Tuesday, January 04, 2022

«História da Arte da Caricatura de Imprensa em Portugal - 1949» Por Osvaldo Macedo de Sousa

 1949

 

Dentre os artistas modernos, - escreve Dr. Virgílio Passos in "Sol" de 2/4/1949 - sobressai, no nosso País, a figura inconfundível de Júlio de Sousa.

Artista de forte personalidade, observa a vida criticando-a através de uma subtil ironia.

Os seus Bonecos são belas caricaturas dos personagens mais em destaque nas artes e no teatro, e que impiedosamente disseca para viverem na matéria plástica modelada pelos seus dedos.

O poder de síntese e expressão concentram-se no aspecto histriónico e burlesco dos caricaturados.

Júlio de Sousa, de ar melancólico e concentrado, fugindo do convívio, passa na vida como uma sombra, como uma estranha figura que observa e sente a humanidade, retratando somente nos seus bonecos, o ridículo das figuras.

O poder plástico do escultor aliado a uma subtil observação revelam no artista um profundo psicólogo das imperfeições humanas.

/…/ Júlio de Sousa, que concluiu o curso de escultor em Lisboa, encontrou a consagração nos bonecos de barro e de trapo, libertando-se assim do professorado que atrofia e estiola os verdadeiros artistas.

/…/ A primeira exposição de figurinhas de trapo que realizou foi no Teatro Nacional. Obteve um autêntico sucesso. Vendeu todos os trabalhos expostos.

Começou então para o artista um novo mundo. A sua actividade distribui-se, hoje, pelos Bonecos, Escultura e Pintura.

As suas figurinhas são-lhe sempre fieis e aos que as contemplam.

Mostram só uma face, a mais real, talvez, a mais feia, mas decerto a mais característica a que fica para a posteridade e para a história.

As personagens de artistas teatrais são as que mais abundam nesta Exposição do Palácio Foz, revelando o artista através da sua obra uma atracção decidida para o Teatro, mundo Fantástico de expressão, luz e cor onde todas as ideias e paixões se debatem a ganham foros de realidade…

Na realidade o mundo do espectáculo, era o mundo de Júlio de Sousa, seja como inspiração, como vivência, ou como atitude perante a vida. Artista multiforme na expressão artística, com exposições quase anuais, foi um artista admirado no seu tempo e injustamente ignorado depois.

Das suas criações, as esculturas de barros e de trapos foram certamente as que maior atracão atraíram. Já em 1937 (7/2 in "O Diabo"), Nogueira de Brito tinha chamado a atenção para estas esculturas: Todos os anos nos visitam esses simpáticos «bonequinhos» que Júlio de Sousa modela airosamente em barro doce. Já nos habituamos a eles e, quando se adianta a época das exposições de pintura, e não os vemos anunciados, tratamos de inquirir do motivo porque nos fazem ausência. Surgem-nos, agora, os «bonequinhos» alegres no seu comentário a figuras conhecidas, principalmente gente teatral. Júlio de Sousa afeiçoou o barro ao critério das suas mãos caprichosas e da sua ideia inquieta.

Diante de nós passa uma galeria de tipos minúsculos, muitos porque são grandes na Arte, nem pelas dimensões se tornam mais pequenos… O artista surpreende-os, de bom humor, na sua vida interior, nas suas actitudes para o Mundo, e não poupando defeitos e não procurando adulações, fá-los «mexer», vibrar, falar… Não sei se os escultorizados pela mão nervosa de Júlio de Sousa se darão por contentes daquela exteriorização, onde, por vezes, passam beliscões comprometedores, arrepios de troça ! Mas eles são assim mesmo, embora se não vejam, se não sintam como o barrista os deitou cá para fora. O escôpro do artista é, no entanto, compassivo, correcto, piedoso. O que é, porventura pouco lisongeiro a caracteres e a temperamentos adoça-se na ternura com que a reprodução é feita. A família dos bastidores, tão vária, tão amalgamada de expressão e de feitio, encontra no cinzel de Júlio de Sousa uma particular estima. Quando vi, interessado, a exposição que faz agora Júlio de Sousa, e em que me dominou a atenção a sua «bonecada» tive a impressão de que o artista passa os dias a as noites olhando os próximos a descortinar fisionomias, gesto a movimentos, atitudes. E nada escapa ao seu olhar perscrutador e nada foge ao seu cordealísmo satirismo.

