Tuesday, May 25, 2021

«Factos mal relatados» (Carlos Zíngaro / Rocha Pinto) por Osvaldo Macedo de sousa in «O Dia» de 12/3/1987

  Os factos, bem ou mal, raramente se conjugam com os sonhos, e este, só agora concretizado em facto, tem vários anos. É um conforto, em coincidências ou opostos, entre a música de Carlos Zíngaro e a «partitura» de Rocha Pinto em «Factos Mal Relatados», hoje 12 de Março de 1987, na Galeria Altamira ao final da tarde.

 

            Carlos Corujo, «Zíngaro» para as artes, é um desses artistas nacionais que não teve culpa de cá ter nascido, que aposta na vanguarda musical, como um espectáculo sempre renovado, ou total. «Sempre gostei de criar o espectáculo total. Em miúdo, quando fazia as minhas Bandas Desenhadas, ou os teatrinhos de recortes, tentava criar todos os elementos e, daí provém este gosto de conjugar as diversas artes».

            Para quem não conheça o seu trajecto, Zingaro é violinista, compositor que trabalha no campo electro-acústico, artista gráfico com Banda Desenhada e Desenho de Humor publicados. Está ligado à formação do grupo de teatro «Os Cómicos» e posterior transformação desse espaço numa Galeria de arte com mais êxito.

            Trabalhando como solista, em conjuntos, com actores… também se conjuga com a pintura, «não como um acrescento, um cenário, MAIS COMO UMA LEITURA paralela, que pode ser coincidente, ou oposta da leitura do outro, neste caso Rocha Pinto. Partindo da leitura primeira do pintor, tento fazer a minha leitura, um semicinema de “paralíticos”, em que cada quadro se transforma num fotógrafo com a sua banda sonora».

            O ponto de partida é a obra de Rocha Pinto, uma série de telas em sequência, onde se conciliam, geometrismos abstractos, de cunho expressionista, com certos elementos neofigurativos. Como elemento condutor, existe um certo diagonalismo, que o Zíngaro utiliza como elemento base, «fazendo estruturas geométricas de composição imediata numa ambiência fundamentalmente de violino, tudo muito linear, depurado, subtil. Existem alguns elementos de horizontalidade, que eu interpretei como uma pauta, partindo daí para as linhas diagonais, na construção da forma. Não só as estruturas estéticas, como os títulos servem de base para as sequências».

            Partindo de esquemas pré-estabelecidos, o Zíngaro parte nesse movimento de improvisação, «que não é a improvisação “tout court”, mas estruturas existentes levadas às ultimas consequências, num jogo de relação com os instrumentos-máquinas, ou com os outros músicos, quando intervêm comigo».

            Sozinho ou em grupo, Carlos Zíngaro vive na base dos espectáculos no estrangeiro, que rondam um concerto por semana, enquanto em Portugal não passa de dois, três por ano. «No estrangeiro, sou convidado pelos organizadores e directores dos Festivais, ou músicos, para tocar com eles. Eu nunca me propus, nem procurei trabalho e desde 1976 que trabalho regularmente no estrangeiro, para onde parto em breve, dando um concerto no Festival da Nova Música de Salzburgo, no dia 26 de Março, seguindo-se uma “tournée” por França com o meu trio, composto por mim, Daunik Lazro no Sax-alto e Jean Bolcato no contrabaixo. Posteriormente, tenho uma gravação na O.R.T.F. com a contrabaixista Joelle Lêandre, do Ensemble Contemporain de Boulez. Em maio vou ao Festival de Música Contemporânea de Londres, que reúne oito músicos de vários países, seguindo-se o Festival em Atenas…»

            Uma carreira já longa, com nome reconhecido no estrangeiro, mas ainda sem discos gravados como solista com a sua música, apesar de ter vários com outros músicos de diversos países. Porém, algo está a mudar: «Nunca procurei as editoras, porque os seus responsáveis sabem o que eu valho. Tenho agora uma proposta de uma editora inglesa, para o meu trio gravar um disco e uma editora Belga, que está a fazer uma compilação na Nova Música de todo o mundo, para editar em disco, pediu-me uma música gravada».

            Por cá, vai fazendo um ou outro concerto, porque existe uma classe de burocratas em editoras, ou organismos oficiais, divulgadores radiofónicos ou pseudocríticos que sabem vender os produtos empacotados e etiquetados no exterior, mas dificilmente conseguem compreender o que surge de novo entre nós.

            «O problema são os intermediários das artes que se condicionam e deturpam a qualidade do produto, antes de o entregar ao consumidor. Hoje há já, entre nós, um público receptivo que é intoxicado pelos parasitas».

            Paralelamente, trabalha na Música Popular Portuguesa, integrando o grupo do Júlio Pereira, por necessidade de «espairecer da dita música intelectual, por amizade ao Júlio e por razões económicas, porque se tivesse mais trabalho no campo que me interessa, obviamente não precisava de fazer mais coisas. Mas, mesmo na música popular não há trabalho, porque foi esgotada com etiquetas e panfletos. Por exemplo, neste ano até Abril só temos quatro concertos, e o Júlio é um dos nomes mais importantes. As pessoas preferem ficar em casa, ver espectáculos com estrangeiros, ir a a situações prestigiantes, or para ser visto».

            Entretanto, soube que o artista plástico que existe dentro do Carlos Zíngaro sobrevive também, e vai voltar ao activo, na revista do Teatro de são Carlos, recuperando-se um dos nossos melhores gráficos da geração de Abril, e não só, um dos raros que tem o total domínio do desenho, a originalidade do traço, a fantasia do tema, em humor fantástico e negro, como é a vida de todos nós.

 


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