Saturday, May 22, 2021
«História da Arte da Caricatura de Imprensa em Portugal - 1943» Por Osvaldo Macedo de Sousa
1943
A acumulação de citações torna a leitura fastidiosa, mas como assumi na introdução desta História, procuro aqui reunir o máximo de material, para facilitar futuras abordagens, assim prosseguem as transcrição de artigos de jornais, neste caso "As Bolandas de Stuart Carvalhais", por Diogo de Macedo in Diário Popular de 4/2/1943 :
Todos os movimentos revolucionários têm os
seus mártires. São os precursores. O da arte moderna, em Portugal, também os
teve. O triunfo da causa trouxe-lhes tardiamente um relativo triunfo sem
escala, uma glória póstuma ainda por definir convenientemente. Em exposições e
revistas literárias um núcleo de moços, com o sangue na guelra e de convicções
firmas, deu o alarme da reacção estética e pregou os primeiros sermões da nova
religião na arte. O público recebeu esses arautos com simpatia: mas os
intelectuais, os catedráticos, os académicos, aqueles que nesta terra se
consideravam detentores duma cultura omnipotente, troçaram e atacaram a sua fé
e o seu engenho de virtuosa sensibilidade. Só alguns poetas, aqueles
intransigentes plásticos, toparam um apoio de simpatia, juntando-se-lhes ao
sacrifício para que foram predestinados. Uns e outros, no seu heróico martírio,
são hoje os vitoriosos, os consagrados, mas sabe Deus porque motivos. Dos
mortos fala-se, porque a competência dos túmulos não amedronta as tendas do
mercado; dos poucos vivos que restam fazem-se-lhes aparentes festas, mas
procura-se deixá-los nos museus das relíquias, acusando-os de boémios. de
inconformados, de impenitentes sonhadores. Nas batalhas as forças de choque
servem de ponte, quando aniquiladas, às da retaguarda. Se esta é a lei das
pelejas, românticos serão os queixumes contra ela. E românticos são aqueles
precursores que subsistem.
Ora naqueles bons tempos das primeiras
campanhas, e mais ou menos nos mesmos lugares dos capitães, serviram com igual
fé muitos artistas de independente orientação. Do grupo de desenhadores, ilustradores
e decoradores tomados por humoristas, havia um rapaz de pelo arruçado, picado
das bexigas e de real talento, dado a descuidos duma propaganda prática da sua
categoria, que por jornais e revistas ganhava o seu pão honradamente. Os
desenhos tinham particularíssimo carácter e as legendas que os acompanhavam
tinham igual precisão de individualidade.
Um dia, movido pelo ilusão peculiar nos
artistas e seguindo a rota dalguns camaradas, abalou para Paris. Dias depois,
jornais ilustrados dali publicavam desenhos seus. Deste primeiro passo - tão
difícil para tantos artistas estrangeiros - que lhe proporcionaria carreira
certa, o nosso conterrâneo fez-se contratar por uma grande empresa, em cujos
escritórios, pelos trabalhos que apresentava, lhe auguraram rápidos proventos e
famas. Stuart Carvalhais - porque é do bom Stuart que se trata - não sabendo
deitar contas à vida nem se fiando nas gloriolas humanas, abandonou projectos e
sonhos, cedendo à saudade, para voltar por aí abaixo, até ao Chiado,
abandonando Paris e o seu cheiro a pó de arroz e gasolina.
Ei-lo que regressa à lufa-lufa das
redacções alfacinhas, à cepa torta da incerta vida das gazetas, desenhando
contos mudos para crianças, ilustrando versos e folhetins, fantasiando páginas
de guerra ou de lirismos, inventando chalaças populares para amadores do
género, em traços vigorosos, expressivos e pessoais, sem em nada lisongear os
seus admiradores, e apenas contente com a aventura da vida, que para ele tem
sido uma espécie de montanha russa, com altos e baixos, vertigens e comoções na
qual o seu riso é principal factor. As suas legendas e os seus desenhos andam
de boca em boca, de mão em mão, de folha em folha, num abandono de
perdulariedade, que só a generosidade dos pobres sabe distribuir.
