Wednesday, January 12, 2022

«História da Arte da Caricatura de Imprensa em Portugal - 1950» Por Osvaldo Macedo de Sousa

1950

Coimbra ao longo dos anos tem criado um oásis do retrato-caricatural, já que desde o Enterro do Grau foi desenvolvendo, a par das Festas dos Estudantes, como a Queima das Fitas, Latadas… a tradição dos livros dos quartanistas, que mais não são que os álbuns de caricatura de cada fornada de doutores. Em todas estas manifestações o humor, a irreverência e o espírito satírico é o elemento presente e de união. Momentos há, como os actuais, que se passa a fronteira e a praxe, a irreverência, se transformam em má educação, em ordinarice e opressão fascizante.

"A Briosa" revista de Coimbra, em Abril deste ano de 50, dá-nos uma breve resenha histórica destas festas universitárias: «A Festa da Queima das Fitas é de boa e bizarra mocidade. É uma das mais interessantes tradições académicas.

Nunca foi uma festa de despedida a Coimbra e muito menos de Saudade, mas de galharda, reinadia e animosa mocidade. De final dum ciclo académico, com a Festa da Queima das Fitas se encerra o período, se poderá dizer, incerto, da vida escolar. Até ao quinto ano o estudante vai subindo na escala dum curso que teria a sua terminação breve ou seja um ano depois da «queima do grelo».

Então já o escolar das faculdades universitárias, está no limiar duma carreira que termina pela entrega das cartas de licenciatura, agora, e antigamente o célebre «canudo» de bacharel formado. /…/  A «Festa da Queima das Fitas» foi até à reforma universitária de 1902, que deu origem ao Enterro do Grau, festa académica a rivalizar com o Centenário da sebenta, conhecida pela Festa das Latas.

O In illo Tempore, de Trindade Coelho, dá-nos conta logo no primeiro capítulo , de tal festa, e onde deve ir buscar-se também a origem dos Cortejos nesse período escolar…»

Segundo o Primeiro de Janeiro de 21/5/1953, a Queima das Fitas, «têm de tudo, desde a grandiosidade dum cortejo alegórico, com manifestações de arte, crítica, sátira, à mais extraordinária nota dum folclorismo extravagante. /…/ Esta Festa dos estudantes, tem ainda um aspecto bem curioso a merecer especial interesse. É a sua parte literária vinda aos livros que se publicam nesse período e são de recordação entre os quintanistas, e de oferta àquelas pessoas  distinguidas com a consideração dos que nele figuram em caricatura e rimas a dizer das suas biografias. E muitas vezes tem saído obra digna de registo literário como o folheto de cordel - «Legendário de Quimeras» - do quintanista Pedro Veiga, publicado na Queima das Fitas, Universidade XXX - 27 de Maio - contendo a «Sinfonia das Cinzas. A Simbologia do fogo, A Féeria do Sol, de Coimbra - A Saudade», ilustrado pelos Artistas-Pintores: D. Diogo Reriz, dr. Manuel Monterroso, Carlos Carneiro, D. Fuas, J. Leitão e Pedro Olaio…»

No Primeiro de Janeiro de 27/5/1943 chama a atenção para os programas das Latadas, os quais «tinham o seu modo de crítica aos costumes académicos e para os seus versos vinham sempre chamados os elementos que mais se distinguiam nesse meio e época, dando-lhe lugar de relevo em espirituosas sátiras. /…/ Era um pretexto para nessa altura do ano os estudantes meterem-se livremente com os «lentes» e fazer à vontade a crítica do sistema de ensino universitário.»

