Saturday, June 19, 2021
«Fernando Gomes, um Senhor do teatro: “Só faço humor com o que gosto”» por Osvaldo Macedo de Sousa in «O Dia» de 12/12/1987
Há Gomes e Gomes, uns famosos, outros nem tanto. Uns com génio em Botas de Ouro futebolísticas, outros com o génio a transbordar de todo o corpo e mente, desde as botas ao chapéu, numa expressão de teatralidade, porque tudo é espectáculo. Ambos os esboçados são do Porto, mas de quem na verdade queremos falar é do artista que está neste momento no Teatro do Século, num «Metro (de) Cabaret», cara pintada de branco fazendo felizes as pessoas que se assumem como público.
O actor
é aquele que finge perante o público, que veste a máscara para representar a
vida, a fantasia e por vezes a realidade, feita difícil sobrevivência. Ser
actor em Portugal é também ser masoquista, ser um Quixote de causas perdidas e
nisso Fernando Gomes tem todos os requisitos, mesma face esquálida e os olhos
sonhadores.
O que me
levou a escrever este artigo / entrevista, para além do fascínio pelos vários
trabalhos seus que já vi, para além do êxito da sua ultima e actual peça (Metro
Cabaret), foi a força da sua personalidade, que cativa qualquer um.
A
primeira coisa que nos chama a atenção, é a sua forma de falar com os olhos, a
expressão apaixonada por tudo o que faz e vive. Não é necessário fazer-lhe
perguntas, que as conhece já todas, nem precisa de nos representar aquilo que
não é, fatigado de tanto desmascarar a vida no teatro, já que este não passa de
um reflexo da vida.
A
vivência anterior à sua profissionalização teatral resume-a ele da seguinte
forma: Fernando Gomes nasceu há 43 anos no Porto, numa zona pobre, onde
«conheceu» a nossa forma «exagerada» de encarar o dia-a-dia e os sentimentos. O
espectáculo, para além do vivencial da rua, desde logo o cativou e ainda chegou
a frequentar aulas de Ballet («participei
em várias óperas como bailarino») e fez teatro amador. Veio a tropa e
marchou para as colónias (“Depois de dois anos na Guiné,
regressei a Portugal, peguei numa mochila e fui viajar pela Europa»).
Assim, foi cescendo naturalmente ao gosto dos tempos e das modas, que foram as
de «maio 68» e dessa forma vêmo-lo, como muitos outros, a conhecer o mundo pela
europa fora (Alemanaha, França, Inglaterra..) a tomar contacto com a vida para
além dos muros desta horta.
De
todos os lugares em que viveu, Londres, segundo ele, foi o que mais o
enriqueceu na vivencia teatral, vendo tudo o possível aos seus meios, inclusive
um «E tudo o Vento Levou», «um musical
espantoso que me deslumbrou e veio avivar este desejo de fazer teatro, de
realizar grandes sonhos. É o que acontece ás pessoas depois de viverem no
estrangeiro – ficamos cheios de projectos, sonhos e frustrações, não porque
haja falkta de material humano, mas sim de possibilidades e estruturas
económicas».
Em
1974 regressa a Portugal, iniciando então a sua carreira artistica no Teatro,
porque «achei
que era a única profissão que me faz estar bem comigo próprio». Começou no Teatro Experimental de cascais,
mantendo-se aítrês épocas, passando posteriormente para a Casa da Comédia com
notoriedade e para onde escreveu e interpretou a peça infantil «Serafim, o pato
que fala». Passa pelo Bando, pela Comuna, pelo Teatro de Animação de setúbal.
Interpreta também diversos papéis no cinema portugu~es e estrangeiro, assim
como para a televisão.
Entretanto,
a partir de 1981 iniciam-se as suas experiências de café Teatro com «Cheira a
Esturro», estilo que o vai levar a optar pelo estatuto de Independente,
escrevendo, encenando e interpretando «A Última Moeda», «Zigue-Zague», «Cozido
à Portuguesa», «Noite MáGICA», «Drácula Júnior», «Metro Cabaret»... escrevendo
em parceria «Doce de laranja», «Botto – Teatro do Ciume e do Amor», «Luida
Todi» e adapta «Alves & Companhia» do Eça de Queiroz. Teve uma experiência
no campo da Revista à Portuguesa, colaborando como autor e actor na «A Lata
Continua»? no Teatro ABC.
Em
todo este percurso, o autor foi muito bem sucedido, tendo mesmo momentos de
genialidade: o encenador remediou-se com as condições possiveis para montar os
espectáculos que foram sucessos e o actor cativou o público e a crítica. Tudo
isto poderia ser fabuloso noutro país, noutras condições, porque a realidade,
apesar de todo o sucesso, é a sobrevivencia monetária dificil, e a fama inferior à de muitos mediocres que por aí a
representam.
Naturalmente,
devido ao hábito, quando se fala com pessoas do teatro pergunta-se pela crise,
como é que ela vai de saúde, etc....: «Ouço falar na
crise desde que nasci, mas eu pessoalmente não tenho queixas contra ela. Claro
que não sou uma primeira figura do teatro, não vivo bem, mas tenho esta força
de poder escrever e representar. O público retribui-me e creio que pelo menos
80% sai com vontade de voltar, o que acontece a alguns, regressando com outras
pessoas. Não tenho estruturas, faltam-me a possibilidades de publicidade, que
são fundamentais e tenho um teatro pequeno...»
