Monday, February 15, 2021

«História da Arte da Caricatura de Imprensa em Portugal - 1935» Por Osvaldo Macedo de Sousa

 1935

 O «Diabo à solta - A melhor máscara"

O meu amigo X acendeu um cigarro, bebeu um golo de café e contou-me com o melhor dos sorrisos:

- Desde os quinze anos que me não mascarava. Tenho quarenta e cinco; logo há trinta anos que me não entregava a esse sport. Este ano resolvi-me. Tinha de ser. Por casualidade, os viscondes de A. ofereciam um baile masqué; insistiram comigo para que fosse; disse que sim; prometi mesmo que iria mascarado - e comecei a pensar realmente a sério na minha futura máscara. aquilo que a princípio me parecia de uma facilidade transparente começou, pouco a pouco, a transformar-se num verdadeiro e complicado problema, não apenas de indumentária, mas até de filosofia e de psicologia. De que é que eu me havia de mascarar ? De rei, de pagem, de Arlequim, de D. Quixote - ou de Imperatriz Eugénia ? - Confesso que durante dias, noites a fio, a questão não me saía do pensamento, com todos os seus aspectos, as suas consequências, as suas hesitações. Se é certo que o homem fez a máscara, não é menos certo que a máscara faz o homem. Durante horas consecutivas folheei, consultei livros de figurinos, tratados de indumentárias, calhamaços de história. As minhas dúvidas, longe de dissiparem-se, avolumavam-se. Entra a folha da parra de Adão e a farda de hussard do cavaleiro de Tahault, desde a cabeleira empoada de Luíz XV ao nariz vermelho de Polichinelo - os meus olhos e, mais ainda, o meu espírito oscilavam, hesitavam sem saber por onde decidir-se. Em meia dúzia de dias envelheci meses - e acabei por entregar-me nas mãos experimentadas de costumier. Mal entrei, um homem grisalho, de óculos enfiado numa espécie de guarda-pó cinzento dirigiu-se para mim e perguntou-me, com a maior naturalidade do mundo:

- Que deseja ?

- Mascarar-me.

- E de quê, meu caro senhor ?

- Não sei. daquilo que me ficar melhor…

O homem sorriu, pediu-me que entrasse para o gabinete das provas, disse-me que ia buscar o que lhe parecia mais conveniente para a minha idade e, sobretudo, para a minha figura - e saiu. Passaram-se talvez cinco minutos e quando eu me preparava para acender um cigarro, a porta abriu-se; o homem voltou, ajoujado de fatos, de chapéus, de cabeleiras, de pares de botas de todas as épocas; atirou tudo aquilo para um sofá e exclamou:

- Vamos provar.

Durante duas horas, meu amigo, naquele pequeno gabinete, eu tive a fantasia de passar por tudo, desde a opulência real de D. João V até ao gibão humilde de Sancho Pança. Eu sei lá a infinidade de coisas que enfiei naquelas duas horas ! Às capas negras sucedem as casacas de seda, à cabeleiras empoadas os sombreiros de veludo, às espadas de ferro - os bastões de limoges. Num abrir e fechar de olhos eu passava do séc. XVIII para o séc. XIII, do séc. XIX para o séc. XVII. A certa altura, eu próprio não sabia quem era, se rei, se vassalo, se Pierrot - se eu próprio. Já não podia mais - e vim-me embora. Acabou-se.

- O quê ? Você desistiu de se mascarar ?

- Desisti.

- ?

- Acabei por convencer-me que a melhor máscara é ainda aquela que nós trazemos todos os dias!

Uma crónica de Luís de Oliveira Guimarães, in "O Diabo" de 3/3/1935. Este autor, Advogado e Juiz por profissão, será uma figura de destaque no estudo, e animação do mundo do humor ao longo desta e da década seguinte.

De mascaras vive o humor gráfico, umas mais simplistas, outras naturalistas ou modernistas, e outras mais arrevesadas. Uma das máscaras mais intrigantes, e curiosas dá pelo nome de Arnaldo Ressano Garcia, que este ano edita um "Álbum de Caricaturas". Não é uma raridade este facto, já que conhecemos álbuns de Raphael, Celso, Monterroso, Valença… mas este, pela qualidade excepcional de traço merece destaque, apresentando de seguida o Prefácio de Rocha Martins : O grande Bordalo, mais demolidor que vinte panfletários de garra, contou-me a origem do seu fracasso na burocracia.

Movia-o uma irreprimível tendência para traçar o grotesco e não se coadunavam os arrebatamentos de seu lápis com a uniformidade dos tinteiros da secretaria do Parlamento onde era empregado.

Certo dia, perguntando a Justino Soares como passara de carpinteiro a bailarino, compreendeu a impossibilidade de reprimir vocações e explicou a sua. O mestre de dança confessara-lhe, singelamente: senti uma grande comichão nos pés e comecei a bailar.

- Como eu! Também senti um formigueiro nas mãos e puz-me a fazer caricaturas. Aquelas cócegas perderam-me ­dizia alegremente -. Faltara-lhe o fastígio de uma direcção geral com a inherente carta de conselho mas ganhara a glória.

Arnaldo Ressano Garcia, caricaturista de excepcionais qualidades, ilustrou-se sem sacrifício da sua carreira, mas foi-lhe, também impossível refrear a inclinação.

Dotado de talento inegável, artista por temperamento, é Coronel de engenharia, lente da Faculdade de Ciências e foi professor das Escolas de Guerra e de Belas Artes.

O artista não causou dano ao catedrático.

