Saturday, January 02, 2021

Caricaturas Crónicas: «Sam – O vizinho do lado» por Osvaldo Macedo de Sousa /in Diário de Notícias de 28/6/1987)

Um comungar com o público num interrogar-se ironicamente, por vezes com sorriso, outras vezes no gargalhar, e vezes há que apenas fica a indiferença perante o cartoon, porém algo se esboça na folha branca da ironia.

 

A frontalidade é uma das características do Homem correcto e honesto, e por vezes do humorista, o que se opõe à característica traiçoeira de fazer algo nas costas dos outros. Sem querer, tenho andado a escrever, há pelo menos dois anos, nas costas dele, o que não significa que deste lado da página eu não envie pra detrás das minhas costas, um memorando natalício, neste décimo aniversário de publicação no Diário de Notícias (27 de Junho), e décimo sexto de existência do Guarda Ricardo.

O Guarda Ricardo não é um herói nacional, antes um anti-herói como todo o Zé-povinho que apenas tem de sobreviver neste país, e como tal, ele é o retrato diário de um povo, desde que re-descobriu (?) a democracia até aos nossos dias, numa visão ingénua e irónica da vida. Ele, no fundo não satiriza os políticos, não ridiculariza as opções governamentais, apenas se interroga para «compreender», quer que os «chefes» lhe expliquem…seriamente, ou com humor.

O humor é a mãe do Ricardo, que ao acasalar com o Sam fez surgir esse Guarda (que não é Anjo) de todos nós. A missão dos filhos é, em princípio raramente concretizado, quando atingem a maioridade, viverem independentes dos pais, só que este é possessivo, e em vez de nos deixar falar do «filho», requer as atenções para ele como progenitor criativo.

Diz-se chamar Samuel Azavey Torres de Carvalho, engenheiro civil por «canudo», «barão» no seu aspecto quixotesco «seco e esgalgado», esfinge de um rei de Saxe-Coburgo e humorista por absurdo, em descoberta de um novo caminho de vida em ironia e «non-sense» quando se encontrava em plena maturidade adulta.

Nascido, como artista, na dita «primavera marcelista», como se ambos proviessem do Maio 68 longínquo, desde os primeiros traços que cresceu em dois braços distintos, mas provindos ambos do mesmo esqueleto, a redescoberta do mundo que nos rodeia, que nos ultrapassa constantemente. Por um lado, não sei se pela esquerda ou direita, faz esculturas, e que por vezes não são sempre esculturas, e que por vezes não são feitas por ele, antes são o non-sense dos objectos que existem em vidas que não deveriam ser as suas. É o museu que invade o mundo quotidiano, guiado pela visão de Sam, abrigando em redomas de sacralidade irónica a inutilidade, em utilidade criativa da fantasia do inútil, ou seja, absurdo. Desta veia criativa, surgiram aos olhos do público nacional as séries de «Funis», «Cadeiras», «Chá da vovó», «Enxadas», «Buracos», «Torneiras», «objectos aplastados»… pássaros em fantasia irreverente contra a ordem dictatorial dos raciocínios lógicos, e como tal, ilógicos na ideologia castrante da monotonia quotidiana e conservadora.

No outro lado irónico da vida, estão os tipos comuns a todos nós, feitos em traços simples, breves como o tempo possível, repetitivos como o dia-a-dia. O seu cartoonismo não é feito na busca de um traço estético e trabalhado, antes num croqui sumário da estória narrada, que não é nenhuma história, mas uma ironia feitas palavras saídas da boca desses anti-herois de nome Ricardos, Heloísas, Ulisses… todos eles defendidos como auto-retratos de um indivíduo em questão com o seu quotidiano.

Se esses breves traços irónicos da vida têm êxito, que no caso do homenageado são dez de casa e dezasseis de vida, têm-se mantido em sobrevivência quotidiana durante todo este tempo, é porque transportam algo. Durante estes dez anos o Ricardo e seu chefe não cresceram, não envelheceram no humor, mas também não se alteraram no traço caligráfico em maturidade cartoonistica (apenas na filosófica), como se o traço tivesse ficado enquistado na obrigatoriedade quotidiana da impressão no jornal.

Talvez se deva o êxito a não apresentarem sátira acusatória, nem humor conclusivo, mas um comungar com o público num interrogar-se ironicamente, por vezes com sorriso, outras vezes no gargalhar, e vezes há que apenas fica a indiferença perante o cartoon, porém algo se esboça na folha branca da ironia.


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