Thursday, June 10, 2021
«História da Arte da Caricatura de Imprensa em Portugal - 1944» Por Osvaldo Macedo de Sousa
1944
Meditando
sobra as "Necessidades dos Artistas" (in Diário Popular de
14/5/1944), Manuel Bentes "caricatura" a sobrevivência dos artistas
de então: Com razão deploram os artistas
portugueses a atmosfera de desconfiança espiritual e material em que têm que
produzir as suas obras; e alguns atribuem a esta ou àquela entidade a
responsabilidade deste estado de coisas. Talvez ! No entanto, pensando
justamente, devemos reconhecer que esta insuficiência de meios e desconserto,
não é mais que o reflexo da vida portuguesa, sob tantos aspectos tão pobre.
Num país que tem tão graves problemas a
resolver, não admira que as Artes não prendam a curiosidade dos espíritos, e
não tenham o apoio material que só do espírito culto lhe pode vir.
Os que escolheram o «ofício que empobrece»
vieram a ele sem promessas, e se houve engano foi o seu próprio engano.
Se eu não estivesse também dentro de «esta
coisa», diria: Bem hajam os que aceitaram a luta áspera e esgotante, porque o
sacrifício não será inútil; e do seu esforço, mais cedo ou mais tarde, surgirá
o triunfo da arte, que ambicionaram.
Não culpemos ninguém, não ! Todavia… que
tristeza na pátria de Camilo e Soares dos Reis ! Os artistas têm que contar com
eles próprios para a realização das suas aspirações artísticas, embora não
desdenhando alguma colaboração que a eles venham acertadamente.
Nem só de jornais vive o caricaturista, e se já falamos das bonecas de trapos caricaturais de Júlio de Sousa, e de escultura humorística, nesta década de quarenta, surge um rapaz que deixaria escola de Caricatura em Madeira. É ele Manuel Piló, que chegaria a ter uma "barraca" na Feira Popular (por onde andava também o Stuart a trabalhar, e com negócio montado de "leitura de Sina" e outras invenções. Pouco sabemos deste artista, no percurso anterior, e após a sua partida para o Brasil em 1945. Sobre a sua obra, temos alguns recortes de jornal. Luíz de Oliveira Guimarães em a "República" (de 17/4/1941) fala de "Figuras de madeira - Pilóchio":
Quantos artistas esplêndidos há por aí que
o grande público inteiramente desconhece ou que, pelo menos, não conhece tanto
como era legítimo que conhecesse ! Por exemplo: este de que falo hoje.
Há tempos começaram a aparecer à venda na
montra de uma papelaria da moda umas curiosas figuritas representando tipos
regionais portugueses e que nos eram dadas ou por meio de aguarela ou por meio
de sobreposições de papel colorido recortado; mas, de uma maneira ou de outra,
caracterizadas, todas elas, por uma graça, uma intenção, um movimento, um poder
de comunicação visual que não eram vulgares. assinava-as um nome que eu durante
bastante tempo supus, confesso, um pseudónimo: «Piló». Há dias, ao passar pela
papelaria, uma nova série de figuras expostas na monta atraiu, inesperadamente
a minha atenção. Representavam cinco ou seis tipos regionais; eram recortadas
ou, melhor, esculpidas em madeira; o artista que as modelou pintara-as de cores
vivas; não tinham qualquer indicação que nos permitisse identificar o seu autor
- mas constituíam, na sua pitoresca e colorida simplicidade, verdadeiras
obras-primas. Não resisti, entrei na loja, perguntei quem fizera aquelas
pequenas maravilhas. Disseram-me um nome:
- Piló
- Ah ! São do Piló ?
- São.
- Mas quem é o Piló ?
- O Piló é o Piló…
O artista chamava-se Manuel Piló. Piló era
afinal o pseudónimo do seu próprio nome. Creio que poucas vezes alguém se terá
tão misteriosamente dentro da sua individualidade. Não tardou muito que eu
viesse a conhecer o artista e a visitar a sua própria oficina - permita-se-me a
expressão - improvisada num recanto da sua casa, tão alegre e acolhedora. Ao
examinar aquelas dez, quinze, vinte figuras de madeira que pousavam, à minha
volta, algumas delas ainda frescas de tinta, lembrei-me da história do
Pinócchio. Por um momento tive a impressão de que o velho Geppetto - o célebre
fabricante de bonecos de pau - surgira diante de mim, transmudado num rapaz de
trinta e tantos anos, vivo sorridente, cultíssimo, vestido num impecável
jaquetão claro em cuja botoeira resplandecia uma flor vermelha.
