Tuesday, August 03, 2021
«História da Arte da Caricatura de Imprensa em Portugal - 1947» Por Osvaldo Macedo de Sousa
1947
A exposição de Roberto Santos - escreve José Augusto França, in "Horizonte" de Junho 1947 - nos Restauradores, é, exageradamente até, aquilo que entre nós se classifica de «Popular». Popular no sentido de baixa exploração dos instintos daquela gente a que se destina e de lisonjeamento da sua incultura.
São perto de 100 desenhos aguarelados, duma
franca pornografia revisteira com um ou outro toque de grosseira galanteria e
que chegam até à obscenidade (nº88). Trata-se daquelas "obras" de
inclassificável gosto que alguns indivíduos não resistem à imbecilidade de
fazer mas que é uso (de boa decência pública) mostrar apenas clandestinamente
aos amigos da mesma espécie.
Meia dúzia de «ceguinhos» e de «mulheres
perdidas» compõem a nota imprescindível de sentimentalidade rasteira.
Quanto à aparência plástica da «obra» - não
valerá a pena falar na repetição de efeitos banais, nem, por exemplo, no
amassamento das caras das figuras.
E, para acabar a notícia, que se mencione
só, tristemente e sem mais comentários, as centenas de pessoas que passaram
pela exposição, que gostaram e que levaram lá os filhos e as filhas. Ah ! E
também muitos velhotes brejeiros e usados.
Mas quem é este Roberto Santos, que apesar de não ser apreciado por este crítico ligado às vanguardas, não passa despercebido, não é ignorado, antes merece referência num jornal da intelectualidade moderna de então ? Com um bom domínio do desenho e da cor, era académico na técnica, razão pela qual era mal visto pelos jovens vanguardistas. Apesar desse decorativismo técnico, conseguia pela irreverência humorística sobressair do leque dos artistas que dominavam os salões das Primaveras e Invernos do contentamento da sociedade de então. Por outro lado ele éra pintor, na essência da palavra, pois, segundo palavras de Luís de Oliveira Guimarães, ele pintava o que lhe encomendavam, seja uma parede, um prédio, como um quadro, um cenário, uma decoração de stand ou pavilhão, uma montra… Era um topo a tudo, já que a sobrevivência não era fácil, mesmo para um artista «Popular».
Nascido em Lisboa (1893/1955), realizou exposições não só em Portugal (1925, 1926, 1945, 46, 47, 49, 50, 54, 55) como em Angola, Moçambique e África do Sul. Publicou no "ABC a Rir", no "Primeiro de Janeiro"… O seu lema, como escreve nos seus "catálogos", O Humorismo é um Dom que deus concedeu a alguns, portanto instransmissível, mas transformado em quadros é vendável e… "Disso é que eu gosto"…
O seu humor era assumidamente popular, não no sentido pitoresco e erótico de Stuart, mas revisteiro, explorando a ilustração erótica art-deco que vendia as revistas como o "NewYorker", como vencerá no "Playboy"… Contudo com um humor mais nacional, mais terra a terra. Tudo isto não desmerece, num país cinzento, clerical, campónio, antes é uma lufada de ar fresco, que o público sabia apreciar como um elixir de liberdade.
O que se conhece publicado na imprensa, é muito ligeiro, mais ilustração de ditados, de frases, que irreverência humorística. Do que eu conheço de originais (que não são os mesmos que José Augusto França viu na exposição), para além da beleza de construção, ligado naturalmente a um naturalismo arredondado em deco, existe uma fantasia esplendorosa de ironia erótica, muitas das vezes sintetizada essencialmente na legenda, como "O rapto da Sabidas", "Sinfonia Incompleta", "A Esquina do Pecado", "E demos de comer a um milhão de Portugueses", "A beata"… Hoje, a maior parte do erotismo, da brejeirice parece-nos saloia, inócua, mas compreendo que naqueles tempos fazia amigos e inimigos…
O que disseram
os outros contemporâneos dele ? O "Primeiro de Janeiro", a 14/5/46
escreverá - Pintor de classe, praticando
com talento várias modalidades da sua arte, Roberto dos Santos é, também ,
psicólogo profundo e humorista moderno. /…/ Impecável no desenho, muito
equilibrado na distribuição de valores, todas as suas composições, «manchadas»
em tonalidades justas e em primorosos efeitos, são perfeitas de acabamento. /…/
A sua colecção de desenhos de recorte parisiense, polvilhados da graça
maliciosa do boulevard, constitue um esplêndido documentário de filosofia
desempoeirada na análise atenta, minuciosa e profunda a costumes e ridículos
sociais. Algumas charges, harmonizando o sabor clássico à técnica moderna,
valem como ilustrações atraentes de categorizados magazines…
O Sempre Fixe
de 49, pela pena de Octávio Sérgio, refere a sua exposição no Porto, por esta Páscoa de 1949, Roberto dos Santos é
senhor exposto numa galeria da Rua de Magalhães Lemos, e é mais visitado do que
as Igrejas cá do burgo.
O público delira com o humorismo dos seus
quadros e admira o seu impecável estilo parisiense, do Paris de 1900, através
de aguarelas e gouaches com requintes e prodígios de perícia e «savoir faire»…
Claro que os pintores à vara larga não
gostam, mas o público vê, admira e paga, que é o importante.
Aquilo não é uma exposição ! Parece uma
romaria !
