Saturday, April 03, 2021

«Carlos Botelho, um Eco de Lisboa» por Osvaldo Macedo de Sousa na revista «Artes Plásticas» nº 10 Junho 1991

 Houve tempos que Lisboa, como aldeia-mor de um país-província se podia gabar de ser tema predilecto para canções, pintores, humoristas. É certo que de tempos a tempos ainda se cantava o nome de Lisboa, e os pintores para poderem vender, retratavam os recantos ou as formas mais pitorescas. De qualquer modo perdeu-se aquele misticismo da cidade, tal como Stuart Carvalhais ou Carlos Botelho a viveram.

Ao Botelho referem-se sempre como o «pintor de Lisboa», não só pela temática preponderante na sua obra, mas também porque ele se apresentava como pintor – o retratista de Lisboa («sou um pintor de cidades, e retrato-as como retrataria pessoas»), apesar dos seus quadros alfacinhas estarem despovoados dessa fauna poluidora, dos construtores de cimento e detritos…

Só que, nem só de paredes, geometrismos urbanísticos vive o pintor e ele soube também ser retratista da sociedade, através do humor.

O «caricaturista» de Lisboa é também ele, e não é ele. Já o Nogueira da Silva, na década de cinquenta de oitocentos fez excelentes retratos sociais, a par do Manuel de Macedo; Bordalo Pinheiro não deixaria de apresentar a vida de Lisboa, através do cartoons políticos. Lisboa, no século XX teve já um Jorge Barradas e um Bernardo Marques a humorizar a sociedade cosmopolita, assim como um Stuart Carvalhais. Este, será talvez o titular mais certo para o epiteto de «Caricaturista de Lisboa», ao imortalizar as pernas das varinas, os garotos, os gatos, as escadinhas e vielas da cidade velha, os ardinas, os Zés alfacinhas… Assim, Carlos Botelho foi também um caricaturista de Lisboa, não como o traço lírico Stuartiano do povo, nem um arabesco modernista de uma sociedade pseudo-modernista de um Barradas ou Marques, mas como o cronista, um eco do quotidiano feito grafismo, num discurso possível na «não história oficial».

Creio que não é necessário apresentar o pintor/humorista Carlos Botelho, nascido em 1899 em Lisboa e falecido na mesma localidade em 1982. Se a pintura foi o género que melhor o projectou no panteão nacional das artes, não menor importância teve o seu lado humorístico, como fonte enriquecedora da visão gráfica e estética da cidade, do estilo modernista. No âmbito pessoal e criativo, também seria importante a sua faceta musical. Violinista amador, conquistava a harmonia e melodia interior, nos serões do seu quarteto de cordas semanais. São todas estas vertentes que enriquecem o homem-artista, o homem que sobrevive sempre sob o peso das tintas e das telas.

Como já referi, o lado humorístico foi importante para o homem-artista, foi importante para as artes nacionais. Como começou esta aventura? «Quem me recebeu foi o Pedro Bordalo, administrador, que era um homem muito atencioso. Eu levava uma folha com desenhos de crítica à vida de Lisboa. Ele viu, viu com atenção e só me perguntou assim: você é capaz de fazer esta coisa todas as semanas? – Respondo que sim. Fiquei vinte e dois anos no Fixe» (de Maio de 1928 até Dezembro de 1950, ou seja cerca de 8.000 pranchas de desenhos).

Assim nasceu um humorista, em 1928, num jornal que marcaria uma época com uma geração nova de humoristas, a geração do «Sempre Fixe» (a par com a velha geração), na qual o Carlos Botelho é um dos mais destacados representantes. A sua arte de humor era um pouco diferente da dos seus companheiros, já que estes a procuravam fundamentalmente pelo traço caricatural, ou pelo lado da crítica política, enquanto ele traduzia em grafismo linear as atmosferas, a vivência.

«A pessoa interessa-me no humorismo, no portrait-síntese porque aí sou livre. Pela caricatura nunca tive grande interesse. A caricatura é a anedota e não podemos passar o dia a contar anedotas. Com o humorista é diferente: é a crítica a factos, a situações /…/. De resto, está perfeitamente integrado na minha maneira de ser, porque me interesso sobretudo pelos ambientes: na pintura procuro traduzir os ambientes das grandes cidades ou de populações; no humorismo é ainda o ambiente que me interessa – a crítica à sociedade».

A sociedade era o tema da sua página de «Ecos da Semana» no «Sempre Fixe», onde «fazia um apanhado do que se passava no país, com especial interesse por Lisboa». Uma página onde o desenho não aparecia como interesse informal (apesar deste existir como criação gráfica), mas suporte, como «armação linear». A ironia reinava em crítica a uma sociedade que desejava ser mundana, quando era provinciana, que desejava ser política, quando tinha que ser apolítica, que desejava ser aberta, quando a censura reprimia.

Nos «Ecos» ficaram registadas as presenças de músicos famosos, políticos, desportistas, gente anonima… assim como ficções simbólicas dessa mesma sociedade rica em tipicismos castiços, provincianismos e más educações. Esses personagens da «Comédia dell’arte» alfacinha foram:

- «Piu» (que deveria ser, nem pio! Ou silêncio!) - «o mocho que ocupava por vezes o espaço dos desenhos censurados», ou aquilo que o artista gostaria de dizer e só mencionava entre linhas. Dessa forma, Botelho criava uma simbologia crítica à falta de liberdade de imprensa, um símbolo da inteligência que se opunha ao obscurantismo, que significava a castração das ideias. Foi criado a 2 de Julho de 1930;

- «Sr. Parecemal» - a crítica ao falso moralismo, tipificado no individuo de botas de elástico (tal como os Dantas – Salazar), sobrecasaca e gravata, como fachada civilizadora, que caracteriza os subservientes do Estado Novo. Foi criado em 16 de Julho de 1931;

- «Escarra & Cospe» - a Lisboa porca, onde a salubridade é posta em causa numa sociedade dita civilizada. Quem o personifica é o marialva, o fadista que não dispensa as tradições de má educação. Foi criado a 1 de Novembro de 1934;

- «D. Encrenca» - a senhora bojuda, que só complica a vida, representando o espírito intriguista do nosso povo, em especial da mulher pequena burguesa citadina. Foi criada a 6 de Junho de 1935;

- «Arrepiadas» - «inspirada nos penteados das senhoras refugiadas, que não tinham dinheiro para ir ao cabeleireiro e criaram uma moda de penteado: arrepiado». É a critica às novas modas, de uma sociedade sem capacidade económica de acompanhar os modernismos. Essa personagem passaria depois a chamar-se «D. Pôpada», pelo seu penteado com popa, o que também quer dizer entre linhas poupada. Foi criada a 19 de Setembro de 1940.

Estes anti-herois anónimos, mas universalizantes cohabitam com os possíveis intervenientes deste registo para-histórico. Era difícil fazer comentários à política nacional, principalmente com o correr dos anos e endurecimento da ditadura. O mesmo aconteceu com a política internacional, onde ainda se deslumbra umas críticas a Mussolini ou ao Hitler, mas onde não se vê  o registo da Guerra Civil de Espanha ou do fim da II Grande Guerra.

Sofreu muitas vezes com a censura, que retalhava uma prancha, que proibia a página inteira, obrigando-o a remendos de última hora e a uma constante auto-censura inicial, para não ter problemas posteriores. Ou seja, uma vida normal do jornalista de então.

Carlos Botelho, um «eco» humorístico da sociedade alfacinha e nacional, a não esquecer.


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