- Como lhe passou pela cabeça fazer bonecos
? - perguntei-lhe.
Respondeu-me - Talvez questão de
temperamento. Um boneco, ao sair-me das mãos, leva um pouco da alegria que eu,
confesso, não soube expandir de outra forma…
- Recorda-se do seu primeiro boneco ?
- Não. Sei apenas que não era de madeira e
que devia ter, feitos a lápis, muitos braços, muitas pernas e - «á tout
seigneur» - um chapéu alto na cabeça … Bonecos de pau só comecei a faze-los
relativamente há pouco.
- Trabalha sozinho ?
- Perto de mim trabalha quase sempre o meu
filho mais velho. De quando em quando, sujeitamos à opinião um do outro os
nossos trabalhos e, geralmente, se um boneco meu lhe agrada - o êxito é certo…
- Que idade tem ele ?
- Cinco anos !
Sorri :
- Esplêndida idade para a verdadeira
crítica de arte…
Piló acendeu um cigarro.
- Fumo desalmadamente, embora dois terços
do tabaco que fumo me seja desagradável. É um paradoxo invencível…
- Só faz bonecos ?
- Sim. Quase só bonecos. O boneco tem,
sobre a caricatura pessoal, uma vantagem: não fere susceptibilidades…
- E, dentro dessa teoria, prefere…
- A figura popular… É a figura popular que
me dá, sem artifício, no movimento, na cor, na expressão, no pitoresco, essa
alegria e essa ingenuidade que constituem a alma - poderei dizer assim ? - dos
meus pobres bonecos de pau…
- E diga-me, se não é indiscrição, vive
disto ?
Franziu o nariz.
- Acha que em Portugal se pode viver
exclusivamente de fazer bonecos ?
- Não é fácil, não ….
- Sou empregado numa Companhia de Seguros…
E concluiu:
- O Seguro morreu de velho !
A 31 de Maio de 44, o "Século" chama a atenção para os espirituosos bonecos de Piló que se vendem na barraca do «Pim-Pam-Pum». /…/ A barraca do «Pim-Pam-Pum» destaca-se graças à arte de Fernando Bento e Stuart Carvalhais, que a idealizaram e realizaram. Todas as noites se disputam corridas de cavalos - de inofensivos cavalinhos de madeira…
A 14/4/1944, o "Diário Popular" publica "Manuel Piló e o seu Mundo Fantástico onde os homens não batem nas mulheres e as mulheres não mentem aos homens":
Moreno, metido consigo, avesso a tertúlias
e grupos de elogio-mutuo, passando na rua silencioso e distante, alheio a tudo
como se a sua fosse a rua fosse um descampado ou ele próprio vogasse sobre
nuvens, durante vinte anos, com persistência de ferro e esperança que nenhuma
desilusão venceu, este rapaz lutou para juntar as duas metades antagónicas da
sua vida satisfizesse a um tempo as necessidades e as aspirações.
Até às cinco da tarde, curvado sobre uma
secretária, os números traçados pela sua mão firme alinhavam-se em colunas
firmes e rectas.
Soada a quinta badalada, o pôr do chapéu na
cabeça era como o destruir de uma grilheta.
Saído do mundo dos deveres estreitos, este
rapaz pertencia-se a si próprio. E entrava então no seu mundo pessoal, um mundo
estranhamento lírico e caricatural, poético e heróico simultaneamente. Filho
nos seus mínimos pormenores da sua imaginação e da sua sensibilidade de artista
materializado carinhosamente pelas suas mãos diligentes tal mundo povoado de
figuras estranhas e desconexas, era o seu reino e a sua pátria. O outro, o
real, um lugar desagradável onde se ganha, mediante meia dúzia de gestos
desagradáveis, o pão e a água de cada dia.
