Thursday, December 09, 2021

«História da Arte da Caricatura de Imprensa em Portugal - 1948» Por Osvaldo Macedo de Sousa

1948

 

Em Coimbra surge o jornal "O Pagode" - A «Vitamina-Riso» da Academia. Na sua apresentação, o editor Alfredo Camacho escreve: Muita gente tem querido saber o que é «O Pagode». Porque razão este grupo de colaboradores, unidos de há longa data, passa a conduzir uma publicação sem história nem tradições… Um dia diremos porquê.

Há muitas especulações, circula muita moeda falsa, posta a correr por moedeiros que vivem à custa da confusão e da falta de unidade ou de brio daqueles que não deviam consentir serem dirigidos por indivíduos que nunca puseram sobre os ombros uma capa e batina.

Não nos interessa medir forças com gente que está fora da nossa área de jurisdição e que, a nenhum título, pode ser considerada nossa rival

Quisemos criar o «O Pagode» com o fim exclusivo de podermos dedicar um número exclusivamente académico à abertura do ano lectivo;

Quisemos criar «O Pagode» para colaborarmos com a academia no esforço de recuperação do «team» da Associação Académica;

Quisemos criar «O Pagode» para que dentro e fora de Coimbra o público se aperceba da existência de uma Academia capaz de ditar uma publicação, sem a influência e exploração de entidades não académicas

A Academia de Coimbra não precisa de mentores, alheios à sua vida, na enunciação de palavras que soam como nossas…

Outra publicação humorística que nasce este ano é "O Mundo Ri", uma amalgama do Humorismo Seleccionado da Imprensa Mundial. É a onde do humor importado, quando os nossos se têm que calar, ou fazer humor com a inteligência em surdina. O nº 2 desta publicação esclarece-nos que era deste mesmo produto que o público ambicionava: Ao lançarmos a nossa revista estávamos certos da sua utilidade e (por que não dizê-lo ?) do seu ineditismo. Na verdade, não seria fácil supor que, num momento de graves preocupações, de sombrias perspectivas para todos os homens, em todas as latitudes, alguém pudesse demonstrar que… o Mundo ri. Essa revelação foi, por certo, uma das principais razões do êxito da nossa revista - êxito que assumiu proporções de uma grandeza que raras vezes se terá verificado.

Houve uma verdadeira corrida a "O Mundo Ri", a tal ponto que a nossa tiragem, como soe dizer-se, não chegou para as encomendas… Os nossos objectivos foram alcançados e o primeiro deles era provar - contra o estado de espírito geral, aliás justificado - que o medo, a "guerra fria" não são ainda senhores absolutos do mundo; que o espírito da livre e jocosa critica não foi aniquilado e que as melhores raízes do humor, da sátira, do sarcasmo subtil e quantas vezes construtivo continuam frescas e vicejantes.

Combatendo a vaga de pessimismo que parece tudo avassalar, nós, com "documentos à vista" - anedotas, contos, expressivos desenhos e caricaturas, alusões irónicas, referências mordazes aos mais diversos acontecimentos e às mais variadas figuras internacionais, em todos os campos - nós defendemos o direito à alegria, aquele precioso direito de que o poeta falava: "Riez, riez, car le rire est propre de l'homme"…

Mas nem tudo são alegrias, e a 4 de Agosto, os "Ridículos" noticia : A equipa de «Os Ridículos acaba de perder um dos seus mais antigos, dedicados e prestimosos colaboradores: o nosso prezado companheiro de trabalho Joaquim Guilherme dos Santos Silva (Alonso).

Professor de arte aplicada, em que se revelou um mestre apurado, conhecendo em pormenor todos os segredos da sua profissão, «Alonso» dedicou-se também à caricatura humorística e foi com ela que conquistou as esporas de oiro de artista consumado. Companheiro dilecto de Jorge Colaço, acompanhou-o durante toda a existência do semanário "O Thalassa", que conheceu período aureo na vida política portuguesa. Em 1914, em substituição de Silva Monteiro - outro companheiro que nos deixou profundas saudades - «Alonso» veio para «Os Ridículos» e por cá se conservou até que os olhos se lhe cerraram para sempre. Vai para três anos já um tanto achacado e compreendendo a evolução do jornal. cedeu o lugar de honra na primeira página de «Os Ridículos» a Stuart Carvalhais e passou àquela situação de «trabalhos moderados» que a idade prolongada e a saúde abalada tantas vezes justificam. «Os Ridículos» perdem com o desaparecimento de Santos Silva um dos seus mais leais servidores, que muito influiu na sua popularidade e expansão; os que por cá ficam sentem que perderam um amigo.

