Tuesday, February 23, 2021
Caricaturas Crónicas - «Em TOM de saudade» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 21/1/1990
Evocar
Thomaz de Mello – TOM, simplesmente – é evocar tudo quanto ele representou: uma
renovação gráfica e o desenvolvimento de uma política cultural que já germinava
em Algumas mentes e que ele impulsionou como ninguém.
O desaparecimento de um amigo deixa-nos sempre uma
saudade, um vazio. É o que sinto como o desaparecimento de Thomaz de Mello, o
Tom, que nos seus oitenta e poucos anos me narrava, nas nossas longas conversas
do final da tarde na sua loja / atelier (ao Chiado), as vivencias desses tempos
passados, das cumplicidades artísticas. Foi ele que me transmitiu muitas
informações, muitas coscuvilhices artísticas, que me corrigiu ideias e estudos,
trabalhos sobre a nossa história artística. Mas, muito ficou por contar, muitos
projectos por realizar, Um deles era a edição de um grande livro antológico de
uma carreira com sessenta anos de criatividade artística. Pediu-me então para
eu me encarregar do Tom caricaturista / humorista, ou seja, a primeira fase da
sua vida em Portugal. Eis alguns extratos do texto que escrevi com esse
intuito, e que está inédito.
«Nas artes
plásticas portuguesas da primeira metade do nosso século, há sempre um tom
caricatural, mais não seja como pontuação da luta pela sobrevivência na
carreira difícil, e irreverente, dos artistas. É o caso de Dom Thomaz de Mello,
que também tem um Tom de humor, entre a policromia da sua obra.
/…/ Diz pois
a história que, num dia de brumas invernais desembarcou no Cais de Alcântara um
jovem “imberbe” e aventureiro à conquista das suas raízes, è descoberta de
novos mundos. Era o mesmo espírito irrequieto que já havia levado este jovem
brasileiro a embrenhar-se na profundeza da floresta Amazónica, só que, a vida
“civilizada” não era para graças, e ele perdeu-se dos palcos dfa aventura, para
viver dramaticamente o riso dos outros.
Ele chegou
como actor, como intérprete de outras personagens, mas de imediato teve de
assumir a sua, já que foi invadido por uma sensação de grotesco no quotidiano
que ele vivenciava, que o fez enveredar pela retratação humorística dessa
sociedade portuguesa. Foi, desta forma, o povo português que lhe abriu a
visualização, que lhe conferiu as suas potencialidades caricaturais, visto
antes nunca ter exercido essa linguagem em terras de Vera Cruz.
/…/ O seu
traço aparece como uma novidade sintética, numa década em que o modernismo já se
abarrocava em decorativismos “cosmopolitas”. Habituado a cenografar minimalisticamente
para companhias de teatro itinerante, tinha o poder da síntese existencial dos
elementos fundamentais para sugerir a realidade, para reconstruir a verdade e,
foram esses conhecimentos que ele acabou por transpor para o desenho de humor e
caricatura.
/…/
Observando os trabalhos publicados nesses anos vinte / trinta, denota-se a
primazia da linha, como um graffito que delineia as personagens, as ideias…
nalguns ele utiliza a técnica de linha de esquadria, com os objectivos numa
deambulação realista na imagem, abstrata na estrutura. Um estilo que nos anos
70 o italiano Osvaldo Cavandoli apresentou ao mundo (La Linea), como o elemento
mais característico da sua originalidade, em desenho animado.
Thomaz de
Mello é um artista prolífero, que explora todas as potencialidades do seu
grafismo, desde a caricatura-retrato espontâneo, na cobertura jornalística de
eventos como o caso Alves dos Reis, até à caricatura-síntese feita em
laboratório do dr. Washington Luiz, do Durval Porto, do Novais Teixeira…; a
ilustração esquemática no «Sempre Fixe», «Ilustração», Magazine Bertrand»… em
que a inspiração grega das figuras, ou do fundo negro com as personagens
recortadas a branco, alterna com um
gosto mais medieval de iluminuras… seja no contraste de figuras esvaziadas de
«carne» na sai bidimensionalidade de boneco gráfico, à exuberância dos físicos
delineados no deleite da anatomia herculana… aliando sempre cada
desenho-ilustração ao fim a que se destina, ao “parceiro# que ilustra. Tom tem
uma técnica, um estilo para cada tipo de história, de intervenção.
Ele foi uma
renovação gráfica e o desenvolvimento de uma política cultural que já germinava
nalgumas mentes, e que viria a concretizar-se como a “política de espírito”,
que era a educação do gosto (aquela que Christiano Cruz defendia aquando da
implantação da república), o levar a estética para todas as formas de
comunicação (tal como Leal da Câmara defendia no Grupo dos Fantasistas), num
misto de vanguardismo e total acessibilidade às potencialidades do gosto
popular. Foi esta política (infelizmente associada a outras politicas
governativas menos saudáveis, contra vontade dos artistas), esta arte, que o
afastaria da caricatura e da ilustração, para o ocupar com outras actividades
criativas mais cenográficas e decorativas».
Agora, em 1990, passadas várias décadas, Tom
abandonou-nos, deixando porém bem viva a sua presença artística.