Saturday, May 08, 2021
«Ode à fertilidade – O Tempo de (José Manuel Moreira dos Santos) Moreira» por Osvaldo Macedo de sousa in «O Dia« de 23/12/1986
Viver para uns, é calçar as pantufas em frente da
televisão, enquanto para outros é explodir a sua vivência, é transformar a
energia interior, feita de frustrações, sentimentos, em arte.
Uma pessoa de caracter violento é o Moreira, que
dessa força telúrica faz escultura ou gravura. Natural de Sarzeda (Viseu), onde
nasceu em 1953, José Manuel Moreira dos Santos, Moreira para os estetas, fez
passagem pela ESBAL, mas foi nos estúdios, nas pedreiras, na rua, na experiência
que se fez artista. Viajou pela Europa, viu, criou, vendeu ao desbarato para
todo o mundo e voltou para o seu desespero.
Participou em várias exposições colectivas,
nomeadamente na III Exposição de Artes Plásticas da Fund. C. Gulbenkian
(Gravura), tendo também já realizado individualmente, em 1985, uma exposição de
Gravura na Academia dos Açores, de escultura no Museu Grão Vasco de Viseu, e em
1986 de Gravura na Galeria Stuart em Lisboa (da qual eu era o director). Neste
ano foi distinguido com o Prémio do Centro de Cultura de Évora.
Se ser violento é um «handicap» para a gente
enfatuada, para os senhores instalados nos seus gabinetes de cortesias, nas
galerias de comércio ao retalho, nos ministérios… para Moreira é um estar na
vida que se dilui na criação, desse mundo simples de arte: «A arte não tem nada de especial, nada de
divino, é tudo simples, não passa de um elemento orgânico que sai de cada um».
A sua forma orgânica é explosiva e por isso mesmo se fez escultor: «Tenho que encontrar algo que me neutralize e
a pedra é esse elemento, proporciona as situações para eu ser violento, de
gastar a minha energia e, depois viver calmamente».
Não é fácil viver calmo neste mundo de
sobrevivência: A luta por estúdios camarários que, em vez de estarem ao serviço
dos artistas, estão alugados clandestinamente, como armazéns de mercearias; no
regateio com as Galerias que lhe querem explorar o suor e os calos da obra… mas
de toda esta violência contra o mundo padastro surgiu a criação e ela está
patente na Galeria Tempo…..
Observando a exposição, sob o título de «Ode à
Fertilidade», denotamos no catálogo um estranho chorrilho de nomes, como «O
Código Acre-doce», «A Expectativa do verbo», «O Aço do vento», «Homenagem a
Freud, Yung, Reich», «Tanathos», «A Formação do Aparecer»… designações que não
tem nada a ver com o Moreira. Soube então que esta foi mais uma das
prepotências dos galeristas: «As
esculturas não têm títulos, tenho situações que me levaram a criá-las, nada
mais e estas obras foram baptizadas pelos outros».
Esquecendo os títulos ridículos e
intelectualoides, a mulher predomina como forma, abstração ou tema, porque o
que está por detrás de força criadora do Moreira é a genese, a maternidade, a
terra-mãe, o ovo, a fertilidade… e «essa
fertilidade que provem do ovo, o calhau rolado, é que deu nascimento à minha
escultura. O rio dá-me milhares de calhaus rolados e o tempo meu é o esforço de
os encontrar, pois são muito poucos aqueles que me exprime». A pedra ovo é
a origem, é o sentimento de um beirão violentado pela cidade / sociedade , rude
como o granito, mas pronto a criar, tal como uma mulher que pare, com
sofrimento, com luta. «O granito saiu do
rio e fez-se fertilidade, mulher», como simbolo de maternidade, invocação,
consciente ou inconsciente de deusas pré-históricas que, em Moreira, permanecem
nesse misto de ovo e feminilidade, de eros feito pedra.
Uma evocação não ingénua, apesar do artista ser
um «ingénuo» do mundo, mas manifesto contra estruturas, classicismos como
mudança: «São as mulheres que parem, e em
Portugal, nada está a parir e é necessário fazer algo, dar uma volta a isto!».
Nessa inconformidade com as regras, surge a
gravura, o outro lado do artista: «a
gravura é a minha necessidade de cor, que não tenho nas pedras». Nesta
exposição, esta faceta também está presente numa pequena amostra, mas
suficiente para demonstrar a sua arte e engenho.
A cor é de tal forma importante, que o levou a
interpretar a impressão de uma forma diferente, pouco ortodoxa mesmo, fazendo
as tintagens directas e consequentemente cada prova é diferente da anterior,
como provas de autor. «Não posso fazer
séries, porque é um processo muito meu e não poso utilizar mais de sete
impressões, diferentes, da mesma chapa. Poderia fazer a gravura pelo sistema
normal, grandes tiragens, mas não quero».
Inconformismo, violência, «revolta». Tudo provém
do movimento da vida, mas lutar contra a prepotência do comercialismo, da
exploração castra toda a criatividade dos indivíduos. «Prejudicar-me a mim próprio é legitimo, mas os outros, não».
Bramando contra sistemas, opressões, comodismos, o Moreira não deixa de criar
novas formas, obras de uma beleza simples, como é a sua arte vivida
«organicamente».
Poder-se-ia deambular por múltiplas teorias de
interpretação filosófica, que surpreenderiam sempre o artista, por comparações
coma as Vénus pré-historicas, com a maternidade de Gaia a Terra-mãe em terras
viriatas, mas para além das palavras e dos títulos, está a expressão desse
artista jovem, irreverente, mas pleno de força, energia violenta, e porque não,
«genialidade». Uma exposição a ver e se possível a comprar, para não se
lamentar mais tarde, nas homenagens póstumas, nas retrospectivas em que os
inimigos e opressores emendam a mão, tarde demais, para louvar os perseguidos.
(Conheci bem o Moreira, inclusive encomendei-lhe
o troféu para O Prémio Stuart a ser outorgado em Vila Real. Era uma “perna à
moda de Stuart”, ou seja uma escultura com uns 30 cm. El trouxe-me uma perna
com mais de meio metro e pesava cerca de 10 kg. Não conseguia fazer mais
pequeno.
Quando lhe fiz a exposição de gravuras na Galeria
de Stuart, os amigos convenceram-no a comprar um fato para a inauguração, para
não aparecer com aquele ar de vagabundo que tinha normalmente. Quando chegou
vinha com o fato todo sujo de tintas – Tinha medo de não ser reconhecido como o
«artista» no meio de convidados enfatuados.
Outra das suas variantes artísticas foram os
abajures criados com a chapa usada para fazer as gravuras, obras de um design
totalmente inovador. Também se podem encontrar trabalhos seus nas ruas de
Viseu, feitas calçada.
Bebia muito, principalmente absinto e viria a
morrer em consequência disso. Já não me lembro da data.