Sunday, February 21, 2021

Caricaturas Crónicas: «Brasil, um encontro de humores» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 10/12/1989

O humor brasileiro é satírico, é agreste, como é brejeiro, lírico ou alegre, porque consegue libertar-se da cinta opressora das conveniências. Portugal é o riso da frustração que aceita a sátira ao vizinho, á oposição, mas que se revolta quando ele é atingido.

 

O mês de Dezembro deste ano, no mundo do humor, é marcado pelo encontro-exposição que reúne as obras dos mestres do humor contemporâneo luso-brasileiro. É uma exposição patente na Casa do Humor – Museu Bordalo Pinheiro (de que sou director), até ao final do mês.

É um encontro de humores diferentes, que falam a mesma linguagem. Não me refiro ao português, visto nem sempre ser necessária a legenda, antes um gesto gráfico incisivo, e conciso. São humores diferentes porque enquanto o brasileiro faz da sátira uma festa, um carnaval, o português é a expressão de uma angústia, é a realidade vivida como um facto do fado nacional.

O humor brasileiro é satírico, é agreste, como é brejeiro, lírico ou alegre, porque consegue libertar-se da cinta opressora das conveniências, da civilidade puritana. Por essa razão, o Zé Andrade (humorista brasileiro presente em Portugal neste momento) pode fazer caricaturas esculturais, feitas «gigantones», para os próprios políticos as utilizarem na sua campanha política, na sua campanha-carnaval. Por essa razão, os descontentes com o sistema político podem votar no macaco para a presidência. É o humor como irreverencia, como desafogo e intervenção social na vida. Uma intervenção activa.

Portugal é a intervenção passiva, é o riso da frustração que aceita a sátira ao vizinho, à oposição, mas que se revolta quando ele é atingido. O humor dos nossos humoristas tem que ser o reflexo deste gesto tristonho, sem se poder expandir num colorido satírico-carnavalesco, não vá o ministro desconfiar que está a ser alvo de uma difamação organizada, não vá o Zé etiquetar a sua intervenção com o carimbo acusatório-político.

Normalmente, não querem deixar o humorista na sua inocência de interveniente activo e descomprometido.

Nem sempre estes humores estiveram tão distantes, e momentos houve em que Portugal enviou os seus mestres em busca do ouro no novo mundo. Pode-se dizer mesmo que a adolescência da caricatura em Portugal esteve em risco de ficar retardada, quando Raphael Bordallo Pinheiro resolveu emigrar para o Brasil, em busca de uma sobrevivência mais desafogada. Mal o Zé-Povinho tinha nascido e via-se de armas e bagagens no navio Potosi, rumo ao Rio de Janeiro. Felizmente, para Portugal, aquilo não correu tão bem e, em 1979, Raphael regressa para implementar uma era de ouro no nosso humor.

Ainda nesse século, outros mestres portugueses se refugiaram no Brasil, tentando matar as mágoas da incompreensão. Foram Celso Hermínio, Julião Machado, Cristiano de Carvalho… que deram o seu melçhor ao humor brasileiro, moldando-o ao gosto europeu, desenvolvendo-o num misto de influências.

Um dos últimos humoristas portugueses a refugiar-se nas terras de Vera Cruz seria Fernando Correia Dias, um dos responsáveis pela implantação do modernismo em Portugal (e que ai se casaria com a genial poetisa Cecília Meireles). Como contrapartida, passados dez anos, o Brasil de volver-nos-ia esse modernismo, ou seja enviar-nos-ia o único humorista brasileiro a fazer a viagem ao contrário, ou seja, o TOM, que veio dar um novo alento àquele modernismo inventado por Correia Dias.

Passaram-se seis décadas, para que de novo a ponte de amizade humorística voltasse a tentar criar laços. Este encontro é pois a primeira tentativa que se realiza no mundo do humor para unir as experiências, as ideias, os estilos destes dois países ditos irmãos. É a primeira vez que se pôs a hipótese de um acordo gráfico de língua / traço portuguesa. Para que essa hipótese possa ser mais produtiva está em organização a deslocação dos humoristas (alguns) portugueses ao sol de Ipanema, para que o sangue carnavalesco os desafogue durante algum tempo.

PS: Vieram quatro artistas brasileiros para a inauguração da exposição em Portugal mas os apoios do brasil já não conseguiram levar os quatro portugueses, como estava prometido.


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