Thursday, April 29, 2021

«João Abel Manta, a irreverência Gráfica» por Osvaldo Macedo de Sousa in «Artes Plásticas» nº 16 Fevereiro de 1992

 Se há arte de que Portugal se pode orgulhar neste século, é sem dúvida a das artes gráficas, já que quase todos os nossos mestres da pintura e até alguns da arquitectura, se debruçaram sobre este género, como sobrevivência, como experimentalismo… Inclusive, alguns deles apresentam-se como excelentes pintores quando não passaram de excelentes gráficos que souberam colorir a sua obra.

Um pintor e arquitectos da actualidade que se debruçou magistralmente sobre as artes gráficas foi João Abel Manta. Apesar dele, muita das vezes, menosprezar esta sua faceta, vincando-lhe a efemeridade para que foram concebidas; a temporalidade que respeitaram como acontecimento histórico; a tecnicidade que explorara como veiculo tipográfico que eram… somos obrigados a não respeitar essa sua humildade ou teimosia; somos obrigados a esquecer os seus desejos e redescobrir essa obra magistral que ele tanto deseja esquecer.

João Abel Manta (Lisboa 1928) é um artista plástico, filho de dois artistas plásticos (Maria Clementina Carneiro de Moura e Abel Manta). Como tal, desde criança que a sua vivência e educação estão embrenhadas da cultura e das artes. A vivência deu-lhe um espirito humanista, conhecendo desde muito cedo, ao vivo, as obras dos clássicos e dos contemporâneos, através das viagens pela Europa. Conhecendo desde muito cedo todos os problemas culturais do seu país, através de tertúlias do Chiado e de sua casa, onde seus pais eram reis.

Esse espírito humanista, levou-o não só a uma cultura ampla, eclética como liberal, colocando-se desde muito cedo ao lado da juventude irreverente que se opunha ao regime, que se opunha ao modernismo já academizado. Por isso, não será de estranhar que as suas primeiras obras fossem influenciadas por um certo surrealismo e neo-realismo, estilos que se entrecruzavam como vanguardas do momento. Participará na II Exposição Geral de Artes Plásticas da SNBA e as suas obras, como a dos outros, apreendidas pela polícia.

Paralelamente a esta educação paternal e vivencial humanista, João Abel Manta teve outro factor educacional que o influenciaria profundamente nas artes – o curso de Arquitectura. Fê-lo entre 1946 e 51 na ESBAL.

João Abel gosta muito de citar a seguinte frase de Saul Steinberg: «O estudo da arquitectura é um treino maravilhoso para tudo, menos para a arquitectura. A ideia assustadora de que aquilo que se desenha se pode transformar num edifício, faz com que a nossa maneira de desenhar se torne ponderada e racional». Dessa forma, os seus trabalhos gráfico e pictoral, foram também enriquecidos com essa ponderação e racionalidade.

A ponderação e racionalidade expressam-se através de um trabalho de minúcia, de pesquisa das melhores formas de atingir o objectivo estético. O humanismo expressa-se através da diversidade de estilos, optando-o, consoante o tema, o fim da obra. Essa riqueza de técnicas e estilos ficou logo expressa desde os seus primeiros trabalhos publicados, seja em periódicos, como edições bibliográficas, ilustrando nomes como Boccaccio, Dante, Cervantes, D. Francisco Manuel de Melo, Padre António Vieira, E. Waugh, Aquilino Ribeiro, Ferreira de castro, José Cardoso Pires… o desenho torna-se então como componente intrínseca da obra, desdobrando-se no mesmo estilo literário e estético.

O desenho, como alicerce da obra plástica, domina então toda a sua obra. E será esse poder mágico, que o consagrará com os primeiros prémios da carreira – Prémio de Desenho na II Exposição de artes Plásticas da Fundação Gulbenkian (1961); Medalha de Prata na Exposição Internacional de artes Gráficas de Leipzig (1965)… Esta sua preocupação de nunca ficar soterrado por um estilo, levou-o a desenvolver outros trabalhos gráficos que não eram vocacionados para a impressão, podendo assim desenvolver muitas das técnicas que o trabalho tipográfico não deixa explorar, por questões técnicas ou económicas do nosso país. Desses trabalhos criados na década de sessenta destacam-se as séries de «Shakespeare», dos «Missionários», «Piazza», «Santo Ofício»… plenos de magia, teatralidade, erotismo, opressão…

Apesar de não estar abertamente manifesto, há sempre por detrás da ideia destas obras, uma irreverência política, atacando a falsa moralidade da sociedade pelo erotismo, desmascarando os catequizadores das colónias, expondo mecanismos da tortura. É a actualidade disfarçada de história, pela ironia, pelo surrealismo e magia do pormenor perdido numa vasta cena.

