Tuesday, March 30, 2021

«Fred Kradolfer, a inovação Gráfica no Modernismo» por Osvaldo Macedo de Sousa in revista «Artes Plásticas» nº3 Setembro 1990

Objectividade e subjectividade, a luta diáfana do historiador, a opção estética do artista. A História são factos, datas, mas também pode ser interpretação desses factos; pode ser a recriação desses momentos passados. Quantas vezes a história é mais importante na sua mitificação, na sua efabulação do que na sua realidade crua.

Lugar mítico da nossa história, é o Chiado, a Brasileira, o Martinho, a Bertrand, a Leitaria Garreth… e à sua volta a história desenvolveu-se num anedotário fabuloso e efabulado de tertúlias culturais, modas, vivências. Ali se conversaram projectos importantes, nasceram inspirações, se conspiraram obras que nunca chegaram a existir.

Lugar mítico da nossa história, é a década de dez, com as suas deambulações modernistas e futuristas: são as décadas de vinte / trinta com a segunda geração modernista. Com a luta pela política do «bom gosto».

Se a realidade era uma «difícil» sobrevivência de artistas (não é sempre?), a inglória luta por uma vanguarda que não conseguia impor no gosto nacional as estéticas do novo século; a história mítica é a realização de obras-primas das nossas artes plásticas, é a concretização (a possível) de uma revolução do gosto.

A opção estética do artista pode encarar a fixação nua da imagem, ou da sua interpretação. Pode ser a inspiração em conceitos filosóficos objectivos, ou a subjectividade feita estética. Pode ser a subjectividade filosófica ou a subjectividade plástica numa comunicação concreta e dirigida. O artista gráfico é um pouco disto tudo, ou seja, a união da objectividade com a subjectividade, a imagem real com a interpretação, e estética filosófica e os compromissos concretos de comunicação.

Dentro das artes gráficas, a publicidade é a arte que mais corta as liberdades subjectivas e até à década de vinte não havia criativos publicitários, mas um ou outro artista que realizava esporadicamente trabalhos neste campo, para sobreviver. Como fórmula sistemática de trabalho, de estratégia de comunicação conceptual segundo o produto / público-alvo, só se vai realizar verdadeiramente após a chegada a Portugal de um jovem mestre suíço.

Poderá talvez ser um exagero, e uma injustiça para os artistas que até este momento fizeram publicidade, poderá ser uma mitificação?

Fred Kradolfer (segundo apontamentos biográficos dados pelo artista ao Arquitecto Jorge Segurado em 1967), nasceu a 12 de Julho de 1903 em Zurique, filho de Henri Kradolfer e Helene Bietenholz. Após os estudos primários e secundários, fez o curso da Escola de artes Aplicadas de Zurique (ourivesaria e cinzelagem). Em Berlim faria o curso de Artes Gráficas na Escola de Belas Artes, e frequentaria a Academia de Munique.

Em 1922 está em Paris a decorar montras («Inovation»), passando posteriormente por Roterdão , em 1923 está em Bruxelas como pintor de automóveis (da Ford). Aqui conhecer o fotógrafo português Serra Ribeiro Pai, para o qual trabalhava à noite, como retocador.

Agora, as histórias variam. Instigado por este fotógrafo, influenciado por um amigo português que conheceu em Paris… o que se sabe é que em 1924 as suas deambulações pela Europa trazem-no a Portugal.

O que é que o atraiu neste país distante dos centros de irradiação artística, sem perpectivas para quem quisesse «conquistar» o futuro? O jovem que aos 16 anos sai de casa à procura de novos caminhos para a sua arte, em vez de prosseguir em busca de mestres, vem com apenas 21 anos, instalar-se como mestre dos mestres deste pequeno país: «Esse estrangeiro, mais novo que Bernardo Marques, quatro anos – escreve Selles Paes em 1966, in “Renovação” – mas sem mestre foi, em verdade, não só o grande renovador mas o grande professor de quantos, nas decorações e nas artes gráficas, andavam aqui a querer gatinhar»,

Como convém em Portugal, a chegada nevoeirenta de um mestre está envolta de um certo misticismo boémio. Ele próprio dizia que tinha imigrado para Portugal antes de nascer, porque o primeiro a imigrar para Portugal tinha sido o seu avô, muito antes dele nascer. Depois, há a tal história de vir a pé desde a fronteira.

Carlos Botelho narra-nos essa vicissitude, em 1968 (in «PubliClube»): «lembro-me dele. Um dia, me segredar que tivera a ideia de emigrar e de ir caçar leões para o Oriente, como bom descendente, que era, de Guilherme Tell. Afinal trocou o Oriente pelo Ocidente /…/ assim, decidiu-se a vir por aí abaixo, mas pensando que Lisboa ficava a dois passos da fronteira de Espanha, tirou só bilhete para Vilar Formoso e o resto do caminho fê-lo a pé. /…/ Depois veio todo o caminho (como o dinheiro não era muito), a comer uvas com pão e a dormir onde calhava. Mas chegou!»

Em Lisboa era fácil encontrar o meio artístico, bastava aproximar-se do Chiado, e aí conheceu de imediato Bernardo Marques e José Miguéis (escritor). A seguir foi apresentado aos arquitectos Jorge Segurado e Carlos Ramos, os quais o ajudaram, dando-lhe trabalho no atelier (criou uma técnica de gauchar os trabalhos de perspectiva).

