Thursday, April 08, 2021

«A outra face de Júlio Resende» por Osvaldo Macedo de Sousa in «Artes Plásticas nº 12 julho 1991

 O Homem Público é sempre apenas um aspecto limitado do ser, tal como o drama é um lado restritivo da vida quotidiana. Existe sempre um outro lado oculto da lua, seja humorístico, sentimental, banal, anacrónico, anónimo… No caso do artista plástico, a face visível do iceberg é a obra, mas mesmo essa pode estar travestida sob pseudónimo, escondida na intimidade privada…

Por detrás de um mestre reconhecido em expressionismo irreverente, que explora a tela desde o geometrismo abstracionista, passando pelo neo-realismo, gestualismo… que se sensibiliza desde o populismo alentejano à citadina Ribeira Negra… está Júlio Resende.

Desde muito cedo que Júlio Resende foi reconhecido como mestre entre uma geração estética do pós-guerra. Não só pela expressão plástica da sua obra, mas também pela irreverência vivencial, numa acção dinamizadora de grupos artísticos independentes, numa perspectiva de veículo de experiências internacionais por ele bebida em Madrid, Paris…

O espaço pictórico de Resende, teve sempre como linha condutora a multiplicidade de tendências, o experimentalismo, a irreverência, a curiosidade no acto criativo, um guia que se reflecte na sua vida.

Desde muito cedo que a «aventura» se instalou no seu quotidiano, não como irreverência contestatária ou esporádica, mas como vivência telúrica, anti monotonia ou comodismo. Como parceiros destas suas «aventuras» da juventude, teve o seu irmão António e o primo Fernando Lanhas.

Uma das primeiras «aventuras» foi um jornal, feito ao copiografo e destribuido pela família, amigos, vizinhos, onde o humor era chave de sucesso.

OMS – O que é para si o humor?

Júlio Resende – O humor pode ser uma forma de estar, sentir e reconhecer o mundo pela óptica que se põe a descoberto, uma realidade transgressora das convenções.

OMS – Depois surgiu a Rádio e seus tempos de pioneirismo, onde mais uma vez o «Senhor Arrepiado» triunfava pelo humor, esse humor travestiu-se em «Juca», o palhaço pobre. Fazendo parelha com o seu irmão, tornaram-se palhaços amadores do sport Clube do Porto. Júlio explorava assim a súmula do humor, da aventura irreverente na humanidade, no sentimentalismo do bobo…

Júlio Resende – Para mim, era reconfortante e me bastava ver sorrir as crianças nos Sanatórios. Até cheguei a tocar na pista vários instrumentos, como o saxofone, o banjo ou até o insólito serrote…

OMS – è um género de pré-historia do «Nariz vermelho» nos hospitais. Era palhaço, humorista por necessidade interior?

Júlio Resende – Nos anos 30 e 40 a necessidade fez de mim um «humorista», mas certamente que já o era… Não tenho qualquer menosprezo por essa forma de comunicar, até por admitir que ela pode muito bem ser criativa.

OMS – Nos anos de estudo de Belas Artes fazia desenho publicitário, para ganhat algum dinheiro e creio que também BD e «bonecos» humorísticos.

Júlio Resende – Não disponho de dados seguros, mas foi nos anos 30 que iniciei uma actividade colaborante nas secções infantis do «Jornal de Notícias», no que era acompanhado pelo meu irmão António. Sem dúvida que eramos motivados por uma necessidade interior, por essa razão sanguínea. Então assinava Resende em maiúsculas. Imagine-se!...

OMS – A sua irreverência, e «engagement» político nunca afectaram esse trabalho jornalístico?

Júlio Resende – Histórias e «bonecos» eram concebidos e tinham um destino que era o leitor jovem, que nos anos 40 e 50 se afeiçoara ao «papagaio». Nunca essa actividade foi contrariada, de tal modo inofensiva era….

OMS – No campo do humor houve uma série de heróis críticos, com destaque de um trabalho, ao longo da década se sessenta no «Primeiro de Janeiro»

Júlio Resende - O «Matulino Matulão», o «Senhor Arrepiado», o «Feli Feli» e tantos outros foram concebidos no entendimento humorístico. Matulão alimentando os caprichos do Matulino, certamente com uma intenção crítica, fez algumas gerações leitora do «Primeiro de Janeiro». Então já há muito assinava o pseudónimo «OVAS» como exteriorização de uma parte de mim própria.

OMS – Júlio Resende exteriorizava parte do seu ser no humor, no «boneco» ou na história aos quadradinhos, numa acção pública, mesmo que disfarçada sob pseudónimos. Só que nem sempre a vida pública aceita concorrências: «A pintura exige a totalidade do ser. Uma opção que se impunha».

Porém, nada morre, tudo se adapta e essa vivência humorística interior do quotidiano, transformou-se em apontamentos de viagem, em notas de diário que é escrito ao fim do dia como exorcismo, como «resumo», como gozo: «o registo do chamado «boneco» é um gozo para mim próprio. Apenas isso».

Esse gosto caligráfico do desenho é uma libertação, uma variante do seu traço estético, um espasmo de simplicidade que encobre outras irreverências, outras experiências… «O humor está onde menos se espera. A produção pictórica dos finais do ano transacto, por acaso ainda inédita em Portugal e que foi exposta na Galeria Bonino do Rio de Janeiro, é sintomática disso mesmo. A ironia não é desamor».


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