Friday, April 09, 2021
«Carlos Corujo, variações em “Z”» por Osvaldo Macedo de Sousa in «Artes Plásticas nº 12 Julho de 1991
As variantes de coordenadas de um ser humano podem-se
apresentar lineares, ou sinuosas como um «Z». Z de Zíngaro é uma variante de
identidade de Carlos Corujo, de Carlos Magalhães Alves, uma alcunha que se
impôs mundialmente e que hoje o próprio artista, que ele é, tem dificuldade em
tornear. É como uma «fatalidade» de nomadismo de artístico que o músico Zíngaro
impõe, contra a ambição sedentária do Carlos Corujo artista plástico.
Carlos «Zíngaro» é um dos nomes mais sonantes em todo
o mundo (ressalvo Portugal), no campo da New Music. Para além de
compositor-interprete, com espectáculos a solo ou parcerias (com sete discos
editados no estrangeiro), Carlos «Z» é também compositor de múltiplas músicas
para teatro e bailado.
Carlos Corujo «Z» apesar de conhecido no meio da BD,
do cartoon, da ilustração (Premiado frequentemente nestes sectores), ainda é um
desconhecido do grande público, não só no reconhecimento da mesma pessoa para
as duas actividades artísticas (o músico e o artista plástico), como da sua
obra real pictórica.
Essa falha pode ser alterada com a sua nova exposição
individual, que se inaugurou a 29 de Junho na Galeria de Colares.
É este artista, atraente pelo seu mundo estético e
pela sua imagem enigmática, que resolvemos ir descobrir.
OMS – É importante para ti a realização desta tua
terceira exposição individual?
Carlos Corujo «Zíngaro» – Claro que é, apesar de viver o facto com uma certa distancia. A
realidade está que não procuro uma Galeria, como não procuro uma Editora
discográfica. Ao longo destes anos de actividade artística, e já são longos,
nunca me preocupei com a noção de deixar obra. O que eu quero é tocar, pintar,
compor. Depois se as coisas ficam num livro, ou são expostas ou não, é uma
coisa sobre a qual penso pouco, talvez para não me deprimir.
Se aparecesse
alguém empenhado em me lançar nestas “aventuras”, óptimo, e então é importante
para mim. Eu até agora nunca preparei uma exposição e por isso as duas
exposições anteriores chamaram-se “Páginas d’um Diário”, como
mini-retrospectivas do que ia realizando ao longo dos anos.
OMS – Recuando nesses anos, quando surge Carlos Corujo
Magalhães Alves, ou o Zíngaro?
Carlos Corujo «Zíngaro» - O «Zíngaro» surge com os meus estudos de violino, enquanto o Carlos
nasce em 1948 e o pintor quase vinte anos.
OMS - É o final da década de sessenta, o período
«psicadélico», em que chegas a participar num Salão de Pintores de Domingo no
Estoril, onde vendes os três trabalhos expostos e ganhas um prémio. Qual tinha
sido a tua escola?
Carlos Corujo «Zíngaro» - Desde criança que eu desenhava e pintava, por mimetismo ao meu pai, de
resto era um autodidacta com breves incursões turísticas em Belas Artes, já que
aparecia lá de longe a longe a umas aulas de Desenho de estátua, para fazer o
exame de admissão a Arquitectura. Depois, por vários motivos desisti. Na
altura, a música já tinha uma preponderância, estava metido nos grupos rock…
tinha o tempo muito ocupado.
OMS – Foi nessa altura que foste para África, onde
mantiveste a tua actividade artístico-plástica. Como era esse mundo?
Carlos Corujo «Zíngaro» - Nos anos sessenta eu sou influenciado pela BD, as correntes a que se
convencionou chamar “underground” da Costa Oeste dos EUA, ou que lhes chamam
também psicadélicas… pelo surrealismo… era uma enorme confusão. Depois, em
África “adaptei” algumas dessas tendências para elementos africanos, a cor, a
forma, sem andar à procura verdadeiramente de elementos étnicos. Era mais o
espírito, do que uma vivência concreta da plasticidade do mundo estético
africano.
OMS – Em África, chegaste a expor?
Carlos Corujo «Zíngaro» - Fiz exposições numa livraria de Luanda, só que para mim não passavam de
uma curiosidade, uma graça. Soube também que uns desses trabalhos, comprados
por um colecionador, estiveram expostos numa colectiva em Durban.
OMS – A guerra colonial influenciou-te nessa tua linha
surrealista?