Criou-se então uma lenda em redor do seu
talento e da singeleza das suas exuberâncias artísticas, deixando-o reagir à
parte, isolado, independente, marimbando-se para teorias estéticas e convenções
de princípios, esquecendo ilusões passadas e fechando-se a sete chaves no
egoísmo duma existência de espantalho renegado.
Assim se desperdiçou, com resignada culpa
do próprio, um dos mais emotivos e mais estranhos artistas duma geração que
revolucionou e educou o gosto
Neste ano Stuart realiza a sua única exposição, que foi colectiva com Santana e Zéco, uma organização da "Vida Mundial Ilustrada" nos salões do Clube dos 100 à Hora.
Em relação à Sociedade dos Humoristas que é dado como extinto este ano, não deixou apenas na memória uma série de conferências, duas exposições, mas um grande convívio entre um grupo que tinha a mesma paixão, o humor. Isso fez com que, na ausência da liderança de Leal da Câmara, a principal alma motora das iniciativas, o mesmo Grupo de assíduos convivas se organizassem numa orgânica menos ambiciosa, mas que facultasse a tertúlia, e o convívio, nascendo assim o Grupo de Humoristas Rafael Bordallo.
Segundo sugestão de Luís de Oliveira Guimarães este constitui-se em 1943/44. Não tinha estatutos, sede, e nem objectivos muito concretos. Nomearam Arnaldo Ressano Presidente, e era composto pelo núcleo duro do anterior grupo, ou seja Valença, Leal da Câmara, João Valério, Rocha Vieira, Alfredo Cândido, Manuel Cardoso Martha, Luiz de Oliveira Guimarães, D. Julieta Ferrão... e segundo informações directas, quase nada fizeram de concreto.
Unidos, ou individualizados, os humoristas então, eram figuras de destaque da sociedade, da cultura, já que as suas obras eram elementos influentes no dia a dia de cada um. Contrariamente ao que acontece hoje, eram figuras que mereciam, por parte dos jornalistas, um constante destaque na imprensa, seja com caricaturas de homenagem que trocavam entre eles, seja com entrevistas sobre a sua vida, sobre o seu pensamento. Assim não é de estranhar que Américo Lopes de Oliveira, da "Vida Mundial Ilustrada" (em 30/9/1943), vá mais uma vez entrevistas Francisco Valença. O tema desta vez é "A Caricatura é ou não uma Obra de Arte ?"
Diz Valença - …o objectivo da caricatura não pode deixar
de ser humorístico… É claro que a intenção se apresenta sob diferentes
aspectos: pessoal, política, de costumes… Não sei de casos, pelo menos entre
nós, em que a intenção humorística seja uma simulação. É talvez uma arma terrível
- mas é nobre e é leal ! E a lealdade, bem vê, não admite simulação… Que diabo:
pode lá haver algum parentesco entre a lealdade e uma navalha de ponta e mola ?
/…/ - Mas o senhor acha que a caricatura
tem futuro ?
- Isso agora, meu amigo !… Depende da disposição em que ficar o Mundo para rir
ou não, quando os canhões, agora tão faladores, recolherem a fala - às
culatras. Em todo o caso, o papel da caricatura não virá a ser papel - de
embrulho. Já Eça de Queiroz o disse, há quase 80 anos: "A Caricatura é
mais forte do que a restrições e que as proibições. É imortal, porque é uma das
facetas daquele diamante que se chama a Verdade. Quanto à caricatura política,
é ainda o mesmo escritor que acrescenta lapidarmente: "Um governo forte e
popular, resumindo em si toda a dignidade de uma nação, não se inquieta com os
sarcasmos da caricatura"…
/…/ - O senhor sabe que há quem negue foros
de arte à caricatura…
- Se há ! Ultimamente, então tem sido
menosprezada por certos críticos de arte… para baixo, sem dó nem piedade. Pelos
vistos, estão em moda essas arremetidas… Mas creia, sem razão alguma ! Que é a
caricatura ? É desenho humorístico. Sendo desenho, é arte, ou a lógica é… um
precioso tubérculo, como se chama agora às batatas, quando desaparecem das
mercearias… Os mais ilustres pintores de todos os tempos, nos seus ócios,
fizeram composições caricaturais e humorísticas: Botticelli, Leonardo da Vinci,
André del Sarto, Meissonier, Gustavo Doré…
Dos nossos grandes Columbano e Malhoa algumas caricaturas se conhecem…