«Quanto á crise, é verdade que houve
uma avalanche de 2teatro intelectual”, grupos mais interessados em política do
que em teatro. Foi importante, mas as pessoas começaram a saturar-se. Não é que
o “teatro intelectual” não tenha cabimento e até temos neste momento boas companhias,
só que como não há intelectuais suficientes, creio que basta um ou dois desses
grupos».
«E relativamente fácil fingir que se
sabe fazer um trabalho de teatro vanguardista, e em Portugal, tentámos muitas
das vezes, parecer aquilo que não somos. Eu faço Teatro Popular, porque é o que
sinto que posso fazer, sem aldrabar ninguém, principalmente o público.»
«Por exemplo, já passei pela Revista
à Portuguesa e na altura apercebi-me de coisas que estão mal, as quais
prosseguindo assim, o público abandonará cada vez mais o Teatro. É que um
espectáculo não se pode resumir a três, ou quatro figuras de renome e entregar
o resto à inexperiência, a artistas inferiores, assim como não se pode exprimir
pobreza num local com tradições de luxo. O corpo de Baile não existia, era
apenas um grupo de raparigas simpáticas… o cenário não existia… tive a pouca
sorte de passar no Parque Mayer num espectáculo pobre e pobreza por pobreza,
sempre prefiro os meus espectáculos.
Isto é o que acontece frequentemente
em Portugal e por isso, tenho um cuidado especial nos pormenores. Há muitos que
se tentam valorizar, convidando actores inferiores, mas mesmo um actor que
apenas diz três coisas, pode estragar um espectáculo. O importante, para que
algo triunfe, são as pessoas que nos rodeiam e como me considero um razoável
actor, não gosto de trabalhar sozinho, necessito de gente boa a trabalhar em
equipa. Por isso, tenho trabalhado com a Maruga, Cândida Vieira, Isabel Ribas,
Miguel Guilherme, Paula Só, Miguel Martins, Adriano Luz, Maria Vieira… O que me
falta é um bom cenógrafo e figurinista, mas como sou eu o profutor, gastando
nestes espectáculos o que ganho na televisão ou em filmes, não posso ter mais
despesas. Este espectáculo do “Metro Cabaret” foi montado com o dinheiro que ganhei
num programa para a televisão alemã- O cenário e os figurinos são o
aproveitamento de coisas que havia e mesmo assim estão aqui 500 contos.
Claro que gostaria de ir para um
sítio maior que este, mas é-me impossível, salso se eu encontrasse alguém que gostasse
de Teatro e me desse uma oportunidade, mas tinha que gostar mesmo e não ser um
desses produtores que apenas pensa ganhar dinheiro».
Para um apostador nato, como ele é, o perder nunca
se põe, porque se o dinheiro se escoa, algo melhor se ganha, como um bom
espectáculo, uma oportunidade aos muitos actores de qualidade que por aí andam
sem trabalho… Só que a ironia faz com que o dinheiro prefira outros apostadores
menos sonhadores.
A ironia
e o humor são também características suas, pessoas e teatrais: « Eu, mesmo das minhas “desgraças” me rio,
porque visualizo as figuras que faço, e vejo-me no ridículo. Mesmo que sinta na
boca o amargo da vida, um romance de amor falhado… e por muito ferido que
esteja, rio-me porque eu não
sou um trágico. É uma forma de sobrevivência. Em miúdo, o máximo que conseguia
era andar um dia chateado, e já as pessoas estranhavam, mas logo dava a volta.
Se me rio de mim, também posso
rir-me dos outros, mas nunca gozo com as pessoas, principalmente com o povo.
Nós temos a mania que somos espertos, quando no fundo somos uns inocentes, e eu
acho bonita esta simplicidade, a maneira de ser e viver deles, tenho-lhes
ternura, por isso posso-me rir com eles. O humor é apenas uma transposição do
dia-a-dia.
Cresci num bairro pobre, vivi esse
ambiente fascinante da vida, em que somos uns desenrascados, incríveis e
ridículos. Basta ouvir as conversas nos transportes públicos… é tudo tão
exagerado.
As pessoas só se riem quando
conhecem as coisas e eu só faço humor com aquilo que conheço e gosto, razão
pela qual nunca me viram fazer humor com o futebol, de que não gosto e não
consigo rir-me dele».
Por tudo isto, se o Fernando Gomes se ri de si
próprio, dificilmente o veremos a rir-se do outro Fernando Gomes, mas
entretanto o público pode ir divertir-se, ver teatro, ver a vida no «Metro
Cabaret», que fica em cena pelo menos até ao final do ano, podendo mesmo
prolongar-se até Janeiro Fevereiro, partilhando o espaço com um novo
espectáculo dedicado às crianças dos 7 aos 77 anos, que é o «Ser Pato é…», uma
peça poética sobre a amizade entre os seres.
A partir
de Março, começa a trabalhar na nova peça de fundo da temporada, que é «Óh
Maria não me mates que sou tua mãe», uma adaptação de uma história de Camilo
Castelo Branco sobre o ambiente familiar português.
Fernando
Gomes, o actor/encenador/dramaturgo está no Teatro do Século, à rua do Século –
a não perder.