Uma série de tradições estudantis ligadas à sátira e bom Humor, mas onde para nós se destaca o livro de Curso. Ainda não consegui descobrir qual foi o início da caricatura nos livros de Curso. No século passado existiam com fotografias, e as pranchas mais antigas que encontrei datam de 1903, onde pontua o célebre Pad Zé, um dos mais irreverente estudante da Lusa Athena (cujas caricaturas foram feitas, segundo investigação de José de Oliveira por Pedro Mireanda). Foi nessa altura que João Amaral desenhou os carros alegóricos, assim como os postais e livro do "Enterro do Grau". Depois encontra caricaturas de Emílio Martins, Isidro Aranha, Correia Dias, Luíz Filipe, Christiano Cruz, Cerveira Pinto, João Valério… Contudo, Carlos Santarém Andrade, Director da Biblioteca Municipal de Coimbra, não dá valor a estes artistas, como caricaturistas de livros de Curso, chamando a atenção para o facto de que «com as características de um verdadeiro Livro de Quartanistas, que se viria a afirmar como elemento essencial da Queima das Fitas, temos que esperar até ao ano de 1925, quando saiu dos prelos o livro do IV Ano Médico de 1924-25. António Alberto Dias Costa, desse mesmo curso foi o impulsionador da publicação e autor de todas as caricaturas dos seus colegas, que assinou com o nome de Alberto Costa… O exemplo iria frutificar.»

Nesta década de vinte iremos encontrar caricaturas assinadas por estudantes como João Carlos Celestino Gomes, José Videira, Alberto Costa, Cerdeira, Craveira, José António Mattos Chaves, Serôdio, Arlindo Vicente ou por profissionais como Armando Boaventura, Amarelhe, F. Valença, Teixeira Cabral … nos anos 30 Tom, Costa Pinto, J. Zamith, Pedro Olaio, Fausto, Brinca, Melos, Mário, Fernando Namora, Danton, Manuel Filipe, Arcindo Madeira, Rogério, Somar, (António José) Soares, Mário Oliveira… nos anos 40 Helder (que em 1942, com Betho realiza uma exposição na Casa Armando de Coimbra), A. Freitas, Rogério Ribeiro, M. Figueiredo, Roland, A. Monteiro, Ares (pseudónimo de António José Soares, que por vezes assinava Soares), Daniel Sanches, Mário Godinho, Isabel Maria, Domingos, Santana, Ary, , Armando Mourão, P. Carreiro, Sousa, Lobato, A. Luís, Gabriel Ferrão, Tossan (pseudónimo de António dos Santos), Pedro Homero, Quim Reis… para nos anos 50 irmos encontrar Zé, Robalo Cordeiro, José Oliveira, Baltazar, Guisado, Roxo Leão, Santiago, Batalha, Mário Dias, Célio, F. Zambujal, Perdigão… nomes que por vezes preenchem livros em várias décadas, regressando a Coimbra sempre que a Festa da Queima lhes proporcionasse algum trabalho temporário. Por curiosidade destacar Fernando Namora e Fernando Campos, dois estudantes que brilahram aqui na caricatura, mas que se celebrarão posteriormente nas letras.

Dos artistas que eram naturais de Coimbra queria por agora referir-me a dois nomes, ou seja Pedro Homero Trilho y Blanco (não confundir com Trilho y Blanco, que era o seu irmão) e Quim Reis. Sobre o primeiro escreveu Crespo Fabião na Homenagem de 1992, no "Encontrão" o seguinte texto: «Em questões de arte, o seu talento era polimórfico e multifário: todo ele um fogo de artifício, sempre pronto a disparar dos ângulos mais inesperados, e isso logo a partir dos tenros anos da adolescência.

/…/ Dotado em alto grau de fino sentido do humor - humor inteligente, humor "inglês" - mas visceralmente 'bom' (um 'bom' franciscano e simples), o seu lápis, embora intenso e inopinado, recusava-se a ferir de propósito.

Um crítico literário escreveria talvez que o Pedro nunca manobrava o estadulho camiliano; dedilhava a sorridente ironia queirosiana… Um tipologista perspicaz classificá-lo-ia possívelmente de "apolínio", pois conjugava o simples com o elegante e o equilibrado, produzindo aquela sensação ilusória, produzindo aquela sensação ilusória de facilidade que a natureza só reserva a certos artistas criadores….