Em 1941 a "República" (de 5/7) fala das "figuras conhecidas caricaturadas em Volume": A personalidade artística de Júlio de Sousa, que nos habituamos a conhecer pela rubrica de «Júlio» - sem mais nada… - é verdadeiramente complexa e extraordinária. Em cada uma das suas facetas, o espírito criador é chama irradiada numa projecção forte de talento. Pintor, escultor e agora «costumier», a sua arte é sempre enorme. Júlio é estruturalmente um artista, de delicado esteticismo e elegância de forma. Principalmente os seus trabalhos revelam especial poder caricatural, em expressões que dão a aparência de deformadas mas, são unicamente admiráveis formas psicológicas. Recorda-nos, a propósito, a sua recente exposição de «bonecos de barro». ricas modelações em que o ponto nevrálgico era sempre o sentido psicológico do caricaturado. Júlio é um escultor-caricaturista, de extraordinário poder plástico.

Agora, no átrio do Teatro Nacional, Júlio de Sousa presenteia-nos com outra modalidade do seu engenho: os «bonecos de trapo». O artista arrostou com uma enorme responsabilidade. O «boneco de trapo» pertence à chamada arte popular e desempenha, por vezes, funções nos domínios da etnografia e no folclore. Ultimamente, na Exposição do Mundo Português, tivemos ocasião de admirar a «arte de vestir» em bonecos representativos do Portugal pitoresco, observando ao mesmo tempo, o gosto e a elegância das respectivas indumentárias. Júlio para vencer, teria de encarar este problema de confronto - nem sempre admissível para o espírito dos artistas.

Como se saíu Júlio de Sousa do seu empreendimento artístico ? Parece-nos que da melhor maneira. Os seus «bonecos de trapos» não são modelos para os «costumiers», porque são pujantes demonstrações plásticas, em que a forma caricatural se casa bem com a interpretação psicológica. Os seus «bonecos» são, por isso, admiráveis figurinos morais de cada um dos caricaturados, observados através de uma rica modelação escultórica, a elegância do perfil, a minúcia peculiar e a linha de indumentária. No mesmo ambiente, Júlio concentra estes múltiplos pormenores.

/…/ Os «bonecos de trapos» de Júlio, bem pode dizer-se são notáveis criações de um grande caricaturista que modela com humor e critica com graciosa elegância.

João da Ega, in "Acção" de 2/4/1942 apelida-o de Artista raro, em que se entrechocam e cruzam as tendências mais diversas e os caminhos interiores mais antagónicos. Os seus bonecos de trapo são, decerto, caricaturas - mas, sendo caricaturas não têm «apenas» a deformação caricatural que estaria na base e na essência da sua razão-de-ser. Nada disso. Júlio é um poeta. Até quando faz caricaturas de trapos, Júlio faz poesia…

A Vida Mundial Ilustrada (de 6/5/1943) concede-lhe duas páginas, com o título "Júlio de Sousa a Alma dos Bonecos" - Adivinha-se uma sensibilidade diferente nos dedos que modelam estes bonecos: um tato apurado de artista que escreve tragédias e se ri delas, até as ridicularizar; um Charlot de espátula, a construir poemas - é o que é este Júlio de Sousa quando se vêem os seus bonecos - dá vontade de os escalpelizar, para lhes encontrar o coração a bater, o sangue a jorrar e a alma imaterializada, para lá dos trapos e do barro de que são feitos…

/…/ - E os bonecos de pano ?

