Saturday, January 02, 2021
Caricaturas Crónicas: «QUARESMAS CARICATURAIS» por Osvaldo Macedo de Sousa (in Diário de Notícias de 12/4/1987)
Pelo
cruzar das linhas se tece a vida, a qual é a luta no dia-a-dia, é a gargalhada
de uns perante a queda de outros, é a caminhada íngreme, com seus obstáculos e
tropeções nas necessidades de alguns.
O
povo, na sua visão sábia, e irónica, simboliza esta labuta num paralelismo,
onde a «Cruz» é o pesado sinal dessa luta. Os espinhos (dos impostos), as
vergastadas (da opressão, desemprego, desilusões) nada se comparam com este
carrego da eterna Quaresma.
Mas
tudo isto são símbolos, estruturas-base de toda a comunicação, inc1usive da
caricatura. Esta, para que o leitor a traduza facilmente e de imediato, procura
o dia-a-dia, os acontecimentos sociais, políticos ou religiosos para melhor
veículo. Porém, a utilização desses símbolos ou comparações está sempre
dependente de um outro símbolo quaresmal, a abertura das mentes, o saber rir de
si próprio, da censura ditatorial, que pela sua fragilidade de conceitos, de
espírito limpo prefere fazer calar as bocas dos lápis e da tinta-da-china.
Um
desses símbolos «perigosos» pertence à religião, é a cruz que trazemos (quase)
todos ao peito, é a Quaresma, porque a «Cruz» não é igual para todos, como
diferentes são as texturas das madeiras que a constroem. Para uns é mais leve,
porque até o carpinteiro é subornável; para outros é pesada como chumbo, porque
a fome é demasiado leve. Mas, todos têm a sua cruz, transportando-a em
solitário, em cooperativas, sempre presente nem que seja na sua sombra de
ameaça negra: «O pobre Zé depenado /
Tanto pagou o patau, / que chega aquelle estado / d'escalado bacalhau.»
«E se isto vae neste andar, / e se a coisa assim mais
caminha / há-de acabar por ficar / reduzido a magra espinha.»
(J.M. Pinto, in «Charivari», 18/2/1899.) Os paralelos são quase sempre os
mesmos, tocando-se a eterna tecla da vida política do Zé povo: os impostos.
«Atráz d'esta procissão vae uma cruz, esta
cruz é a dos contribuintes; quem carrega com ela é o Zé-Povinho. Os emblemas do
poder e os martyrios dos contribuintes são levados pelos anjinhos dos diversos
círculos.» («Procissão dos Passos-Políticos», Raphael Bordalo Pinheiro, in António
·Maria 19/2/1880.)
A
imagem, por mais que se queira escapar a comparações que possam ofender
susceptibilidades, é sempre a mesma, a identificação do Zé com Cristo, porque
ambos sofrem os castigos do poder temporal, com a única esperança de uma outra
vida. Cristo foi flagelado pelo chicote, o que no Zé dói tanto como as contribuições.
Cristo carrega a cruz, o Zé, apesar de despojado, tem que carregar com o País
para a frente… e ambos são crucificados. O primeiro, como cumprimento de e um
sacrifício, o segundo, como sacrifício cumprido, sem direito a levantamento
para reagir.
Mesmo
nos trâmites dessa Quaresma, o Zé não vê reconhecido o sacrifício - «O sacerdote da constituição lava
indistintamente os pés a todos os partidos, dando assim um exemplo de limpeza
de mãos a todos os governos da orbe. Zé Povinho é posto fora, em consequência
de no orçamento não haver sabão para ele.» (Lava-Pés Político, R. B. P. in
António Maria 25/3/1880.)
Raphae1
foi provavelmente dos caricaturistas que mais empregaram estes símbolos da
Quaresma, como se de um Zé da Arimateia se tratasse, tentando levar os
políticos a tomar consciência do peso do madeiro, e dos espinhos, ou então
avisando esses mesmos políticos dos perigos de um dia o mártir deixar de se
sacrificar - «Zé-Povinho, amarrado pelos
a laços do deficit à coluna dos, impostos; e ameaçado pela lança do sello,
suporta resignado as crueldades dos judeus políticos, até que a cana verde que
tem na mão se transforme n'um cacete secco.» («A Paixão Popular» de Raphael
B. Pinheiro in António Maria, 21/4/ /1881)