Estudante distintíssimo, agitava-o a incontível propensão para, o bico de lápis, rápida e flagrantemente, apresentar as facetas psicológicas e cómicas dos mestres, dos condiscípulos, dos jarrões, dos tipos das ruas, de todos os que tentavam seu chistoso estilete.

Hesitou em correr os riscos do julgamento do público; desconfiava da sua obra. Só os verdadeiros artistas conhecem este tormento.

O enorme e justíssimo triunfo obtido na exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes, consagrou o caricaturista sem prejuízo do professor e do militar.

Não seguiu os traços e as características das celebridades, desenfluenciou-se de admirações cegas, quasi sempre fontes de imitação. Dispensou mestres. Deveu a vitória a uma só escola: a sua.

Considero arte todas as manifestações, não só do engenho, mas da natureza, capazes de me impressionar. Sou como aquele soldadinho português que entrou no céu por não saber explicar a razão da sua estada na guerra, embora se batesse como os outros, muito a par do lance.

Também não consigo definir o motivo do meu agrado ou da minha frieza ante as expressões artísticas; desconheço regras, vibro ou quedo-me insensível, e assim, para o meu espírito, é belo ou vulgar o que se me depara.

Admiro ou desinteresso-me.

Emudeço quando contemplo o espaço, a incomensurável tela, na qual Deus, supremo artista, cria os seus caprichos colossais: batalhas, teorias infindáveis, templos ciclópicos, animais fantásticos, castelos de sonho, náus de maravilha, e, por vezes, decerto necessitado de ferir os ridículos, também caricatura quanto existe nos vastos céus e na mísera terra.

Curvo-me e penso ante as coisas de arte. Qualquer outra manifestação é tão dispensável, ante a beleza, como são inúteis estas palavras no pórtico do livro do meu velho e ilustre amigo para cuja obra vai o sincero e rude aplauso de um homem que, à mingua de outras aptidões, cultiva no seu cardal a flor inigualável da sinceridade.

É um magnífico Álbum das Glórias políticas, militares, universitárias e culturais de então, onde se destaca uma das mais interessantes caricaturas de Salazar, onde sobressaem toda a hipocrisia, cinismo do chefe de Governo. Esta foi a segunda escolha, porque uma outra em que Salazar surge como Hamlet com a caveira, foi "censurada" pela família, com medo das represálias.

Este livro vem como consequência de uma exposição sua na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Maio deste ano, a qual apesar de ter como antecedentes a publicação de alguns trabalhos na imprensa, é como que o recomeço de uma carreira. O próprio Arnaldo Ressano fala deste reinício da sua arte: Quando estudante fazia caricaturas, nos livros e nas paredes das escolas, que eram o divertimento dos meus colegas.

Os estudos da minha carreira cientifica e, depois, as exigências da minha profissão, obrigaram-me a abandonar, por completo, esta tendência.

Assim se passaram algumas dezenas de anos, sem que eu executasse qualquer trabalho e, só agora, já com cabelos brancos, devido à insistência de pessoas de família e amigos íntimos, eu ousei lançar mão, novamente, do lápis, realizando esta minha primeira exposição.

É, na sua grande maioria, o trabalho de alguns meses: desde Janeiro até Maio deste ano.

Ela representa uma tentativa e uma reminiscência, em que procurei caricaturar algumas das mais altas individualidades nacionais, políticos, artistas, colegas e amigos.

Não tive a intenção de os amesquinhar, e não há uma pessoa só, das por mim caricaturadas, por quem eu não tenha a mais subida consideração.

A natureza deu-me, porém, uma memória gráfica especial, um pouco bizarra: decoro a forma de quase tudo quanto observo, mas exagerando as suas características, quando, longe do modelo, reproduzo, por reminiscência, a sua imagem…

Nascido em Lisboa (1880), primo de outro militar caricaturista (João Menezes Ferreira), começa a publicar em 1904 no "Arauto", passando pela "Revista Nova", "Ilustração Portuguesa", "Pst"… Durante os primeiros anos da República publicará sob o nome de João Maria, participa no III Salão dos Humoristas em 1920, para depois desaparecer. Reaparece neste ano, sob o seu nome, com uma pujança, e uma grande maturidade plástica. Publicará então nos periódicos "Papagaio Real", "O Espectro", "Sempre Fixe", "O Diabo", "Risota", "Século Ilustrado", "Ocidente"…

Na realidade, a sua arte é a síntese do retrato-caricatural. Hoje, ao conhecermos não só a sua obra exposta ou publicada, mas também os estudos preliminares, e sem pormos em dúvida a sua propensão natural para o exagero, podemos admirar a ciência da deformação do desenho feito caricatura. Nos seus estudos, encontramos as individualidades estudadas como escultoras clássicas, em que o desenho é perfeito, no domínio da técnica. Depois, na segunda fase em que a estética se conjuga com a técnica, vemos as linhas a contorcerem-se sob o olhar satírico, que disseca a imagem, expondo-lhes a alma da expressão, a expressão da alma. Arnaldo Ressano é um clássico modernista, já que pela sua formação, ele procura a perfeição do belo, mas pela sua ironia, ele torna-se modernamente irreverente na síntese das linhas, ao mesmo tempo barroca e clássicas. Eu atrevo-me a dizer que Arnaldo Ressano é o contra-senso entre a filosofia e a realidade - Como me prezo de desenhar honestamente, os meus trabalhos afastaram-me, naturalmente do convívio dos chamados avançados…

Profundamente académico de formação, por cujo ideal lutará, e entrará em conflito com colegas de arte, é anti-académico na sua obra final, pela originalidade do seu olhar.

Em Fevereiro o Presidente Carmona é re-eleito, já que era candidato único. Em Setembro a oposição militar tentar de novo o golpe…


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