Saturday, March 20, 2021
Caricaturas Crónicas / Visões do Mundo: «”Handala” nunca morrerá» (Naji Al-Ali) por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 31/3/1991
A Federação Internacional dos Editores de Jornais, na sua história de 27 anos, concedeu pela primeira vez a «Pluma de Ouro da Liberdade» a um caricaturista. Pela primeira vez concedeu-a a um árabe. Pela segunda vez, a título póstumo.
O humor é o último grito a calar-se
perante as ditaduras, as prepotências, a violência ou a vergonha. Só a morte
pode supor que cala essa boca.
Foi o que aconteceu com o
cartoonista palestiniano Naji Al-Ali. Uma bala anónima, envergonhada, porque
não reivindicada por nenhuma facção religiosa árabe, por nenhuma das facções palestinianas, por nenhuma facção
terroristas ou pela Mossad israelita. Foi abatido em Londres, em Julho de 1987.
Nascido na Galileia, deixou a
Palestina com dez anos, no êxodo de 1948 quando a família foi expulsa das suas
terras, passando a juventude num campo de refugiados no sul do Líbano. Trabalharia
posteriormente para diversos jornais do médio oriente («Al Safir», «Al
Khaleej», «Al Quabas»…) vivendo entre Beirute e o Koweit, donde foi expulso em
1985, incomodados com as suas criticas cartoonísticas à esquerda e à direita,
apenas procurando a justiça e a verdade. Radicou-se então em Londres, onde, com
49 anos foi abatido.
Foi ele próprio, consciente de todos
os perigos que corria, de todas as ameaças que havia à sua vida e arte, que nos
deixou o testemunho da sua missão: «Eu
não estou ao serviço de nenhum partido ou de alguma organização. Nada me liga
àqueles que brandem os estandartes da luta, não pelo facto de uma escolha, mas
tão-unicamente pela força das coisas».
«O
meu papel – costumava ele realçar – não
é fazer propaganda por esta ou aquela ideologia. No que concerne ao nosso
combate, as coisas são muito claras. Acontece que me encontro em contradição
com certos grupos políticos, cujas posições são contrárias às aspirações do
nosso povo. /…/ Considero que o meu papel, como artista, não é levar à beira do
abismo o leitor, ou ao labirinto. O leitor não é somente um espectador. Tento
faze-lo ultrapassar esse estado. Ele faz parte do enquadramento do desenho. E é
nessa condição que deve participar».
«A
imagem, faz parte do mundo dos oprimidos, dos trabalhadores, de todos aqueles
que são constantemente esmagados, aqueles que devem pagar tudo para terem
direito á vida, aqueles que pagam todas as despesas: o aumento dos preços, a
defesa da pátria, os erros dos dirigentes: aqueles que ultrapassam todos os
obstáculos, aqueles que são assediados de todas as partes, aqueles que se
submetem a todas as opressões e crueldades, e que malgrado, se obstinam na luta
pela vida e morrem em plena primavera».
Disse ainda Naji al-Ali: «/…/ Foi no Koweit que germinou em mim “Handala”(personagem-criança
que aparece em todos os desenhos de Al-Ali).
Foi lá que o pus no mundo. Tinha medo de me afastar, de me perder longe da
minha Palestina… “Handala” nasceu para ser o meu anjo da guarda… Ele é
totalmente fiel á Palestina e impede-me de ser de outra forma».
”Handala” tinha dez anos. Terá sempre dez anos. «Foi nessa idade – acrescenta Naji al-Ali –
que eu deixei a pátria. Até que possa regressar, “Handala” terá dez anos e
poderá, então, começar a envelhecer».
Explicou-nos Naji al-Ali que o facto
de esta personagem se apresentar de «costas viradas» se justifica pela sua
história: «Comecei por o desenhar de
frente: estava num perpétuo face-a-face com as pessoas, trazia a “Kalashnikov”,
participava em tudo, mexia-se, sussurrava, cantava, gritava. Era a promessa da
revolução. Durante todo este primeiro período queria incitar as pessoas a
reagir, a participar».
Depois da guerra de Outubro de 1973, Naji decidiu imobilizá-lo. «Compreendi que a região estava à beira de
aceitar o regulamento. A imobilidade da criança significa a sua recusa em
participar nesse género de soluções. Pode.se interpretar negativamente esta
posição da criançla que se abstêm. Mas, a criança recusa, exprime a sua recusa
e denuncia todos os complôs que se tramam contra a nação.
“Handala”
é o testemunho dos tempos que não morrem. O testemunho de quem forçou a espera
da vida e de quem decidiu nunca mais a abandonar. Esta personagem não está
preparada para morrer.
Nasceu
para viver, para realçar o desafio e para conquistar a via da eternidade. Esta
personagem que eu concebi, não desaparecerá com a morte. Isto é certo. E, não
exagero em nada se afirmo que é através dele que eu sobreviverei depois da
minha morte».
O ultimo desenho que Naji al-Ali desenhou tinha o “Handala”
caído por terra machado de sangue, premonição que iria ser assassinado, contudo
“Handala” ainda existe, ainda sobrevive nos desenhos. “Handala” nunca morrerá.