Existe uma incorrecção neste texto quando afirma que em 1914 Alonso veio substituir Silva Monteiro, já que este último se mantém em "Os Ridículos" até 1920, quando é definitivamente substituído. O que acontece nestes seis anos foi uma partilha de páginas entre os dois.

O Jornal de Sintra (de 1/8) na necrologia dá notícia da sua morte, já que este vivia nesta povoação, recordando que ele tendo nascido em Lisboa, contava 77 anos de idade /…/ Foi o extinto professor de desenho da escola Industrial de António Arroio, de que estava aposentado há 7 anos. /…/ Há 35 anos que colaborava no nosso prezado colega «Os Ridículos», onde só amigos e admiradores conquistou, tendo também colaborado muitos anos no «Século», na antiga «Paródia», «O Talassa», etc, etc.

O lápis inconfundível do Mestre Alonso só teve, quanto a nós, um enorme senão: ser manejado pelas mãos de oiro de um homem cheio de talento cujo maior defeito foi ser sempre excessivamente modesto. Uma modéstia nata que tocava as raias da timidez e que acarretou dificuldades e sofrimentos de toda a espécie ao gigante do lápis e da paleta, agora prostrado.

Em tempos foi convidado insistentemente, pelo saudoso artista Roque gameiro (Pai) para ir em digressão até ao Brasil, onde ansiavam vê-lo, conhecê-lo e admirá-lo. Pois Mestre Alonso, timidamente, nunca quis abandonar o seu cantinho pátrio, receoso do seu valor e do seu enorme talento - que o mesmo é dizer, duvidando de si próprio !

O Diário de Lisboa evoca o artista para além de conceituado professor, de criador de propaganda comercial e ilustração, as suas caricaturas tinham acentuado cunho popular, e deixa sátiras felizes aos acontecimentos, aos usos e costumes, quase sempre com espirituosas legendas, de marcada intenção.

Neste ano, não desaparece apenas Alonso, já que uma semana antes tinha falecido o grande Mestre Leal da Câmara, também em terras sintrenses. Acúrcio Pereira, no seu livro "Uma no cravo… outra na ferradura… " recorda o Mestre: 0 extraordinário artista que se chamou Leal da Câmara foi levado pela morte em 21 de Julho de 1948. Ainda o encontramos com amigos e admiradores numerosos. Só morrem aqueles que não souberam fazer da existência uma desassombrada jornada de luta e de beleza... Esse admirável artista continua, pois a existir na vasta e notável obra que nos deixou, e também o homem continua a ser 1embrado no coração de todos quantos o conviveram.

/…/ Leal da Câmara foi toda a vida um semeador de sonhos. As ilusões esfarraparam-se uma após outra, a mocidade fugiu, mas nunca uma alegria fagueira se esfumou naquele homem estruturalmente simples que em Portugal, em Espanha. em França, andou sempre a correr atrás das suas ideias. das suas fantasias, dos seus sonhos... Ele não ignorava - como diz um rude e são personagem de uma das peças dos Quintero - que " todos los outoños caén las hojas de las arboles y todas las primaveras vuelven - que um sonho derrotado aninha no ventre maternal a génese de outro sonho.

/…/ Sobrevivem em homens como Leal da Câmara, caricaturista, panfletário, boémio e vagabundo - tal Pierre Gringoire, o feitor dos «Mistérios» de Luís XII - zargunchando a bico de lápis, à direita e à esquerda, os vícios e os viciosos, os erros e as felonias, arrebatado e temeroso, arrogante com os poderosos, humilde, despido de orgulho com os pobres e os simples - aquele rapaz magro, trigueiro, de olhos negros e penetrantes, nariz adunco, que nas margens das páginas da «Marselhesa» jogava às escondidas com os polícias de formidáveis e ameaçadoras bigodaças e prometedor bengalão ou afiado chanfalho nas mãos grosseiras e bárbaras. A veia satírica irrompe como catadupa cega, ataca a lei onde falece a justiça, calcina como ferro em brasa, delira no arranque do ataque, fulmina como um deus do Olimpo e toda a mocidade estuante e aventurosa o leva a desafiar 1utas e a correr perigos. A sua gargalhada sonora ergue-se silenciosa e irresistível das folhas irreverentes e furibundas dos seus primeiros jornais, aquela gargalhada dos vinte anos, que não perdoa, mais contagiosa do que a chama ou a lepra. Do combate saem mutilados, exangues, convenções e preconceitos, disfarces de virtudes, espanta1hos humanos, ocos como bexigas de porco, enfeitados de «crachats» e de títulos sonoros. Nos bolsos do artista, independente e desassombrado, o dinheiro não faz ninho. Nem por um tesouro oriental ele seria capaz de trocar o direito de gritar a sua verdade, porque sabia bem que «não é a pobreza que entristece, mas os desejos cobiçosos».