É preciso não deixar de reparar no poder técnico das obras, na qualidade estética do miniaturista e do cenógrafo, originando uma «realização» impar das artes plásticas.

Dentro desta riqueza estética e técnica estão os trabalhos que mais tarde realizará (1981 a 85…) no «Jornal de Letras, Artes e Ideias». Este jornal, nos seus primeiros cinco números é totalmente desenhado por João Abel, em que as capas são pequenas obras-primas de grafismo numérico, plenas de ironia, em fotomontagens de símbolos da realidade e do onírico. O interior, até ao número dez, é uma lição de versatilidade e domínio das técnicas possíveis do retrato, da ilustração. Depois deste triunfo gráfico, a pintura tem dominado o seu espírito, sendo ciumento de qualquer outro género artístico.

Entretanto, pelo meio ficou uma experiência demais relevante para a arte portuguesa – o desenho de humor.

Desde muito cedo que a ilustração humorística surge na sua obra, publicando tanto no «Século Ilustrado», como no «Almanaque», «Eva», «Seara Nova», «Gazeta Musical e de todas as Artes». Já aqui optava por um estilo que se demarcava do que se fazia na época, porém seria a partir de 1969 («Diário de Lisboa» / «Mosca») que a sua contribuição neste género artístico iria revolucionar o meio.

O humor, a caricatura, com a longa ditadura, tinha-se esmorecido na sátira e fundamentalmente na estética. Vingava então o anedotário e um modernismo academizado num certo amadorismo gráfico. Abel manta impõe, não só um humor inteligente e actuante, como lhe restitui o seu papel de vanguarda, conjugando a fotomontagem com a ironia, a Pop-arte, Op ou infografia com a irreverência satírica. Jogando com o surrealismo e absurdo da vida política de então, ele cria um estilo incisivo e actuante, onde o censor se sentia desarmado e impotente. Uma das raras vezes que o censor descobriu, á posteriori, a armadilha que João Abel manta lhe tinha imposto, foi no «Nacional-Cancionetismo», uma charge ao Festival da Canção e da Bandeira-Nacional, que lhe trouxe um processo judicial (que acabaria por ganhar).

As suas vitimas, foram então os símbolos do regime, da história deturpada por esse regime, a vida parolamente enclausurada do português «orgulhosamente só» ou a política internacional. Com este trabalho, João Abel Manta reinventou a caricatura política em Portugal.

Com o 25 de Abril e a explosão de liberdade, o anti-fascista transformou-se no porta-bandeira da liberdade e da democracia, vivendo no «cartoon» as novas esperanças, desgraças, sonhos e pesadelos da luta revolucionária. Foi um sonho efémero, reunido num álbum, em 1975.

Perante o esmorecer das esperanças embriagadoras, perante a realidade dos brandos costumes portugueses, onde os patrões não mudam, apenas o seu traje, o cartoonista retira-se da liça, sem contudo se sentir derrotado. Do seu eremitério, em 1978, João Abel manta impõe um momento de reflexão – cria o manifesto da sua geração, em estilo humorístico. Era a «necessidade de relembrar que houve fascismo e em que consistia». Este álbum - «Caricaturas Portuguesas dos anos de Salazar» é um marco da história do humor, da história sócio-política da história da arte.

Abandonando o cartoonismo por quebra de necessidade interior de intervenção, a sua obra permanece como um mito do humorismo de uma «terceira geração» modernista, que não existiu, permanecendo como uma «ilha» que (ainda) não fez escola entre nós.

Estas ruturas com o humorismo, com as artes gráficas deixam um amargo de boca no amante das artes, visto nem termos o direito de encontrar a explosão estética nestas artes maiores. João Abel manta é a ausência mítica, ao mesmo tempo que é o símbolo vivo dessas artes. Se a arquitectura sempre existiu, de uma forma discreta, e mais internacional que nacional, fica-nos a curiosidade de um dia podermos descobrir a pintura que tanto o ocupa, mas ainda desconhecida do grande público.

Enquanto isso não acontece, poderá recordar o seu trabalho nas salas do Museu Bordallo pinheiro em Lisboa.


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