Wednesday, February 24, 2021
Caricaturas Crónicas: «É Natal» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 24/12/1989
Poisem os
lápis, ó caricaturistas e humoristas, é tempo de alegria e de bacalhau. Estejam
descansados que o amanhã vos dará (infelizmente) muitas oportunidades de nos
vingarem…
Chega o Natal e todo o mundo (de influencia ocidental)
suste por um tempo os seus impulsos animais. Os leões, chacais, raposas e logos
da sociedade humana vestem a pele de cordeiro e, à grande mesa da
«fraternidade», comem o bacalhau com batatas, o eterno amigo do Zé, que cada
vez mais vivem de costas viradas.
(Mas uma coisa curiosa é que, ao longo de toda a
história da caricatura portuguesa, apesar de serem sempre apresentados como
“amigos”, convivas do quotidiano pobre, o bacalhau aparece sempre como um ser
pouco dado a amizades com o Zé, ou seja, aparece como um desejo, um sonho, com
mil e uma formas de se fazer, uma ambição do zé-povinho poder vir a ser um
compincha do bacalhau. Portanto, esta crise de relacionamento entre ambos,
tendo períodos de aproximação, e alguma intimidade, é de longa data, é tema
para caricaturistas de todas as épocas).
As eleições passaram, tendo, por um lado, os
vencedores (que como sempre são todos os partidos concorrentes) cheios de
alegria paz, fraternidade e esperança de cumprirem algumas das promessas
lançadas durante a campanha; por outro lado, os derrotados, os eleitores, os
indivíduos solitários, aqueles a quem a sorte não sorriu, apesar de serem
homens de boa vontade para a política.
Depois dos insultos, da guerra dos votos, veio o Natal
pacificar todos os corações, num espirito que os obriga a trocarem umas
prendinhas, entre familiares, entre políticos da oposição… enquanto o sorriso
irónico se prepara para o futuro pós-Natal.
Na prática, o Natal é isso mesmo, um sorriso de
ironia, numa pausa entre a sátira e o grotesco da vida. É um momento de
meditação em família, e um relaxamento dos músculos faciais, há muito tensos
com a crispação dos maxilares do ódio interpartidário, há muito congelados no
riso da máscara política. No Natal, o sorriso é mais descontraído, mais
benévolo, enquanto a mente prepara o relançamento da guerra do ano novo que se
aproxima. Mesmo as guerras militares fazem uma pausa nesse dia, sorriem de
trincheira para trincheira, enquanto limpam armas, recarregam munições, fazem o
balanço dos arsenais e cantam hinos natalícios.
É um período de paz e abundância para quem está bem na
vida, e mesmo aquele que nada tem, procura criar um microclima de abundância e
prazer. Desta forma se mata temporariamente muita solidão, desta forma se
evidência muita solidão. Todos procuram sofregamente viver um pouco da ironia
desse sorriso.
É um período de paz e abundância tutelada até pelo
sorriso irónico do ministra das finanças. O ministro consente umas horas de
tolerância, deixa que um pouco de esperânça entre no coração dos contribuintes,
para em Janeiro, rectificar o IRS e o IRC, para, posteriormente se vingar deste
esbanjamento, com novas medidas «repressivas».
É tempo de Natal, poisem pois os lápis, ó
caricaturistas e humoristas, é tempo de alegria e de bacalhau. Estejam
descansados que o amanhã vos dará (infelizmente) muitas oportunidades de nos
vingarem este sorriso de ironia dos governantes.