Monday, May 10, 2021

«Teatro Nacional de São Carlos - Sortilégios de Luis Miguel Cintra» por Osvaldo Macedo de Sousa in «O Dia» de 23/1/1987

É sortilégio do palco fazer surgir a fantasia, o jogo «infantil» do faz de conta, a representação dos sonhos em comédia ou drama, o confronto do mundo no paralelismo de outra dimensão. Quando a essa fantasia cénica se alia a música e o canto, podem então os sortilégios ser um jogo fantástico de uma criança, ou o drama dos amores per-Didos no São Carlos. Qual mago desses mundos, Luis Miguel Cintra aparece-nos pela primeira vez a encenar Ópera, em estreia já segunda-feira próxima.

 

Luis Miguel Cintra é conhecido do público, não só como um encenador de teatro amplamente reconhecido, como um dos maiores actores portugueses e director da Companhia da Cornucópia. Após tantos anos de carreira teatral, surge neste mundo cénico paralelo, mas diferentes, que é a ópera.

LMC – De facto é muito mais diferente, encenar ópera ou teatro, do que eu pensava antes. É um desafio muito grande, mas já há muito tempo que tinha dentro de mim este desejo, como uma tentação. São duas óperas, o «l’Enfant et les Sortiléges» e o «Dido e Eneias» de que gosto imenso e achei que era engraçado fazer a experiência.

É a primeira vez que o faço, e estou a gostar, só que é de facto como estar a aprender uma nova linguagem. Aquilo que é material básico de trabalho no teatro, como as pausas, a entoação… aqui estão, à partida, comandados por outras coisas, começando pela partitura, pela própria direcção do maestro, etc. Depois, a construção da personagem, que também existe, não pode ter a mesma concepção. A posição do encenador na ópera é mais humilde, é como que o estender de uma espécie de plataforma, onde as pessoas possam actuar. É de facto a aprendizagem, para mim, de uma nova linguagem diferente.

OMS – O Teatro de São Carlos tem estado a apostar em encenadores portugueses, mas em obras mais do tipo experimental. Se o tivessem convidado para uma ópera de repertório, qual seria a sua reacção?

LMC - Ser-me-ia mais difícil entrar nesses campos. Sinto-me alheio à chamada tradição operística, o que me faria sentir mais estranho à «casa». Mas gosto imenso de Verdi, e estaria tentado a fazer tal experiência, só que antes, gostaria imenso de encenar uma ópera de Mozart. Adoraria, e no entanto também já faz parte do reportório clássico.

Em relação a estas óperas, pelo que tenho sentido e visto, há uma companhia em «formação», o que me agrada e me dá vontade em colaborar. Pegar numa coisa como o «Enfant», que dá oportunidade de ter um coro em acção, de ter uma espécie de amostragem de uma quantidade de vozes diferentes, tudo em pequenos papeis, mas engraçados, acho uma escolha muito interessante. Depois o «Dido» é uma daquelas obras-primas que vale sempre a pena fazer.

OMS – São duas óperas diferentes, uma um jogo cénico, outra um drama. Distanciadas no tempo, Purcell barroco e Ravel do principio do século XX – como fez para as conjugar num espectáculo uno?

LMC – Existiu esse problema à partida, o que nos levou a partir de um elemento unificar, que em termos concretos é a rotunda preta, ou o negro do fundo, unificação de um visual pouco pretensioso: não construir cenários, mas elementos de cenário que surgem no seu momento. O segundo elo é a presença do coro vestido com fatos de concerto, mas com adereços que utilizam em determinadas alturas, desempenhando as funções de pastores, de números, de bichos… No «Dido» também o coro não é personagem, é comentador, ecoa aquilo que os solistas cantam ou dizem, unificando-se desta forma pelo vestir, sem a pretensão de criar uma ilusão cénica, mas sim uma ilusão musical. O terceiro elemento é a presença de quatro crianças.

No «Enfant» a ideia do espectáculo é a de uma brincadeira que uma Companhia de Ópera resolveu «improvisar» e, como diz o próprio titulo, tem a ver com crianças. É uma fantasia onde se brinca constantemente com a música, com os objectos, com o imaginário, onde as crianças são os «meneurs du jeu».

No «Dido» fala-se de cupidos, que são meninos e onde aliando-se à tragédia, a ingenuidade domina. Achei que seria bonito fazer a unificação do expectáculo com esses quatro miúdos.

Além disso, esta é a primeira coisa que faço no São Carlos e por isso associei-a às minhas idas ao teatro quando era criança, àquele encanto, ao mistério do fantástico que o São Carlos tem nas minhas recordações. Resolvi pois fazer uma homenagem a isso, com miúdos em cena.

OMS – O estar em cena, nem sempre é fácil neste país. Como vai o Teatro em Portugal?

LMC – Vai andando…

OMS – Como consegue a Cornucópia manter o equilíbrio entre a qualidade e o êxito?

LMC – É dificil o equilíbrio entre a qualidade e o popular, mas não é uma coisa «procurada» por nós, é algo que nasce naturalmente. Está-me no sangue fazer o Teatro experimental, de «reflexão» e não consigo estar a fazer um Teatro de passatempo. Além disso também sou actor e sinto que o que fazemos é uma espécie de diálogo, no sentido de provocação, um diálogo com o espectador. Não gosto muito da palavra popular, porque se pode confundir com uma coisa que seja fácil, ou com a cedência ao gosto médio. Quero um Teatro que diga coisas ao público, não quero que seja «comercialão».

OMS – Qual a razão da ausência do público no teatro?

LMC – Acho que está a mudar e não sou só eu que sinto isso, há outros colegas meus encenadores que pensam o mesmo. Sinto que neste momento há uma espécie de desejo do público em apanhar os espectáculos de que gosta, e ir. Por exemplo, a reacção que está a haver à «Mulher do Campo» no Trindade, é muito forte.

OMS – Mesmo com êxito, o teatro pode viver só da bilheteira, sem subsídios?

LMC – A bilheteira só por si nunca dá. Mesmo no Trindade, com casas boas que estamos a ter, não dá para cobrir as despesas. Por exemplo: neste espectáculo temos que pagar diariamente 10.000$ aos músicos; uma publicidade mínima e ridícula, fica por semana em 60.000$, o que já dá 20.000$ por dia de ordenados da companhia, técnicos, electricidade… Se os bilhetes são a 300$oo, para fazer aquela quantia, são precisos muitos, muitos espectadores. É impossível.

OMS – Acredita do Mecenato?

LMC – Por enquanto ainda não vi nada. Mas talvez… É uma coisa que existe em todos os países e por isso é natural que também em Portugal venha a surgir. Entretanto, ainda acredito pouco.

OMS – Voltando ao trabalho actual, esta é a primeira vez que dirige pessoas estranhas à sua companhia. Sentiu dificuldades?

LMC – Exactamente. Ai senti a difetrença, pois nunca estive nesta posição, em que normanmente trabalham os outros encenadores, ou seja, em estruturas que não foram organizadas por eles. Para mim, é uma enorme experiência e agora percebo os problemas com que essas pessoas lutam, e por isso, na minha companhia, sinto-me um pouquinho privilegiado nalguns Aspectos, noutros é o contrário. Vejo agora o que é o luxo de, por exemplo, em relação à iluminação, eu dizer – quero isto, e depois alguém me faz.

OMS – Já há contactos para dirigir uma nova ópera?

LMC – Não, por enquanto nada.

O Ensaio tinha que prosseguir no tal jogo de fantasia e a troca de dialogo teve que ficar por aqui, porque a «Acção» neste trabalho é mais importante.


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