Carlos Corujo
«Zíngaro» - É uma das influências. Essa ideia de surrealismos praticamente não
existe no meu trabalho, antes influências de pintores como Ives Tanguy…
OMS – A esse
espírito “surrealizante” aliava-se um barroquismo…
Carlos Corujo «Zíngaro» - Sim, era minucioso, cheio, onde há um enorme barroquismo, que em África
servia quase como exercício terapêutico. Era o andar às voltas num elemento
indefinido, desligando-me da realidade da qual não podia fugir. Era uma
realidade de tal forma deprimente, e presente que só extravasando, mesmo que de
uma maneira muito frágil, através do desenho e pintura é que podia
eventualmente chegar a um outro estado de consciência, o que era também
relativo.
OMS – Esse
elemento terapêutico ainda se mantém.
Carlos Corujo «Zíngaro» - Por outras razões, sim. É um facto de que se eu estou a desenhar ou a
pintar, sem qualquer tipo de compromisso, é extremamente relaxante, como é a de
músico e compositor.
Como
compositor, tenho que satisfazer encomendas e algumas de las não são cem por
cento coincidentes com a minha maneira de sentir, automaticamente provocando
uma situação stressante; por outro lado, o compromisso de encomendas com prazo.
Depois, a
actividade como músico concertista, que é uma situação traumática (enquanto
stressante) de ir para cima do palco tocar perante um público, depois as
reacções desse mesmo público, dos intermediários, etc. Com a agravante do alto
risco em que me encontro, pela estética, pelo tipo de música, pelo tipo de
opções que eu fiz. Uma opção em que estou sempre a forçar-me e a focar o
ouvinte. Isso implica naturalmente uma tensão. Esta é uma actividade pública,
enquanto que a pintura é isolar-me, desligar do resto, numa atitude íntima.
Evidentemente que o trabalho gráfico, um desenho, poderá, através de uma
publicação, de uma exposição, ter uma leitura pública, só que a distância é
maior, não é directa, é uma outra reacção, onde o feed-back directo,
executor-público não existe, tem outra dimensão.
Quando estou
a desenhar ou a pintar, não estou a pensar que vou expor, é antes sem
compromisso, relaxante, terapêutico. É a única altura em que me permito
instalar, naquela ideia de torre de marfim.
OMS – Será que a tua pintura vive o mesmo
experimentalismo que a tua música, a improvisação, a variação sobre uma ideia
estética…
Carlos Corujo «Zíngaro» - A improvisação, como eu a entendo, baseada em determinados critérios e
estruturas, a liberdade, é que me interessa na pintura. Por exemplo, quando eu
vou fazer um cartoon, eu próprio me determino um tema, que depois vou
«Ilustrar». Essa «ilustração» pode não ser literal e altamente dúbia, porque é
essa a minha maneira de ver as coisas, sem uma leitura imediata de humor. Não é
aquele trabalho para o qual uma pessoa olha e ri, há um sentido crítico na
ironia e não na sátira. Eu gostaria que ficasse na mente das pessoas e,
passados um dia, ou dois, se lembrassem e vissem diferentes leituras. Claro que
quando faço um desses trabalhos, tenho uma ideia precisa do que quero fazer e
como.
Quando pinto,
raramente sei onde vou e mesmo que eu force o tema, de repente já estou a fazer
algo diferente.
OMS – Voltando ao teu percurso biográfico. Algo de
diferente foi o que fizeste quando regressaste da guerra, ou seja a cenografia.
Como aconteceu?
Carlos Corujo «Zíngaro» - Por acidente, como há uma quantidade e coisas que são acidentais no meu
percurso. Chego em finais de 1972 e no início de 73 leio a notícia da
inauguração da Escola de Cinema no Conservatório Nacional de Lisboa, e da remodelação
da Escola de Teatro. Fui então falar com Seixas santos, o director da Escola de
Cinema, porque me interessava o cinema de animação e julgava que lá poderia
haver, mas ele desiludiu-me logo. Então, como queria fazer qualquer coisa,
inscrevi-me na Escola de Teatro, Curso de Cenografia. Não porque me
interessasse a cenografia de teatro, já que o teatro que conhecia cá não me
interessava em nada, mas tinha a ideia de poder vir a fazer cenografia de
cinema e bailado. O bailado tem outros princípios estéticos, assim como o
cinema, mas uma coisa é o que uma pessoa diz gostar de, outra a realidade.
Acabo o
curso, fico como assistente de Desenho e, entretanto, porque estou lá dentro,
sou convidado como músico para a criação do grupo de Teatro Os Cómicos.