- Comecei há coisa de três anos. De pequeno sempre achei maravilhosas as bonecas de trapo que se vendiam nas capelistas. Mas digo-lhe francamente: antes da minha exposição de bonecos de trapo, no Nacional, senti um certo medo do meio. Aquilo tudo, que eu tão bem sentia, conseguiria ser compreendido pelo público ? Afinal, parece que todos gostaram…

Júlio é um caso curioso nas artes, já que jogando no tradicionalismo nacional de fatalidade, de fado, consegue criar uma obra original de humor. Da sua tristeza faz sátira, da sua frustração de costureiro, faz caricaturas de trapos, da impossibilidade de ser escultura faz figurinhas de barro… tendo como pano de fundo sempre o teatro, ou a teatralidade da vida.

O teatro, desde Raphael que tem sido uma temática de inspiração dos caricaturistas, a após o desaparecimento de Amarelhe, diversos artistas tentam ocupar o seu lugar, como o Pacheco, Fred Santana, Manuel Santana, Fernando Bento, Jorge Rosa…

Este último apresenta-se em força este ano no Instituto de Alta Cultura Italiana, com uma exposição de magníficas caricaturas, que a crítica do Século Ilustrado descreve: Em pinceladas de colorido harmonioso Jorge Rosa sabe dar-nos com fidelidade assombrosa não só a expressão fisionómica - que por ser reflexo duma exteriorização de sentimentos tem o seu quê de análise psíquica - mas também a reprodução exacta de atitudes e gestos característicos, produto de extraordinário espírito de observação.

Se uns triunfam, outros desaparecem, e muitos são os mestres da caricatura que neste virar da década nos abandonam. A 10 de Agosto deste ano foi a vez de Luís Filipe, um dos introdutores do modernismo em Portugal. Tendo-se distanciado do meio artístico na década de vinte, para se dedicar à advocacia em Monção e Viana do Castelo, nos anos trinta ainda procurará recuperar um pouco a sua fantasia criativa e irreverente, mas apenas em âmbito local, realizando um exposição com caricaturas das personalidades de Viana, assim como será responsável por cartazes das Festas da N.Srª da Agonia. Passados trinta anos, Guilherme Felgueiras evocará desta forma (in "Cadernos Vianenses") o artista: Luís Filipe repartia a inteligência e o talento pela jurisdição e pela arte. Com a sua paleta prodigiosa, e vigor do seu lápis de apurado sentido crítico, prestigiou sobremaneira o sector das artes plásticas portuguesas. Dedicou-se jubilosamente à aguarela e à valorização do trajo regional, tendo algumas composições decorativas da sua lavra sido utilizadas, como elemento de atracção turística, em inspirados cartazes para as Festas da Agonia de Viana do castelo, e para as festividades do Corpo de Deus, ou «Coca» (combate entre S. Jorge e o dragão), «ex-libris» típico e sugestivo da vila monçanense.

/…/ Apesar do acolhimento sorridente que tiveram outrora as ilustrações zombeteiras de Luís Filipe, pondo em foco casos e tipos, com vivacidade, com graça e sedutora veia cómica, a sua figura inconfundível está longe dos fulgores da popularidade. Não tem tido, pelos seus contemporâneos sequer, o bem merecido preito de consagração.

Estando em maré de desaparecimento de humoristas, quase como testemunho fatídico de um país, de um mundo sem humor, e sem espaço para a irreverência, o Diário Popular de 29/10 testemunha-nos o desaparecimento de Albuquerque. Diz a nota necrológica: José Ferreira de Albuquerque morre ainda novo, apenas com 48 anos. /…/ Veio muito cedo para os jornais: em 1916, quando tinha pouco mais do que 15 anos. Os primeiros jornais em que prestou o seu concurso foram o «Século» e «A Época», presentemente «A Voz». O nosso estimado camarada, revelara desde muito novo apreciáveis aptidões para o desenho e foi na secção de gravura que se iniciaram os seus passos na imprensa. Em 1919 entrou para o «Diário de Notícias» e ali começou a sua vida de repórter. No «Diário Popular» começou como caricaturista e cronista taurino, passando mais tarde para a redacção…


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