Friday, May 28, 2021
«Stuart Carvalhais: “Ser artista é ter talento. Faço bonecos para distrair a fome, artistas são os outros» por Osvadlo Macedo de Sousa in «O Dia» De 7/3/1987
Falar de Stuart Carvalhais, o vilarealense que viveu Lisboa como poucos, é falar numa dicotomia de artista / pessoa, que ao mesmo tempo é um ser uno em vivência e criatividade. E o individuo nasceu em 1887, 7 de Março, em Vila Real, o artista, após a gestação nos estúdios de Jorge Colaço, nasceu em Lisboa, no «Século» e «Tiro e Sport», tendo permanecido no primeiro por várias décadas.
Desde logo, a sua opção foi a liberdade de estilos,
que o levou à independencia em relação ao raphaelismo, conciliando-o com os
modernistas e, posteriormente, ao seu traço populista e livre: liberdade de
vida e pressões que a boémia inspirava em falta de compromisso, de horas, mas
muita criatividade. Não se prendeu à obra, nem generos artisticos, por isso
passou pelo desenho, pelo humor, caricatura, ilustração de folhetins, de capas
de livros, capas de partituras musicais, cartazes, cenografias, decorações de
stands e feiras, director de cinema, actor, banda desenhada, pintura… até de
palhaço em cabaret e tendeiro da Feira Popular.
A sua primeira liberdade, foi contra a monarquia, pela
sátira política, não deixando de atacar a República depos desta imposta. Um
dia, sem dinheiro e passaporte foi a Paris conhecer outros mundos e as
francesas. Teve êxito em todos os campos e, por isso, regressou já que aí a
fama certamente o prenderia a uma vida de compromissos. Regressou e rionicamente
acabou preso, pelo matrimónio forçado ( uma varina que engravidou), o qual lhe
deu o seu único herdeiro, o Raul.
Sem contar com esses precalços, a vida prosseguiu como
ele a organizou – livre e independente de compromissos (exceptos quando a vida,
como a sua mulher o persefuiam para pagar contas). Passou por quase todos os
periódicos da capital e arredores, para aqueles que sobreviveram, assim como
para aqueles que faliam logo ao primeiro número, ou ao décimo.
Esta digressão inconstante e rebelde por todos os
periodicos de todas as cores e feitios, levou-o a ter de trabalhar e
corresponder aos interesses dos contratadores, em periódicos republicanos, e anti-republicanos, afonsistas ou
sidonistas, do Estado Novo como da oposição, defendendo as vanguardas, o
radicalismo ou o conservadorismo, a direitacomo a esquerda. Só uma coisa permanecia para si, a defesa da sua liberdade
e do Zé Povo (numa linha apolitica), seu vizinho de vida e compadre de
aflições.
Nos anos vinte, periodo que bem ou mal acompanhava a
evolução do seu filho, a criança foi a sua paixão e inspiração, ou por outras
palavras, ganha pão, porque dominou o seu trabalho. Antes, ou seja, por altura
do nascimento do seu filho, já tinha criado os anti-herois «Quim e Manecas»
para o «Século Cómico», uma das primeiras bandas desenhadas portugueses do
nosso século (já em 1909 no «Tiro e Sport» ele tinha feito narrativas
gráficas). Depois, surgiram outros
herois que não passavam de crianças reais que ele observava nas
escadarias e becos desta cidade, labutando ou divertindo-se mas sem
irreverentes e de lingua afiada na comédia humana.
A cidade que ele tanto amou, como escape humoristico,
principalmente quando a politica e o regime o proibiram de comentar os
desgoverno, de criticar os oportunismos, de gritar as injustiças. Como
substituto à opinião livre, ele conseguiu fazer critica social de forma doce
mas realista já que a opressão faz criar novas vias, faz criar esse humor
triste dos que não se calam, como um fado vadio dos comentam até que a voz lhes
doa, esse humor triste dos que consentem tudo o que se passa à sua volta.O
humor, então, ou se transforma em alegoria
subrepticia, na ironia social. A critica disfarçada em pitoresco ou no
anedótico, no jogo popular do riso grotesco e populista.
Foi nesse desvio, nesse fundo critico à miseria, às
injustiças, que a cidade surgiu retratada, retalhada nas suas ruas e becos, nos
tipos e nas pernas, que as varinas nunca mais voltaram a ter. ele poetizou pelo
traço as mulheres do povo, as varinas, costureirinhas, as vendedeiras de
marmelos, até as «mulheres perdidas» sempre sujeitas aos «cães vadios» que
delas dependiam. O bêbado nunca teve um conhecedor tão profundo do ridiculo das
suas actitudes, como Stuart que o retratou num profundo e consciente auto-retrato.
Se Stuart retratou Lisboa como ninguém, é porque também a conhecia como niguem,
desde a sarjeta dos sem abrigo ao café boémio, da rua popular às avenidas da
burguesia reinante.
Stuart era o boémio que o notivago encontrava pelas
noites de Lisboa, era o bêbado que dormia nos bancos dos jardins e nas
sarjetas, era o homem de quem as mulheres ouviam piropos e que as varinas
sentiam as palmadas no traseiro ao mesmo tempo que éra o artistas que retratava
todos eles. Toda a cidade conhecia o homem-artista que nunca encontrou a
confiança em si próprio, que nunca acreditou nos seu dons, na sua genialidade,
naquilo que fazia: «ser artista é ter talento, possuir garra, ser condecorado… Eu não,
nunca pintei nada… faço bonecos, para distrair a fome… artistas são os outros…»
(Stuart Carvalhais in «República» 13/12/1940).
Não é um artista fenial pela sua filosofia artística,
inovadora, vanguardistica. Não é conhecido por uma qualidade especial de cor ou
composição. É genial por nunca ter confiado em si, nunca ter idealizado tipos,
abstratizado realidades, antes os pôs no papel como eles são, num realismo cru,
ironico, satirico, mitico, obras feitas com a borra do café do momento, com a
graxa dos sapateiros, o fosforo queimado que acendeu a pirisca, os remédios na
cabeceira do hospital ou hospicio… fixando no papel, ou tel, as pessoas com
seus amores, ódios, esperanças, abandono, frio ou fome. Pintou Lisboa, desenhou
as pernas mais bonitas da história da arte portuguesa, satirixou a política
como pode, frontal ou subrepticiamente e morreu livre e pobre, tal como viveu,
a 3 de Março de 1961.