano, como significante de um olhar ingénuo, mas salutar.

Não foi um Bordallo na criação estética, já que o seu traço não era mais que uma caligrafia tradutora do seu comentário crítico. Não foi um Bordallo no comentário político—nacional, por opção do comentário fundamentalmente regional.

Contemporâneo de Raphael, Sanhudo soube fugir à sombra do mestre, apresentando-se como contraponto. Ele é a voz da cidade não lisboeta, ele é acrítica da sociedade não politiqueira. Contemporâneos de edição durante vinte anos, sempre se respeitaram e admiraram, como duas expressões possíveis do nosso humorismo, como um contraponto entre a capital e a paisagem.

 

 


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