E quando, um dia, Paris /…/ repara em Leal da Câmara e nos «Boulevards» se berra a 58ª edição de «Les Souverains» no «Assiette au Beurre» o artista, despreocupado e filósofo, ergue um pouco mais a gola do casaco e afasta-se sem vaidade, nem azedume, nem invejas, naquela alma bem portuguesa… e sem um cêntimo nas algibeiras rapadas onde enterra as mãos friorentas. Leal da Câmara foi toda a vida um grande semeador de sonhos. Era com eles que animava a labareda palpitante do inesgotável talento, era essa força oculta e enorme que ele ia buscar energias, ao macio luar do sonho que apurava a arte e robustecia a personalidade que Forain e Caran d'Ache não sombreavam. Vencera!

Este homem pacífico, que amara poeticamente a barricada dos jornais de caricaturas, que ouvira o estalejar da fuzilaria da sátira, que circulava entre o fumo da pólvora com a despreocupação de gavroche por entre os insurrectos da Taberna Corinto, volta, tranquilo a indiferente, as costas à cidade e vem abrigar-se nesta pacata e simplória Lisboa, tão linda no seu desarrumo, tão cantante, tão gárrula, tão matinal, a Lisboa que vivia em doce saudade no seu grande coração de exilado. Depois, enquanto os companheiros de luta de outros tempos, esquecidos do «san-culotismo», marinhavam, imponentes e solenes, as escadas ministeriais, não suspeitando que lembravam títeres, Leal da Câmara, isolado no conchego do atelier, arquitectava novos sonhos.

/…/ Esta aldeia da Rinchoa com seu donaire saloio e suas graças silvestres, foi o derradeiro abrigo do sonhador. Havia, afirmo-o com segurança, uma atracção para o espírito de Lea1 da Câmara neste aglomerado de casario. Leal, que trilhara mundos barulhentos e hiper-civilizados, não sofria de fartura, como o Jacinto da «Cidade e as Serras», mas não vou jurar que, como Zé Fernando, na sua primeira noite, na aldeia recolhida, embiucada na treva, não tivesse olhado o céu salpicado de estrelas, a piscarem luz e não tivesse perguntado, num murmúrio: - Ó Jacinto, que estrela é esta aqui, tão viva sobre o beiral do telhado?…

Por seu lado o Diário de Lisboa de 21/7 refere: Leal da Câmara era alguém no nosso meio artístico. Não foi um grande pintor, um modelador de formas clássicas; foi um renovador pelo traço, um precursor pela maneira, um homem de arrojada, ainda que limitada visão, apaixonado - quando além da sua tendência crítica - das belas coisas da arte, dos superiores e transcendentes motivos de encantamento.

Morreu esta manhã na sua casa da Rinchoa…

A morte não descansou este ano entre os humoristas, já que também este ano temos a notícia do desaparecimento de Cottinelli Telmo (1897/1948), um arquitecto de edifícios e sonhos, que espalhou a sua criatividade por múltiplos géneros. Como arquitecto, ficou célebre a sua planificação da Exposição do Mundo Português, do que ainda hoje persiste o Padrão dos Descobrimentos e a Praça do Império. Tristemente célebre ficou a sua prisão de Caxias, e muitos outros edifícios desenhou, como o Liceu D. João de Castro… Foi bailarino, musico, poeta, decorador, designer de selos, ilustrador infantil, em cuja actividade exerceu funções de direcção de imprensa, criou BDs… Participou na construção dos estúdios de cinema Tóbis Portuguesa, cabendo-lhe o lugar na história de realizador do primeiro filme sonoro nacional, "A Canção de Lisboa".

O humor gráfico surge como consequência das suas paixões pelo cinema, pela ilustração infantil, pela BD em periódicos como "ABC", "ABCzinho" (de que foi director), "ABC a Rir", "Fantoches", "Notícias Ilustrado", "Imagem", "Kino", "Jornal da Mulher"…

Desaparecem não só velhos caricaturistas, como jovens promessas de grande talento, como é o caso de Pacheco, que o Século Ilustrado de 13/11 noticia: Morreu o Pacheco. O Chico Pacheco, como era conhecido dos íntimos, finou-se agora, após doença longa e pertinaz, em Lourenço Marques. Ali o tinham levado a ânsia de uma vida melhor, a ilusão da conquista de novos louros para coroar a sua auspiciosa mas efémera carreira.