Uru o mago, com seu manto recamado de
estrelas; Ajaz, o engole espadas, com seu turbante garrido; o feroz bandoleiro
Boca-Negra, rindo, trocista, do pavor que inspira; Alae, o corsário e Dick, o
Garra-de-Ferro, eternos competidores em busca da Ilha do Tesouro; Manolo, o
castiço, em cujas linhas se condensa todo o «postin» andaluz; a voluptuosa
Zorina, atracção de «musiv-hall»; D. Manfredo, o brigão, alma de d'Artagnan e
Cyrano misturada; Pablo, o Gaúcho, com seu laço silvante; e outros muitos, eis
os súbditos deste reino cujo Rei e Criador se chama Manuel Piló.
Manuel Piló tem hoje perto de quarenta anos
e desde os vinte que trabalha nos seus bonecos. Mas as artes não garantem entre
nós o pão a ninguém, velha e triste verdade.
Manuel Piló trabalhou, durante todo este tempo,
dividindo a sua vida em duas: de dia, o ganha-pão; nas chamadas horas vagas, o
seu amor.
Primeiro recortados em papeis coloridos e
colados em cartões brancos, mais tarde, num desejo de novos volumes construídos
em madeira, durante muitos anos Manuel foi tudo, na sua industria gentil:
criador dos modelos, marceneiro, pintor.
Cada boneco passava-lhe nas mãos horas sem
fim, era uma verdadeira criação.
E os dias somavam-se aos dias, numa luta
constante, infatigável, contra o meio hostil e os temerosos obstáculos de um
capital para o qual o engenho e a arte sempre foram causa de medo, e não de
impulso.
Finalmente, gente nova como ele, gente que
compreendeu o pernicioso efeito de consagrada frase «Quando por cento rende o
meu rico dinheirinho e a que prazo ?» veio ter com ele.
E hoje, no salão alegre de um grande prédio
ali à Pampulha, Manuel Piló realiza diariamente o seu sonho.
Partindo do seu estúdio e ocupando todo o
prédio, as várias secções coadjuvam-no. Serradores, torneiros, marceneiros, um
exército de jovens rapazinhos para os acabamentos e a pintura, um pequeno
exército de operários de uma industria nova, os corsários e os gaúchos, os
bailarinos e palhaços, são criados em série.
A industria ensaia os seus primeiros passos
e as suas possibilidades são infinitas. Desde a decoração à publicidade, desde
a caricatura ao simples boneco para alegrar o dia sem sol de uma criança pobre,
tudo é possível, pois se baseia na sensibilidade e na inteligência de um
artista que sonha manter-se puro através as mil e uma desilusões e os mil e um
obstáculos de vinte anos de esperança e de trabalho.
A 15/ de 45, o
Diário de Lisboa noticia a sua partida: "A
Vender bonecos Piló vai para o Brasil e é capaz de chegar ao pólo!"
/…/ - Para onde é a abalada ?
- Agora, até ao Brasil…
- Que foi que o decidiu ?
- A satisfação de ter sido bem sucedido em
Espanha e o desejo de ver mais
- Foi a Espanha ?
- Eu lhe digo. Isto é assim mesmo: em
Lisboa, vendi a uma fábrica os direitos de reprodução de todos os meus bonecos.
com esse dinheiro, aventurei-me a Espanha.
- Bem recebido ?
- O melhor possível. A exposição que fiz,
posso dize-lo, foi um verdadeiro êxito. Muito maior do que Lisboa, sem
comparação. Pois também vendi para Espanha, a outro produtor, o direito de
reprodução e venda. Por sinal que o trabalho de lá dá gosto, por operários
especializados, material excelente e mão de obra admirável.
- Rendeu-lhe muito ?
Piló sorri:
-O bastante para comprar uma passagem de 3ª
classe (as outras custam 20 contos !) que me leve daqui até ao Brasil. Conto
partir daqui por uns oito dias, num barco espanhol…
- Projectos ?
- É a única riqueza que podemos ter, não é
verdade ?… Sejamos, ao menos, ricos de imaginação !
- Mas que vai fazer ao Brasil ?
- Que quer que eu faça ? … Vender bonecos, c'est toute ma
fortune… E, se me sair bem, faço o mesmo que tenho feito: vendo os
direitos para o Brasil e vou até à Argentina…
- E depois ?
- Sei lá ! Sonhar não custa nada… talvez
Nova York…
Entretanto Tom prosseguirá esta linha criativa de escultura em madeira, com figuras típicas portuguesas, e Zé Penicheiro transporá esta técnica para figuras populares e caricaturas políticas, e outros os seguirão.