Saturday, December 05, 2020

Caricaturas Crónicas - «Christiano Cruz: o mito na caricatura» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 2/2/1986)

A certidão de óbito dirá que morreu em 1951 na cidade angolana de silva Porto, esquecendo-se, porém, de dizer, quem a passou, que morreu para as artes em 1920.

«Nenhum desenhador me revelou ainda a beleza das coisas portuguesas e aqueles que o têm tentado, fazem-no com um critério tão mesquinho que a sua obra melhor caberia nos Arquivos da Torre do Tombo do que nas exposições de arte pura.

/…/ Eu sei bem que o público não sente a necessidade da arte, da mesma maneira que não sente a necessidade de lavar os pés. Mas as necessidades criam-se, e essa tarefa só nos pode caber a nós, dada a impossibilidade de mandar o meio, a Paris, educar a vista.

Façamos arte onde os nossos predecessores só têm feito arqueologia. Tratemos com largueza os gestos largos do cidadão Acácio, a vida do povo e o burguesismo.

Não façamos crítica, façamos arte! (in «República» de 22/5/1914).

Manifesto de um artista crítico e inspirado que exorta a arte como expressão estética de um sentir nacional, em concepções «modernistas» que são internacionais. Este é um manifesto de um mito que nasceu do nevoeiro, e nele desapareceu; um mito que aparece como um mestre, e assim desaparece. Falamos de um artista que ficou como a recordação de um nome: Christiano Cruz.

«Como notas biográficas, a mais interessante, a de maior relevo, é a minha certidão de baptismo; a outra, a segunda, pelo caminho que as coisas vão tomando, deverá ser a minha certidão de óbito. Assim, sempre te direi que nasci a 6 de Maio de 1892 na cidade de Leiria, tendo-me irrompido simultaneamente com o sarampo a neurastenia. Esse menino que tu advinhas linfático e triste, manifestou a sua vocação rabiscando na lousa extensos cortejos fúnebres de ultra-sintéticos personagens, marchando rígidos e aprumados como as figuras de um friso egípcio» (in catálogo da II Exposição dos Humoristas, 1913).

A certidão de óbito dirá que morreu em 1951 na cidade angolana de silva Porto, esquecendo-se, porém, de dizer, quem a passou, que morreu para as artes em 1920. Viveu 59 anos, dos quais apenas 11 seriam de expressão estética, de revolta contra uma arte e uma burguesia, contra um país velho e bolorento atulhado de botas-de-elástico.

Se esses academistas «dirigem» o País da capital, foi em Coimbra e Porto, por via das revistas »Gorro», «Farça» e «Águia», que Christiano aparece do nada, clamando por uma nova arte, e impondo-se como mestre.

Na verdade, não vinha do nada, mas como encarnação Hermínia (do Celso), A sua campanha ér, não só, contra o naturalismo em naftalina, mas também contra a mediocridade: «Não deixemos estiolar as nossas faculdades, ajudando a viver jornais pulhas, onde eu já vejo o prognóstico assustador de impotência criadora» (in «República» 22/5/1914).

Começando seus estudos em Leiria, cursa o liceu em Coimbra e aí reúne à sua volta, um núcleo de intelectuais-artistas, no intuito de fazer arte como expressão do seu tempo, arte como perspectiva do futuro, e não prisão do passado. Deste grupo destaca-se, para além dele, um excelente desenhador e caricaturista, de nome Fernando Correia Dias, o qual em breve partiria para as terras do Brasil, impondo aí esta visão sintética da arte.

Nesta fase, em que ambos seguem o mesmo percurso, a linha é o comentário da aparência, é o humor pela análise sintética do mundo, a estilização como representação caligráfica das estruturas humanas e sociais. Eles foram a nova expressão do modernismo, via caricatura, a irreverencia, via humorismo.

«Tem um parentesco esquisito este grande artista que, por haver a mais do que os outros um apurado instinto observando, parece distinguir-se como um sombrio e é no fim de contas o mais lúcido e sóbrio comentador da vida que aí anda. /…/ Só a vida o tenta, mas a vida no seu fundo grotesco e doloroso. /…/ Christiano encontra sempre almas a desvendar na sua crueza, sem rebuço. O mistério estende para ele as suas mãos sortílegas e assim, ao debruçar-se sobre a vida, alguma coisa que a maioria não descobre o deve atrair, pois quando se ergue, sempre em seus olhos radia um fogo de supervidência dominante, que é depois mas suas páginas a sedução perene dos que sentem» (Nuno Simões in «Gente Risonha» 1915).

Partindo da linha como estilização, passando pelo expressionismo, colaborando nas revistas e exposições de irreverencia humorística, manteve contudo um distanciamento vivencial que o marcava como espírito atormentado. Nunca deixando de estudar a animalidade, ele fez o diagnóstico às nossas artes, deixou a sua receita e desapareceu nas brumas de África.

Filho de uma década em mito, irmão no tempo e no desaparecimento do «maluquinho de Manhufe» falecido no início de uma arte; do irreverente que fez da vida a sua tela; contemporâneo do «Orpheu» e do futurismo, ele é também um mito dessa década. A sustentar esse mito, algumas obras de mestre e uma grande saudade e admiração dos seus companheiros.


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