Thursday, January 07, 2021
Caricaturas Crónicas – «Raphaelismo» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 29/9/1987
O
Raphaelismo, sendo uma escola, um estilo que vive desde os finais do século
XIX, como traço «barroco-decorativista», é também a designação de um período
específico da história da caricatura, que se pode demarcar entre 1880 e 1910.
Cada época tem a sua forma de encarar a vida, com seus
gostos, ideias, modas ou estilos. A arte, como componente integrante da
sociedade, porque reflexo do ideário estético, é sem dúvida um dos elementos
que melhor caracteriza o estilo de cada época, e assim se sucedem calmamente os
períodos ditos renascentista, maneirista, barroco, neoclássico… até que com a
revolução do século XIX tudo se precipitou, deixando o tempo de ser medido por
séculos, mas décadas, ou simplesmente por «modas».
Não há duvida que foi o desenvolvimento dos meios de
comunicação e da Imprensa que provocaram esta aceleração, democratizando e
divulgando as «novidades», quebrando estruturas que anteriormente estavam
restritas apenas a uma pequena elite. A reprodução joga então uma função
crucial no âmbito da cultura e das artes, já que veio destruir a sacralidade da
obra única, multiplicando as imagens da mesma obra, dando-as a conhecer a meio
mundo, embaratecendo a arte, criando seus sucedâneos, alterando a visão do
mundo.
Uma das formas de visão, das que existem, é a
humorística, a qual desde sempre acompanhou o homem na sua história, porém, com
o liberalismo e com o desenvolvimento da Imprensa, vai ganhar uma nova dinâmica
de intervenção social e política.
Em Portugal a Imprensa surge só quase no final da
primeira metade do século XIX, encontrando-se já o jornal satírico nos anos
40/50, em que o espírito humorístico é sufocado pelo ódio sarcástico e caustico
aos governantes, numa intervenção rude de ambas as partes, ou seja, periódicos
/ governo, o que obriga o anonimato dos caricaturistas.
A seguir, vem o «realismo», como intervenção estética
numa arte que apenas se servia da sátira e do retrato para atingir os seus fins
pinturescos. Entretanto, nos anos setenta surge Raphael Bordallo Pinheiro,
conciliando humor-ironia com a estética naturalista, numa fórmula de
intervenção social mais liberal, a opinião.
Raphael foi um grande artista na fórmula e no tempo
certo. Antes dele já tinha havido alguns razoáveis humoristas, como haverá
várias centenas depois dele, contudo faria a diferença, e inclusive a viragem
de forma de estar jornalisticamente nesta arte. Ele foi um dos mestres da
caricatura que se dedicou basicamente a este género artístico, desenvolvendo-o
até ao seu limite, tal como o farão outros mestres como Leal da Câmara, Celso
Hermínio, Francisco Valença, Stuart Carvalhais, Amarelhe, Teixeira Cabral… mas
nenhum deles conseguiu criar uma «escola» estilística. Os estilos, desde o
realismo, passando pelo pré-expressionismo, modernismo, expressionismo, síntese
abstracionista…. Sucederam-se, tanto na caricatura como nas demais disciplinas
de arte, mas o rafaelismo, nas artes de imprensa, sobrepôs-se a todos eles, mantendo
ainda hoje discípulos no naturalismo caricatural.
Christiano Cruz, nos anos 10 do séc. XX, queixava-se
já da fórmula satírico-política em que seus companheiros tinham caído,
acusando-os de meros imitadores de Raphael, não só no traço, como na abordagem
dos temas políticos. Acusava-os de imitarem as mesmas «imagens» humorísticas,
mesmas alegorias, metáforas… e os humoristas modernistas queriam ser
precisamente a ruptura, um movimento contra «ditadura» do rafaelismo, o
academismo da arte caricatural.
O Raphaelismo, sendo uma escola, um estilo que vive
desde os finais do século XIX, como traço «barroco-decorativista», é também a
designação de um período específico da história da caricatura, que se pode
demarcar entre 1880 e 1910. Nesse período houve Raphael Bordallo Pinheiro, os
raphaelistas mais ortodoxos ou simples influenciados. Houve o Sebastião
Sanhudo, o retrato caligráfico da vida portuense; Julião Machado, o
decorativismo “fin de siécle” na teatralidade lisboeta; Leal da Câmara, o
panfleto ácido antimonárquico em traço pré-expressionista; Celso Hermínio, a
modernidade prematura numa sociedade conservadora…
Nesse período, a caricatura e o humor gráfico eram a
arma activa da oposição, uma opinião interveniente da sociedade, uma arte viva
no quotidiano, e os periódicos, sobrevivendo ou não, eram vários em convivência
simultânea, havendo sempre várias publicações nas bancas, tal como o «Pae
Paulino», «Sorvete», «Charivari», «Micróbio», «Pontos», «Pontos e Virgulas», «O
Penacho», «A Corja», «O Alfacinha», «Ridículos», «Maria da Fonte», «Maria
Rita», «Cavaqueira Política», «A Algazarra» … onde sobreviviam artistas
medíocres de desenho infantil como o Augustos, João Cabral, Jacinto Navarro, N.
Santos, Mariares, Constantino, Gil, Bráz, E. Castro, Raul, Pires Guimarães,
Humberto Morais, Chico Lisboa… ou de um traço escolar, mas com maior domínio
gráfico como Joaquim Costa, Almeida e Silva, Santos Silva, Simões Júnior,
Nogueira, Sousa Nogueira… os quais, em obras «correctas», numa intervenção
directa no seu tempo, pouco mais deixaram para a história das artes, do que a
reprodução das suas obras dentro da escola rafaelista.