Resumindo, a minha actividade como cenógrafo – fui assistente da cenógrafa
inglesa Gilliam Daniel na primeira peça dos Cómicos (As Cuecas), fiz a
cenografia de «A Noite dos assassinos», «Do Teatro ao Cais do Soudré», isto em
76, e em 80, no final dos Cómicos como grupo de teatro, «Retrato de um amigo
meu enquanto falo». Há três anos, faço finalmente uma cenografia para o Ballet
Gulbenkian (uma coreografia da Margarida Bettencourt) e nunca fiz cinema.
OMS – Foi nesse período que coincidiu a tua época de
ouro da BD.
Carlos Corujo «Zíngaro» - Sim, um período áureo muito limitado, pois cinge-se ao aparecimento da
revista «Evaristo» que durou quatro números; da «Visão» que durou uma dúzia; e
o «Ovo» que durou um (estamos a falar de 1975/76). Claro que a «Visão»
impõe-se, onde realizei a minha única BD a cor. Isto é tão pouco significativo.
OMS – Creio que depois há um lapso de 76 a 84, no
aparecimento público, que só volta a acontecer na exposição «Páginas d’um
Diário» na Galeria Stuart em 1984.
Carlos Corujo «Zíngaro» - Sim, há um período largo em que, não é propriamente desistir, mas em
que desenho pouco. Na verdade retorno a desenhar e pintar a partir de 1981,
altura em que colaboro no «Pão com manteiga» e, principalmente, começo a
dedicar-me mais à pintura, e por isso essa exposição individual.
OMS – Chamou-se «Páginas d’um Diário», por ter aquele
cariz terapêutico do dia-a-dia?
Carlos Corujo «Zíngaro» - Era o estar a desenhar, quando via televisão, nos intervalos dos
ensaios… em espaços em que me podia relaxar…
OMS – Hoje ainda fazes esse estilo de Diário criativo,
de desenho quotidiano?
Carlos Corujo «Zíngaro» - Ainda faço, mas agora, mas agora ao nível do esboço, coisas pequenas a
pensar em coisas concretas do futuro, uma instalação, ideias para trabalhos de
uma exposição, ou para o cartoon que tenho de entregar. Já não é um elemento do
culto do lazer, mas um trabalho específico de preparação de. Isto tem a ver com
o vislumbrar, na actualidade de novas perspectiva mais concretas de haver um
fim possível para os trabalhos que crio.
OMS – Nessa quebra de 76 a 81 há uma alteração no teu
traço, que tem evoluído até hoje. São novas influências, novas opções?
Carlos Corujo «Zíngaro» - Não são novas. São épocas estéticas e não influências, porque essas
sempre existiram. Mesmo nos finais de sessenta, quando estava mais ligado ao
rock, já era atraído pela arte japonesa, pelos desenhadores do princípio do
século, pela expressionistas alemães, pelos desenhadores de BD que fazem outro
tipo de BD, mais próximo da pintura, do que de contar histórias… É esse
elemento pictórico na BD, a página que é um mundo plástico, estético e
eventualmente narrativo que me interessa… Com o andar dos anos, com o
envelhecimento ou amadurecimento, como se quiser dizer, eu vou depurando, vou
deixando de comprar BD e a comprar livros de arte, passo a pretender outra
coisa. Comecei a apurar, em termos de referências àquelas linhas, correntes,
estéticas que se desenvolveram muitas das vezes à marghem de modas ou de
escolas, como Francis Bacon, Kokoshka… e a violência da imagem…
OMS – No teu trabalho há todo um mundo de seres, que
naturalmente podem ser considerados fantásticos, surrealizantes…
Carlos Corujo «Zíngaro» - Eu não lhes chamo nada e não concordo com essas referências, porque o
elemento que utilizo sistematicamente é o humano.
OMS – Mas deformado…
Carlos Corujo «Zíngaro» - Deformado, porque o elemento humano em si é deformado, e porque essa
visão é eventualmente o que vem da minha ironia, sátira, ou da minha leitura
pessimista. Eu gosto muito do ser humano, fascina-me, mas é obvio que quanto
mais o conheço, mais crítico eu sou. Não estou a pretender, longe disso, de dar
mensagens, é uma coisa intima, é muito a minha leitura do ser humano.
OMS – É o extravasar os teus demónios interiores?
Carlos Corujo «Zíngaro» - Não propriamente os meus, mas os demónios de todos nós. Não os
reivindico como meus.
Por que é que
evito as designações de surrealismo e fantástico? Porque são sistematicamente
conotadas com um transcender a realidade, um alheamento onírico. Não é nada
disso, é a realidade, é visceral. É talvez ver o homem através do bisturi, da
violência.
