Thursday, May 20, 2021
«As palavras são como as cerejas – Luís Santos, uma carreira no Teatro» por Osvaldo Macedo de Sousa in «O Dia» de 25/2/1987
Santos de casa não fazem milagres e se alguns, por magia cénica ou de bastidores, conseguem as graças fáceis dos críticos e do público, outros, por estarem acima de qualquer suspeita, permanecem naquela penumbra do génio artístico feito de profissionalismo, qualidade e sabedoria não fabricada pelos mass-media. É o caso do Mestre actor Luis (de Camões) Santos, um actor invejado-odiado pela mediocridade, venerado-apreciado pelos amantes do Teatro, como uma das figuras importantes do palco deste século.
Com 78
anos, após seis de ausência dos palcos, e 62 de carreira, ei-lo de volta para o
«Jardim» do Teatro Aberto, com um Firs que é uma nova «lição» de representação.
OMS –
Como tem reagido o público a este novo trabalho?
Luís Santos – Vêm dizer-me que ficaram muito
impressionados, e coisas do género, como se não estivessem habituados a ver
representar. Eu lamento imenso que uma insignificância que eu faça, seja assim
um acontecimento, porque acho que isto deveria ser o normal. Já nas «Mãos de
Abraão Zacutt» me diziam que eu era extraordinário, e eu respondia com sarcasmo
«o Teatro está tão mau que até eu sou primeiro actor». Estes elogios, em vez de me fazerem inchado, entristecem-me pelo que
é o nosso teatro. Em contrapartida, existem outros cumprimentos que me
sensibilizam, como por exemplo quando o Manuel Oliveira. e Costa me veio
felicitar; disse-me que tinha revisto a minha actuação no «Pensamento», que tem
em vídeo em casa e comentou: -«Estive a ver a peça, e a única figura que
hoje não alteraria, se a realizasse de novo, a única que resiste é a sua». Que
o realizador venha dizer, passados quinze anos, que a figura que fiz
«ficou», que não tem nada a corrigir, é um facto importante para um actor.
OMS – Quando começou essa carreira de actor?
Luís Santos – Comecei por ser amador de
teatro, com 16 anos, já lá vão 62. Tive então contacto com pessoas de teatro e
fui para o Conservatório, A primeira
pessoa que aí conheci foi a Irene Isidro, que começou a trabalhar também como
amadora, andando a frequentar o Conservatório. Andei lá, de noite, quatro anos,
visto as minhas possibilidades não me permitirem frequentar de dia.
OMS –
Quem foram os seus mestres?
Luís Santos - Augusto Melo, Carlos Santos,
António Pinheiro que eram técnicos de teatro, com quem aprendi muito sobre esse
aspecto, porque eram homens com muitos anos de profissão, e que tinham
aprendido com grande valores anteriores. Mas o pedagogo era o Araújo Pereira,
que tinha a noção do ensino. Nunca foi capaz de exemplificar para a gente ver,
ensinava cada um a procurar nas peças as chaves para a interpretação. Era
chamando a atenção para pequenos erros que a gente encontrava a solução para a
figura. Ele foi o Mestre.
OMS – A prática quando veio?
Luís Santos – Ainda era aluno do
Conservatório e fui fazer um apontamento nos «Criminosos» com o Alves da Cunha
no Politeama, mas a estreia como profissional, embora discípulo, é no Teatro
Apolo com «A Pluma Verde». Depois é uma peça com o Leopoldo Frois, mas adoeci
com icterícia e tive de suspender o trabalho o que levou a dizerem que era
tuberculose, valendo-me estar afastado mais de um ano sem trabalhar. Depois, lá
consegui fazer mais uns papelitos numa Companhia ou noutra, até voltar à
Companhia Adelina Abranches com o Alves da Cunha, mas a situação era tão má,
tão má que aos meus 26 anos abandonei o palco. Inscrevi-me no desemprego, onde
estive três anos, até que entrei para as Finanças; só em 1948 voltei ao teatro,
a convite do António Pedro, para o Teatro Apolo, onde fiz «O Chapéu de Palha de
Itália» e «Filipe II». Mas as condições continuavam a ser más, as mariquices,
as intrigalhadas, a incompetência e o atrevimento de muitos, fez com que me
fosse embora, outra vez.
Mais tarde, por volta dos meus 60,
estava a fazer um programa na Rádio Clube Português, a Helena Felix ouviu-me e
convida-me para o Teatro Estúdio de Lisboa. Fui fazer «As Mãos de Abraão
Zacutt», «O Lar», «Quem é esta mulher» e a «Cozinha». De novo as intrigas e
mariquices me afastaram do Teatro. Tive um grande desgosto, porque era a única
Companhia que tinha um teatro que me interessava, e devo dizer, apesar da minha
mágoa, que a única pessoa que reconheceu algum mérito em mim, e me deu trabalho
que se visse, foi a Luzia Maria Martins.
Sai dali, fui fazer um farsa
italiana com o José Viana e a seguir o Artur Ramos chamou-me para fazer umas
coisas no Maria Matos: «Platonov», «A Morte do Caixeiro Viajante», «Português,
Escritor, 44 anos» e tornei a ficar desempregado. Em 1981 voltei ao Trindade
com o «Ninguém» e resolvi não trabalhar mais.
OMS – Entretanto foi trabalhando em
peças para a rádio, fez televisão como «O Pensamento», «Frei Luís de Souza»… e
também cinema. Neste último o que fez?