Assim, se o leitor aprecia aqueles prazeres finos e subtis que se extraem da contemplação remansosa das obras de arte, seleccione alguns números de O Primeiro de Janeiro, O Riso Mundial, A Bomba, A Flama, O Século Ilustrado, O Pónei, O Pagode, A Briosa estudantil (de que ele foi Director artístico nos anos 50); alguns cartazes da Queima das Fitas (onde ele ganhava primeiros prémios); capas de livros ilustrados (com pequenas obras primas suas); e tantas outras publicações onde ele colaborou… Morreu de repente, em 1991, fulminado por um ictus absurdo…»

Trilho y Blanco, no mesmo álbum do "Encontrão" escreveu: «Joaquim Lopes Simões dos Reis, o célebre "Kim Reis" de mil e uma caricaturas espalhadas ao longo dos anos pelos vários livros da Queima, nasceu a 6 de Março de 1923. /…/ O Kim Reis não se chegou a licenciar, nem, por boa verdade, isso lhe interessava muito. Não tinha tempo. O Kim Reis amava apaixonadamente a vida de estudante, as noites de boémia, as festas da Queima e a sua Academia. Não tinha tempo para exames, frequências e outras burocracias banais.

Foi elemento preponderante do Orfeon Académico e do Teatro dos estudantes de Coimbra, durante muitos anos, e à sua sombra, correu mundo…

Era um emotivo e a sua sensibilidade e espontaneidade transmitia-as, inteiras, às suas caricaturas, de risco nervoso, negro, vivas como se fossem traçadas a sangue e nervos. Nesse aspecto era inimitável. Vivia a noite como nenhum outro. Talvez bebesse nela parte da sua inspiração… Kim Reis faleceu a 13 de Janeiro de 1986…»

A vida satírica, humorística e caricatural de Coimbra ainda está por fazer, e que maravilhoso álbum dava…

Em Lisboa o Sempre Fixe continuava a reinar, só que o tempo passa, as circunstâncias alteram-se, as pessoas envelhecem e cansam-se da labuta, da guerra fria e constante com a censura, e uma das páginas carismáticas do jornal deixará de aparecer. Falo dos "Ecos da Semana", que ocupava normalmente a última página, da responsabilidade de Carlos Botelho.

Já aqui narramos como este artista surge no jornal, e desde esse longínquo 1928, nunca Botelho falhou uma semana. Foram 22 anos e meio, ou seja mais de um milhar de "Ecos" (1.177 páginas que segundo contas de José-Augusto França preconiza cerca de 8.000 desenhos). Só uma vez o jornal não lha publicou… porque o correio atrasou-se, e a página enviada de Nova Iorque não chegou a tempo do fecho do jornal.

Como o próprio artista me testemunhou, «a pessoa interessa-me no humorismo, no portrait-sinthése, porque aí sou livre. Pela caricatura nunca tive grande interesse. A caricatura é a anedota e não podemos passar o dia a contar anedotas. Com o humorismo é diferente: é crítica a factos e situações. De resto, está perfeitamente integrado na minha maneira de ser, porque me interesso sobretudo pelos ambientes: na pintura procuro traduzir os ambientes das grandes cidades ou de populações; no humorismo à ainda o ambiente que me interessa: a crítica à sociedade.»

A sociedade era o tema da sua página de "Ecos da Semana", onde «fazia um apanhado do que se passava no país, com especial interesse por Lisboa». Na realidade não será só esta a cidade retratada, mais muitas além fronteiras, por onde Carlos Botelho viajava, e donde, impreterivelmente enviava a sua página. Os acontecimentos internacionais também não puderam deixar de aparecer, e onde o seu espírito democrático se revoltou contra as opressões, e cinzentismo que invadiu a Europa e Portugal.

Nos Ecos ficaram registadas as presenças de músicos famosos, políticos, desportistas, gente anónima… assim como ficções simbólicas dessa mesma sociedade rica em tipicismos castiços, provincianismos e más educações. Esses personagens da "Commédia dell'Arte" dos Ecos alfacinhas são: "Parece-mal" - a crítica ao falso moralismo tipificado  no indivíduo de fato e gravata como fachada civilizadora e que vai caracterizar os subservientes do Estado Novo; "Escarrecospe" - a Lisboa porca, onde a salubridade é posta em causa pelos maus costumes, numa sociedade dita civilizada; "D. Encrenca" - a senhora bojuda, que só complica a vida, representando o espírito intriguista do nosso povo, em especial da mulher citadina; "Arrepanhadas" - «inspirada nos penteados das senhoras refugiadas, que não tinham dinheiro para ir ao cabeleireiro, e criaram uma moda de penteado: arrepanhado…» ; "Píu" - o mocho que denunciava que a censura tinha intervido naquele número do Sempre Fixe. Era uma iconografia para iniciados, um código que ludibriava a própria censura.

