Wednesday, January 20, 2021

Caricaturas Crónicas: «Os Fantasistas» por Osvaldo Macedo de Sousa in Diário de Notícias de 3/7/1988

Eram tempos de irreverência, de procura de uma porta para o século XX. A República já estava implantada em Portugal e a Europa procurava na guerra a resolução dos seus conflitos internos. É nesta panorâmica que Leal da Câmara chegará ao Porto, em 1915.

 

«Foi nos tempos da outra guerra, quando ainda não tínhamos reumatismo, acreditávamos nos nossos semelhantes e gozámos com a irritação burguesa. Você (Leal da Câmara) chegava pejado de glória e de projectos do seu Paris do “Assiette au Beurre” com um belo retrato de Galanis no cartaz, e logo presidiu ao grupo dos sonhadores tripeiros, o Armando de Basto de um lado e este seu admirador do outro, acarinhado, como constato que continua andando, invejável moço, por uma vintena de rapazes tão iludidos do mundo como nós, felizmente. Lembra-se dos nossos escândalos estéticos?... As conferencias revolucionárias em pleno salão dos banqueiros… as turbulentas reuniões em casa de um negociante de pacotilha… as exposições malditas dos modernistas nos lugares catitas do burgo… a audácia das nossas criticas, das nossas censuras, do seu espirito humorístico…?» São palavras de Diogo de Macedo, em 1941, recordando a Leal da Camara os tempos dos «Fantasistas».

Eram tempos de irreverência, de procura de uma porta para o século XX. A República já estava implantada em Portugal e a Europa procurava na guerra a resolução dos seus conflitos internos. Os humoristas, seja pelos periódicos, seja pelos Salões de 1912 e 13, já tinham lançado o modernismo, enquanto o orphismo / futurismo já germinava em Lisboa. É nesta panorâmica que Leal da Câmara chegará ao Porto, em 1915.

Leal da Camara, recém-chegado de Paris (no seu segundo regresso de exílio), fixa-se em Leça da Palmeira por motivos de saúde, estando ao cuidado do dr. Manuel Monterroso, um médico que também era um conhecido caricaturista. Seria pela mão deste médico artista que Leal da Camara entraria no circulo mais intimo do meio artístico portuense, organizando de imediato uma tertúlia de intelectuais e artistas à sua volta. Essa tertúlia, ligada por interesses estéticos, em breve se organizou em Grupo, «Os Fantasistas», tendo como director o  mestre Leal da Câmara, coadjuvado por Armando de basto e Diogo de Macedo, Ao grupo pertenciam também Abel Salazar, Manuel Monterroso, Carlos Ribeiro, Cristiano de Carvalho, Henrique Medina, António de Azevedo, Henrique Moreira, Joaquim Lopes, Almeida Coquet, António  Lima, Mário Pacheco…. Não era propriamente um Grupo de Humoristas (tanto mais que Leal da Câmara procurava já nessa altura alternativas criativas mais ligadas ao design e decoração), mas de irreverentes que tinham o humorismo dentro do seu esquema de actuação e criação.

Os principais objectivos do grupo eram «transformar em acção útil uma parte da arte, aplicando os conhecimentos artísticos ao comércio e à industria. /…/ Importa também fazer ver ao artista a sua necessidade imperiosa de defender-se da concorrência, da invasão dos produtos estrangeiros». Havia nestes princípios o reconhecimento da necessidade da aliança do artista com a indústria, no design, esboçando-se a tentativa de Bauhaus à portuguesa, no Porto; e o reconhecimento da necessidade da defesa dos direitos de autor. O seu campo de intervenção artística queria abranger a caricatura, artes gráficas, cartazismo, escultura, mobiliário, cerâmica e a decoração. O próprio Leal da Câmara criava mobiliário, caricatura, cartazes…

O Grupo tinha sede na casa de um comerciante, que funcionava como uma espécie de mecenas, comerciante esse que também ficou ligado à história da arte portuguesa por laços familiares, ou seja, era tio do pintor Abel Manta, e tio-avô do mestre João Abel Manta.

Das iniciativas concretizadas, para além das palestras várias, há a destacar o jornal humorístico «O Miau», periódico efémero, pois os tempos eram de guerra e carestia, mas de grande qualidade gráfica e inclusive de impressão /papel. Nele aparecem obras de Leal da Câmara, M. Monterroso, C. de Carvalho, Diogo de Macedo e Armando Basto; e a exposição realizada em 1916, no Palácio da Bolsa, um certame que reuniu 40 participantes dos mais variados ramos artísticos e de opções estéticas. Esta exposição, apesar de pouco modernista e pouco humorística, ainda deu para abalar, pela sua irreverencia, a sensibilidade de alguns críticos, personagens ainda arreigados ao século XIX, que chamavam loucos ao Amadeo de Sousa Cardoso, em vias de expor a sua obra “revolucionária” no Porto e em Lisboa, ou aos futuristas de Lisboa que recusavam o modernismo pacato.

O Grupo, que era mais do que tudo uma tertúlia, existiu enquanto Leal da Câmara esteve no Porto, e desfez-se com a sua mudança para Lisboa, em 1920.

A importância de «Os Fantasistas», no âmbito do humorismo, reside no aspecto da tertúlia dirigida por um humorista, como intercambio de ideias, como criação de um jornal humorístico, como irreverencia no meio burguês nortenho.


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