Luís Santos – ora qui cinema desde
os 20 anos só me deixaram depois dos 50. Comecei com o «Fado corrido», «A
Promessa», «A Igreja Profana», «Brandos Costumes», «Confederação», «Velhos são
os trapos» … pequenas coisas em filmes franceses e alemães e acabei de fazer
uma coisa na «Balada da Praia dos cães» do José Fonseca e Costa e no «Desejado»
do Paulo Rocha.
OMS – A sua carreira foi sem continuidade porque
foi mal amado por uns, porque dizem que tem mau feitio, ou porque é muito
exigente?
Luís Santos – Nunca fui acarinhado
pelos críticos, apesar de o ser pelo público. Tenho uma grande satisfação: o
público percebe-me. Por exemplo, na televisão sempre fui maltratado. Alguns
dizem que sou muito exigente; é verdade que nunca me sujeitei à mediocridade.
Era funcionário dos Impostos e tinha o cartão de Funcionário do Ministério das
Finanças que tinha uma tarjeta verde e encarnada em diagonal no cartão, e isso
serviu para muitas coisas – quando as coisas eram do estado, eu era comunista,
quando não era do estado, era da PIDE. Era conforme lhes dava jeito.
OMS – Quais são os defeitos do nosso teatro?
Luís Santos – O primeiro grande
defeito é que quando havia grandes actores e encenadores, estes fecharam-se e
não ensinaram os novos. Havia uma discriminação. Os discípulos tinham que se
sentar em cadeiras à parte e não se podiam juntar aos antigos. Está aí o grande
erro, não os acompanharam, não os ajudaram e quando morreram, deixaram ficar um
grande vazio, porque havia actores sem experiência.
O segundo erro é a desgraça de que
quando as pessoas não sabem fazer mais nada vêm para o teatro, porque julgam
que isto é muito fácil, de maneira que temos um peso morto de gente que não
sabe fazer nada. Imitam os outros, repetem, mas no fundo não têm o espirito do
artista, não há nada lá no fundo, limitam-se a copiar, a mostrar que são
bonitos, que têm um belo físico…
Não sabem representar, porque não
sabem dissecar as personagens, porque se soubessem dissecar, analisar e ver o
que está na figura, já era meio caminho andado. Depois, são, ou não, capazes de
transmitir. Houve um grande actor que não teve grande público, nem foi bem
tratado pela critica, era um homem apagado, mas um excepcional actor-análise:
chamava-se Ferreira da Silva, into no tempo do Brasão e dos Rosas. Depois, houve
o Joaquim de Oliveira que também não teve grande público, mas era o actor da
precisão, de ir ao ínfimo pormenor. Esses actores não tinham o apoio dos
críticos, nem propaganda e morreram quase ignorados, apesar de excepcionais
artistas.
OMS – Para si a voz é um elemento fundamental?
Luís Santos – Aprendi a colocar a
voz com o Mestre Araújo Pereira. É muito importante saber, em relação ao
sentimento, à idade, à natureza da figura, qual a voz que se deve usar, e
conforme as situações mudar para a voz de peito. Garganta, cabeça, é preciso
saber dosear.. Muitas vezes há actores que estão a dizer verdades com a voz de
mentira, porque não aprenderam que a voz da mentira é a voz da cabeça. Sem se
aprender estas pequenas grandes coisas não pode haver actor.
OMS – Porque é que aceitou fazer agora o «Jardim
das Cerejas»?
Luís Santos – A primeira
vez que entrei na televisão levava um miúdo pela mão, era o João Lourenço por
quem tenho uma certa ternura, um rapaz com boa vontade, gosto, trabalhador
incansável. Andavam, à minha volta há mais de um ano. Acedi por simpatia ao
João Lourenço, e vim fazer a peça porque era com a Carmen, com a qual fiz o
único Tchekov como profissional, «Platonov». Além disso, devo ser o actor que
fez mais Tchekov em Portugal: «Platonov», «O Urso», «Trágico à Força», «Ensaio
no Banco», estudei «Os Malefícios do Tabaco» que não cheguei a fazer porque
morreu a Manuela Porto, e agora «O Jardim das Cerejas».
OMS – Como acha esta montagem?
Luís Santos – Durante os
ensaios passaram a realização do Peter Brook em França, para vermos, e devo
dizer que estavam todos abaixo de nós, excepto o Trofimov, que lá não tem o
relevo que aqui tem, mas o actor no pouco que fez marcava bem. Este é um pouco
mais fraco, porque quando fala tem tendência a subir a voz e desafina. O que
ele diz são verdades, é o próprio Tchekov, que nunca tomou atitudes políticas,
antes tem a subtileza de pôr o problema no aspecto social, sem o tornar
político, sendo político. No Trofimov as grandes verdades devem ser ditas numa
tessitura mais grave. Eu, quando faço de velhinho, mantenho a voz esganiçada, mas
quando da profecia, ou no final, desço o tom: “Também foi assim antes da
desgraça, o mocho piou e o samovar não parava de zumbir”. A tragédia reside nos escravos, que ficaram livres, mas passaram a
ser mendigos. A liberdade só por si, quando não há preparação para a saber
gozar, não vale nada. A liberdade na boca daquele velho tem sabor a desgraça e,
só no final é que ele entende: já não é o velhinho que recusou a verdade, mas o
ser humano que reconheceu que não chegou a viver – “A vida passou, é como se
eu não tivesse vivido”»
Luís
Santos é a personagem Firs, no «Jardim das Cerejas» de Tchekov, em
representação no Teatro Aberto.