Pacheco era um caricaturista com aguçado espírito de sátira. As suas caricaturas pessoais eram a dissecação perfeita da personalidade dos modelos, além de constituírem plasticamente, ilustrações gostosas, de técnica segura.

Pacheco era, antes da sua partida para África, o caricaturista dos teatros. Através do seu lápis passaram, imensas vezes, as principais figuras da cena portuguesa, as «estrelas» do nosso teatro ligeiro e, enfim, todos os que no palco, davam relevo às representações em que figuravam. Tinha um pouco de boémio e muito de artista.

As «caixas dos teatros» eram o seu «atelier» e o seu mundo. Alegre, comunicativo, breve captava amizades, sublinhadas quase sempre por um nova caricatura a oferecer ou a acrescentar ao seu arquivo.

/…/ Pacheco, de seu nome Francisco Pacheco, era natural de Lagos e contava 25 anos de idade. Paz à sua alma.

Mas nem só de desaparecimentos vive esta época, já que novos valores se vão impondo, como é o caso da caricaturista Maria Almira Medina, artistas multifacetada das artes plásticas e das letras, que neste ano é galardoada com o 1º Prémio do Concurso de caricaturas de Gente da Rádio, organizado pela Casa do Pessoal da emissora Nacional.  O júri constituído pelo crítico de Arte Luís eis Santos, e pelos artistas Bernardo Marques e Carlos Botelho deliberaram atribuir o primeiro prémio a Maria Almira, e o 2º a Pargana, tendo sido também atribuídas 21 Menções Honrosas àquela artistas. Um facto de relevo, que para além da reconhecida qualidade do traço, é o ser uma mulher, algo raro nesta arte. Já encontramos diversas humoristas, ou caricaturistas em exposições, mas Maria Almira é a primeira a aparecer como profissional de imprensa, já que publica os seus trabalhos no "Jornal de Sintra", e onde era redactora principal.

Maria Almira Medina é natural de Tavarede (Figueira da Foz) onde nasceu em 1920, mas em 1926 os seus pais radicam-se em Sintra, onde fundarão o "Jornal de Sintra", que será a sua casa de escrita e desenho. Licenciada em Românicas, dedicar-se-á ao ensino, à escrita (tem publicados três livros de poesia), à caricatura, à cerâmica, à joalharia, à pintura com têxteis…

Apesar desta resenha histórica ser fundamentalmente sobre o humor gráfico, há momentos e personalidades, que por estarem ligadas ao humor nacional, não queremos deixar de referir, de homenagear.

Uma dessas figuras é Gualdino Gomes, que morre precisamente este ano, com 90 anos, e que Correia da Costa, no Diário de Lisboa de 10/9/1950, o evoca desta maneira: Raras foram as figuras do fim do séc. XIX e começos da. nossa centúria tão coerentes consigo próprias e plenas de nobre personalidade como Gualdino Gomes, o mais metódico boémio do seu tempo. Como que arrancado a um quadro de El-Greco e lembrando  por vezes uma figura hierática e bizantina, Gualdino Gomes foi simultaneamente um sagitário. um criticista e um Conversador cheio de sabedoria e de encanto pessoal. A cultura aliava-se à a exigência. O espírito irmanava com a ironia. Temperamento boulevardier, numa. viagem a Lutécia quando Paris era o centro intelectual e mundano do Mundo, matriculou-se na Faculdade da Inteligência e da Razão. E assim desde a sua mocidade, confinando a sua vida aos amigos, aos acasos da familiaridade e por fim director interino da Biblioteca Nacional , onde era conservador do quadro privativo, esse homem probo, cheio de carácter e de bondade inata, possuindo como um Cresus o «leite da bondade humana» de que fala Shakespeare derramou a mãos plenas um talento improfícuo e singular. A época em que viveu era assim. Dos fins dum século a um quartel de outro acompanhou tudo o que representava em  Lisboa a alma de Paris : as letras, a poesia, a. pintura, a flor astral do espírito mais puro e mais metafísico.

/…/ o seu carácter, a sua individualidade comentadora, por vezes implacável, mas sempre terrivelmente humana, a sua visão analítica perduram e perdurarão simbolicamente como um exemplo.