Com estes anti-heróis, aliados a outros heróis reais a ironia de Botelho retratou em crítica uma sociedade que desejava ser mundana, quando era provinciana; que se dizia aberta à modernidade, quando se fechava em provincianismo nacionalista; que se dizia progressista quando a opressão censória calava  a inteligência.

Mas os "Ecos" não foram apenas uma página de crítica, mas também uma página de estética, de investigação plástica, e ninguém melhor que José-Augusto França para nos dar uma perspectiva desse trabalho (estudo publicado no álbum publicado pelo CAM em 1989: «o interesse de Botelho pelo seu trabalho tem altos e baixos e o entusiasmo do princípio /…/ foi diversamente vivido, ao longo dos anos. E o «estilo» gráfico dos desenhos pode mostrar-nos como.

Um desenho duro, procurando ainda uma maneira entre outras já definidas por camaradas mais velhos, o Barradas, o Stuart, o Almada, o Cottinelli, o Bernardo quase que também, amaciou-se ao longo de 1930, terceiro ano do folhetim. As figuras começam então a estar mais à vontade - para além da influência sensível de Kradolfer em páginas inteiras ou em estruturas de composição em viés, e a modelação dos planos que o mestre suiço trouxera para as artes gráficas lisboetas em 1927/28, ou no próprio «lettering», tudo num geometrismo cubo-expressionista germânico. Cottinelli também teve impacto sobre o jovem desenhador… em 1931 surgem… sintomas inesperados de expressionismo que logo em 38 se afirmam - mas que não tem continuidade. Algo do Júlio presencista ali poderá ver-se, bem fora das linhas culturais do autor.»

Depois vai-se verificando um certo desleixamento plástico e irónico até ao final que se concretiza em Dezembro de 50. A 19 de Outubro, e pela primeira vez a censura corta totalmente os "Ecos", repetindo-se a censura complate a 7 de Dezembro, para a 14 surgir os últimos "Ecos" encerrando assim um página da História do humor português. Botelho parte então para outras aventuras plásticas.

Recentemente falamos das caricaturas de madeira de Piló, de Zé Penicheiro, de Tom, assim coma das caricaturas de trapo de Júlio de Sousa, mas este género satírico em terceira dimensão parece que teve mais cultores, como testemunham os artigos do Século Ilustrado de 10/8/1948, e Flama de 28/4/1950 e 6/10/1950, que falam respectivamente de Meco, Gaspar e Levy.

«Entre a plêiade dos nossos artistas da moderna geração que, sem pressas de celebridade e com o ar mais modesto deste mundo tem firmado o seu talento de desenhador-ilustrador, figura Meco, um nome que aparece com frequência nas páginas da nossa revista.

Original e revolucionário de processos sem o parecer, Meco é  um verdadeiro artista-criador, tanto na delicadeza do traço como na interpretação de casos e figuras que ele sublinha sempre com subtilezas de ironia e admirável intenção.

Humorista da melhor estripe, Meco dá-nos, agora, em nova faceta do seu temperamento artístico, uma série de bonecos de madeira que são um autêntico achado ! Diferentes dos estilos de tom e do Piló, apenas têm de comum a matéria prima, que Meco plasticiza com amorosidade, transmitindo-lhe a gama da sua personalidade inconfundível e emprestando a todos os seus personagens o ar sempre saudável de crianças grandes!»

No primeiro artigo da Flama diz «que apareceu um novo artista lá das bandas do Alentejo. Fazedor de bonecos, como Piló e Tomé, mas de processo completamente diferente. Chama-se João da Rosa Gaspar, e é conhecido simplesmente pelo nome de Gaspar…» (que vivia no Crato)

No segundo, o repórter afirma «sem sombra de exageros que os bonecos de madeira saídos integralmente das mãos de Levy são dos melhores - senão os melhores - que temos visto no género. Desde o caricatural «Ébrio», à curiosa «Fuga», tudo o que nos é dado ver é simplesmente admirável. Afinal, todos os trabalhos que admirámos e pareciam não ter fim, confirmavam a nossa opinião, e de boneco para boneco mais forte se tornava a nossa admiração por este verdadeiro artista.» (que segundo o artigo é da Figueira da Foz).


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