Em 1950, o
texto do catálogo é da responsabilidade de Luís de Oliveira Guimarães, que nos
reporta a sua perspectiva: Uma tarde
destas, descia eu o Chiado, quando encontrei Roberto Santos que subia. Paramos
a conversar e, entre outras coisas que ele me disse, disse-me que ia fazer uma
nova exposição. regosijei-me com o facto, porque Roberto Santos, festejado
humorista da galanteria e do colorido é, no seu género, um artista
inconfundível cujas exposições obtêm sempre, aliás justissimamente, o melhor
êxito. Foi então, perante o meu regozijo, que, de repente, Roberto Santos,
franzindo o nariz, me desfechou à queima roupa:
- Sabe ? deixei de pintar humorismo; agora
só pinto tragédias. A minha exposição - Você verá - já não é uma parada de
sorrisos: é um vale de lágrimas…
- Palavra de honra ?
- Palavra.
- Homem, dê cá um abraço. Nunca um
humorista ri melhor do que quando chora !
Quem entrar nesta exposição de Roberto
Santos, habituado aos seus quadros galantes, prodígios de graça e
transparência, poderá sentir, ao primeiro golpe de vista, uma inesperada
impressão. Na verdade, o que nele era claridade tornou-se melancolia; o que
nele era verve tornou-se espírito filosófico.
A segurança dos processos mantém-se mas a
sugestão dos temas mudou. Entretanto o humorista persiste, e é isso que
importa, especialmente notar. O humorismo não exclui o sentimento. Há quem diga
até que os verdadeiros humoristas são, no fundo, as pessoas mais sentimentais
deste mundo.
Ao Roberto Santos gracioso sucedeu (resta
saber porquanto tempo) um Roberto Santos sentimental, mas nem por isso, ou
talvez por isso mesmo, menos estruturalmente humorista. O humorismo não é uma
acomodação: é uma reacção. Roberto santos reagiu agora perante o fait-divers da
existência, duma maneira diferente daquela a que nos havia habituado. Mais
pungente ? Sem dúvida. Mas ainda mais humana…
A 4 de
Janeiro, o jornal "O Sol" noticia a morte do Prof. Abel Salazar: Morreu em Lisboa e ficou sepultado no
cemitério do Prado Repouso, no Porto, o Professor Doutor Abel Salazar. Talento
pluriforme, em todos os seus trabalhos, repartidos por inúmeras actividades,
deixou indelevelmente impresso o selo do génio. Foi, sobretudo, como
histologista que o seu nome alcançou projecção mundial, sendo as suas teorias
adoptadas
Toda a Imprensa portuguesa traçou com emoção o perfil de Abel Salazar, como homem de coração e como homem de génio, classificando a sua morte como «perda nacional !»: poucas vezes estas palavras têm sido empregadas com tanta propriedade !
Este grande pensador, cientista, artísta plástico inovador, pela sua curiosidade, pela sua irreverência, e pelo seu espírito "neo-realista" naturalmente passou pelo desenho satírico, seja no testemunho/denúncia das misérias humanas, seja pela escalpelização dos rostos de amigos. Na imprensa, onde publicou pouco, cegou a usar o pseudónimo de Kaiser.
Outro grande
artista que desaparece este ano é Arnaldo Ressano Garcia, que o Diário de
Lisboa de 7/7/1948 descreve desta forma: Era
das mais interessantes personalidades do nosso tempo, de ontem e de hoje, a do
Eng. Arnaldo Ressano Garcia. Nele se concentravam virtudes e méritos que é
difícil ver reunidos num único homem.: carácter, talento, vivacidade, fino
espírito, sabedoria, bondade, independência, mesmo uma certa irreverência, que
a idade atenuava mas não eliminou.
Filho do conselheiro engº Frederico Ressano
Garcia, estadista e notável figura portuguesa - Arnaldo teve uma admirável
preparação escolar e técnica na Politécnica e na Escola de Guerra, o que o
guindou, sem favor, ao professorado naqueles estabelecimentos de ensino
superior, e, depois, na Escola de Belas Artes e na Faculdade de Ciências. Mas
durante três dezenas de anos em que exerceu a magistratura do ensino, Ressano
Garcia manteve a sua alegria espiritual de escolar, aparentemente austero.
Artista de profundidade, caricaturista,
interessou-se pelo teatro, pelo cinema, pela literatura; escreveu obras de
valor técnico e crítico, fez conferências, passou pela polémica com elegância,
como passara pela cátedra com altanaria. Dedicou-se também ao desporto, como um
forte esgrimista.
Respeitado e estimado a um tempo - o que
nem sempre acontece - foi vogal da Junta Nacional de Educação.
Morre com 67 anos um homem que honrou o seu
tempo e o nome dos seus maiores.
Desaparece também este ano o jornal "A Bomba", com pouco mais de um ano de publicação. Desaparece sem grandes palavras, apenas com um editorial que diz ver ensombrado o seu futuro. Quem não desaparece são as "Emissões Bomba", as quais entretanto tinham integrado no seu elenco a dupla Ruy e Puga, os quais após a saída, ainda durante este ano dos fundadores, assumirão o controle das emissões. Rui Andrade, Manuel Puga, Ferro Rodrigues e José Andrade entretando transformarão as Emissões Bomba em Parodiantes de Lisboa, com o programa "Parada da Paródia", mas essa já é outra história.