Sobrevivendo um pouco à sua senectude como Seneca, mas moço como um sagitário, as suas flechas nada mais eram no alvo da mediocridade do que razões de várias causas e consequentemente causas de várias razões. Soube rir e castigar.

Mota Cabral. num artigo sobre Gualdino. publicado há um ano. resumia lucidamente: «Não conheci quem tão bem conversasse, quem melhor manejasse o cutelo da critica ou o florete da ironia. De magreza acentuada, como que se afilava na agudeza dos comentários ou dos conceitos. /…/ Brilhante, mordaz comentador da vida literária, muito bem educado no trato oficial, foi temido e admirado…»

Por seu lado, Correia Marques (in "Acção" de 14/5/42) define-o como mestre na arte de contar, na dicacidade mordente e apropositada, na graça repentista do comentário. E acrescenta: é pena que Gualdino não escreva as suas memórias. Mas ele bem sabe que, se lhas pedem, é para se deliciarem com as suas anedotas e as sua troças. E ele anda na vida para se rir dos outros e não para fazer rir os outros. Afinal é ele quem tem razão…

O "Diário Popular" de 17/2/1943 nomeava-o como o último abencerragem duma geração irrequieta e viva, nimbada dessa doce alegria de viver, que animou o seu tempo e lhe deu, além de tudo, uma boa disposição de espírito que permitia pensar, rir, brincar, estudar e… ser bem educado.

É o mais antigo dos críticos falados e o mais consultado dos homens do seu tempo.

/…/ Com um acerado e delicado e finíssimo sentido artístico sabendo ver o teatro, ler o livro e ver a pintura ou a escultura, assim se prestigiou ao ponto sa sua opinião constituir a verdadeira verdade sobre o caso em análise, ou em crítica.

Em 1937, já Braz Burity tinha inventado um "Colóquio de Endoenças de "O Diabo" (de 4/4) com Sua Irreverência o Padre e Mestre Gualdino Gomes:

… E o Diabo entrou e abancou à mesa, de sua Irreverência Gualdino Gomes - Patriarca da Graça, da Ironia e da Facécia Alfacinha, Soberano Senhor da Resposta Pronta, do Dito Leve, da Piada Fina, Primaz da Crítica Falada, da Crítica Livre, da Crítica Inteligente, Cardial Diabo das Reputações Consagradas, das Glórias Oficiais, das Celebridades Académicas, - último Mosqueteiro da Boémia Literária do Martinho, derradeiro abencerragem da Tertúlia Intelectual da Porta do Mónaco - Relíquia Viva, Relíquia Ambulante, Relíquia Sagrada de todo um Passado de Facécias e Humoradas, lapidares na forma, cristalinas no conceito, às vezes ferinas na garra, mortífera nas toxinas, sangrentas na inclemência, mas sempre limpas, sempre honestas, sempre leais, sempre esfusiantes e sempre justas, na alada pureza da Espiritualidade, na irisada fulguração da Verdade e da Justiça...

/… / a crítica em Portugal, nunca, em verdade, se fez em letra redonda: mesmo no tempo em que se podia dizer tudo nas gazetas - a crítica fez-se sempre, nas tertúlias de cavaco, à porta das tabacarias, à mesa dos cafés. Na outra, na que vem nos periódicos ninguém acredita já: são valores entendidos, jogos com cartas marcadas - e o bom burguês, o honrado leitor que quer saber se vale a pena comprar este ou aquele livro, o bom espectador, que quere saber se vale a pena ir a este ou àquele teatro - como os raríssimos amadores de Arte que se arriscam a comprar este ou aquele quadro - estão-se nas tintas para o que se escreve nas folhas. Vêem aqui, tomam o seu café, põem-se de ouvido à escuta, ouvem uma laracha, pilham no ar uma bojarda - e formam o seu juízo. São os que pensam pela sua cabeça, os que formam a opinião pública.

Na realidade Gualdino Gomes foi um exemplo do humor vivo, do criticismo ironista do português, mas aqui com inteligência. Foi a caricatura ao vivo do género que Raphael cultivou no campo gráfico no âmbito do teatro, das letras, da sociedade… foi um paralelo da anedota de tertúlia que Stuart levou para a imprensa.

Contudo deixou escrito um livro "A cura pelo Limão", e com Marcelino Mesquita escreveu a revista "A Tourada". O resto ficou como tradição oral, como mito de uma época em que a vida era uma tertúlia.


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