OMS – Ultimamente o teu trabalho tem deixado o
predomínio do traço para investigar a cor.
Carlos Corujo «Zíngaro» - É uma coisa que me custa muito, o menosprezar o valor do desenho. Para
mim o desenho é o fundamental de tudo.
OMS – Sempre foi, até este século.
Carlos Corujo «Zíngaro» - Tem um valor próprio. Devo dizer que é incomparavelmente mais difícil
fazer um trabalho a preto e branco, e dar-lhe uma dimensão válida, do que a cores.
Para mim, é mais fácil, e eu sou um fanático do desenho, fazer um quadro a
cores. É mais fácil atingir uma série de emoções, expressão com cor, do que
limitado a preto e branco. Isso faz com que quando trabalho a cor, limito a
paleta.
É-me difícil
considerar um desenho como preparação para a pintura, porque se vou pintar,
estou a pintar como se estivesse a desenhar.
OMS – A
investigação da cor, são variações do desenho em cor?
Carlos Corujo «Zíngaro» - Exacto. Mas há outro problema. Eu tenho uma enorme facilidade em
desenhar e essa facilidade por vezes torna-se demasiado perigosa na pintura.
Isso leva-me, por vezes, a fazer coisas ostensivamente «guache», literalmente
«guache», isto é, o desenhar com a mão esquerda. Como não estou habituado,
falham, mas é este falhar intencional, esta não facilidade do traço que eu
pretendo, senão as coisas saem demasiado limpas, demasiado fáceis.
OMS – Essa facilidade de desenho levou-te a um
trabalho híper pormenorizado, que por vezes atinge um certo abstracionismo.
Carlos Corujo «Zíngaro» - Foi isso que ao longo dos anos fui cortando, fui tentando retirar o
exagero, a ornamentação, o supérfluo, procurando uma síntese, numa visão quase
«zen» de precisão da pintura, ou desenho sumi. São meia dúzias de traços que tem
de lá estar e acabou.
OMS – Isso faz-me lembrar um velho problema teu. Fazes
esse trabalho com uma grande precisão mental, mas não literário, porque nunca
pões nomes nos teus trabalhos.
Carlos Corujo «Zíngaro» - Isso é um drama, ou seja, utilizar a palavra em qualquer contexto. Se
for obrigado, eu escrevo, falo, mas como tenho outros dois elementos de
comunicação, a música e a pintura, eu evito utilizar palavras. Com os quadros é
a mesma coisa, faço-os e acabou. Nunca penso num título antes. Faço-o no cartoon,
porque é outra linguagem, outro objectivo.
OMS – O
Cartoon nasceu como um derivado da BD?
Carlos Corujo «Zíngaro» - Sim, nas revistas de BD publiquei alguns cartoons, depois aconteceu o
«Pão com Manteiga»; em 1981, o «Bisnau», «Gazeta de Artes e Letras», o
«Europeu» (que não chegaram a publicar), «Liberal», «Rev. São Carlos» e «Artes
Plásticas».
É na «Gazeta
de Artes e Letras» que surge o lado visceral, abandonando gradualmente os
barroquismos, para uma maior preocupação estética. Acho que cada vez mais
procuro que o desenho de humor tenha conotações com a pintura, o triunfo do
grafismo, do lado plástico.
É um facto
que os cartoons para a a «Artes Plásticas» têm muito pouco a ver com a pintura
ou desenho que faço para mim. O cartoon é um desenho a linha clara, de caneta,
e isso dificulta-me a liberdade de traço. Acho fantástico que desenhadores como
o Steadman, o Scarfe consigam ter aquele tipo de expressionismo, gestualismo
com a caneta. Isso é o meu objectivo no cartoon. Curiosamente já consigo ter esse
gestualismo e liberdade quando estou livre, quando desenho para mim.
OMS – Isso porque o teu desenho-pintura não sai de
fora para dentro, como o cartoon, mas de dentro para fora, ou seja, as memórias
e vivencias filtradas.
Carlos Corujo «Zíngaro» - Creio que é isso, já que nunca consigo pôr-me em frente de algo e desenhá-lo. Logo após os primeiros traços, introduzem-se uma série de elementos, que é já o meu mundo a «improvisar». Isso talvez seja uma falha de rigor conceptual, precisão temática. Por essa razão, penso dedicar-me com mais afinco à minha próxima exposição. Sempre tive ideia de realizar séries baseadas num tema, mas nunca tive essa possibilidade por falta de tempo. Agora gostava de realizar uma série sobre «Ex-votos», baseada numa tradição muito portuguesa.