Esta não era porém a sua verdadeira profissão (ou o que ele mais gostava de fazer), e o primeiro trabalho gráfico foi para a Casa Domingos Lavadinho (caixas para envelopes com um cravo, que é ainda hoje a mascote da casa), seguindo-se a Bertrand Irmãos, a Companhia da Costa do Sol (a primeira publicidade internacional da Costa do Sol, é dele)…

Em 1927 fica estabelecida definitivamente a sua radicação em Portugal, ao conseguir um contrato de trabalho no Instituto Pasteur de Lisboa, onde, como refere Tom - Thomás de Mello, Fred realizou obras «dignas de uma antologia, mas o desleixo que os fez desaparecer torna impossível essa divulgação – felizes daqueles que tiveram o prazer de os ver».

Fred Kradolfer chegou e não teve dificuldade em encontrar trabalho, porque como refere o mesmo Tom (na altura também recém imigrado do Brasil), «existia uma grande necessidade de produção, por isso havia trabalho para todos nos anos 20/30/40. A falta de dinheiro de certos artistas era snobismo de genialidade».

Se havia trabalho (nas ditas artes menores), não havia organização, nem directrizes estéticas, visto o que dominava era o academismo bolorento dos Dantas desta terra, ou o conhecimento de uma certa vanguarda através de breves visitas ao estrangeiro, através das más reproduções absorvidas nas revistas estrangeiras. Não havia uma cultura (educacional) suficiente para compreender (teoricamente e experimentalmente) as novas estéticas, apenas uma intuição, um sentir os novos ventos do século.

Este sentir registou-se nas ilustrações das capas de revistas da moda, nas decorações dos Clubes, cafés (e posteriormente das montras de lojas) onde reinavam o Bernardo Marques, o José Pacheco, o Jorge Barradas… que navegavam num modernismo cezaniano ou expressionista. Esse sentir, viria a reflectir-se na publicidade.

Fred Kradolfer, apesar de ainda jovem e sem grande experiencia profissional, trazia uma formação académica forte, enriquecida por várias fontes de ensino, que lhe dava o domínio total das técnicas gráficas e a perspectiva estética adequada a cada ocasião, prevalecendo o purismo formal bauhausiano, de rigor geométrico. Ele traria a consciência de síntese na comunicação gráfica, deixando de valorizar o anedótico, a saturação de informação, como acontecia até então. A publicidade deixa de ser um «relatório», para se transformar num diálogo imediato e estético.

Assim, a sua acção, aliada à criatividade do atelier «Arta» (a primeira agência de publicidade gráfica do país), vai transformar as artes gráficas, vai fomentar as artes da publicidade, vai criar uma «escola moderna de Artes Gráficas», influenciando artistas consagrados, instruindo jovens artistas.

No campo da publicidade ficaram como marcos da arte portuguesa, não só os cartazes, como rótulos, «Stands» comerciais, ou maquetes de projectos publicitários que, infelizmente se perderam, ficando apenas a admiração dos seus confrades pelas qualidades técnicas excepcionais, pelo gosto estético na resolução dos problemas levantados pela mensagem comercial a transmitir. «Era um artista espantoso – afirmou-me Jorge Segurado – com uma mão e uma cabeça extraordinária, um criador, uma facilidade de pôr as coisas em equação e resolvê-los».

Mas o seu trabalho não se limitou à publicidade, aliando-se à política desenvolvida por António Ferro (uma estética modernista, no meio de políticos anti-estetas ou conservadores), da «política de espírito», das campanhas do «bom gosto», das promoções turísticas, das potencialidades nacionais.

Este trabalho (vanguardista numa sociedade conservadora e retrograda) foi desenvolvido pelo grupo criado por António Ferro, institucionalizado depois de responder aos trabalhos internacionais requisitados pelo regime. Thomás de Mello descreve-nos esta constituição do grupo. «Ferro nunca protegeu directamente o Fred. Ele adorava o Bernardo Marques e após a vergonha da Exposição Colonial de Paris (1931), chamou-o para a criação de uma equipe. Bernardo era primo de José Rocha e chamou-o, este trouxe-me para o grupo. Eu e o Bernardo adorávamos e necessitávamos do Fred, chamámo-lo. O Emmérico Nunes foi imposto e o Carlos Botelho entrou por amizade. Assim se formou o grupo que teve relevo especial nas Exposições Internacionais de Paris (1937), de Nova Iorque (1939) e de São Francisco (1938). As melhores obras do Fred são as do “Mundo Português” (1940)».

Esta década de trinta foi o auge da sua carreira em Portugal, não por uma maior qualidade estética, que manteve sempre no seu trabalho gráfico, mas pela quantidade de encomendas. Após este hiato de prosperidade e ousadia estética, a «política de espírito» caiu em desgraça, assim como o seu fomentador, António Ferro, desvanecendo-se o apoio estatal aos artistas. A cultura vanguardista, como consequência, foi-se esvaindo, levantando graves problemas de sobrevivência aqueles.

Fred, para além das crescentes dificuldades de trabalho, suportou outras contrariedades conjugais, já que os seus dois casamentos se afundaram em alcoolismo. Como consequência, foi-se também degradando a qualidade das suas obras.

O que ficou destas décadas de trabalho, foram magníficas ilustrações e capas de livros para editoras como Portugália, Ática, Guimarães… sendo também neste campo, o mestre assumido, de uma série de artistas nacionais.

Para sobreviver fez cartões de tapeçarias, fez guaches, foi pintor de retratos e paisagens. Apesar de um trabalho vigoroso e personalizado, de um domínio da paleta com gosto e simplicidade, estes trabalhos nunca atingiram a genialidade da sua obra gráfica.

Fred Kradolfer foi um inovador, um mestre da modernidade das nossas artes gráficas, hoje um tanto ao quanto esquecido e morreu apenas há pouco mais de vinte anos. Fred Kradolfer morreu em Lisboa, a 16 de Junho de 1968.


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